BLACK AIR
Vídeo-instalação de Apichatpong Weerasethakul, Pimpaka Towira, Akritchalerm Kalayanamitr, Koichi Shimizu e Jakrawal Nilthamrong

Apichatpong Weerasethakul, um artista da era wireless

A lista de agradecimentos nos créditos finais de Mal dos Trópicos contém nomes como Brian Eno e Pierre Huygue. O primeiro é um músico bastante conhecido, que, em meio a seu vasto repertório, explora diferentes tipos de paisagens sonoras e possui vários influentes trabalhos de ambient music. O segundo é um videasta cujo remake de Janela Indiscreta, rodado em vídeo e com atores não-profissionais, é um excelente exemplo de como a vídeo-arte contemporânea tem lidado, provocativa e criativamente, com ícones do cinema – esse vídeo de Huygue, Remake (1995), pode ser visto como um verdadeiro predecessor do Psicose 98 de Gus Van Sant.

Mas o que eles têm em comum com Apichatpong Weerasethakul? A resposta é simples. Basta pensar em Blissfully Yours, Mal dos Trópicos ou Síndromes e um Século: Apichatpong constrói uma ambiência imersiva comparável à música de Brian Eno, e seus filmes são aventuras estéticas tão conceituais quanto os vídeos de Huygue.

Podemos facilmente dizer que Apichatpong Weerasethakul é um dos mais importantes e mais interessantes artistas da era wireless (o outro seria Michael Mann, mas por vias completamente distintas). Ele cria um espaço-tempo fluido, uma conexão ilimitada de diferentes níveis de realidade, e faz do desrespeito à fronteira entre narratividade e pura instalação de sítios sensoriais uma arte. Mysterious Object at Noon já mostra bem claramente essa estrutura: cada plano é ao mesmo tempo uma forma sofisticada de refletir sobre o processo do filme e a recuperação de uma experiência sensorial primeira, originária.

Mas na vídeo-instalação interativa Black Air, montada no último International Film Festival Rotterdam, algo irrompe violentamente dessa experiência.

(A instalação foi na verdade concebida por outros quatro artistas tailandeses: Pimpaka Towira, Akritchalerm Kalayanamitr, Koichi Shimizu e Jakrawal Nilthamrong. Mas embora Apichatpong tenha sido “apenas” um supervisor, algumas de suas opções artísticas mais fortes e decisivas estão lá.)

Black Air se divide em dois espaços – gesto fundador para Apichatpong, como em seus filmes: achar a estrutura de uma obra dividindo-a ao meio. Na primeira sala, há duas projeções, uma em cada parede, e dezenas de botões pendendo do teto e conectados por fios. A maior das duas telas mostra imagens banais da Tailândia: paisagens urbanas, panoramas, lugares icônicos, cartões-postais em movimento. Na tela menor, por sua vez, alternam-se imagens em still de pássaros, plantas, áreas bucólicas, belezas naturais. Para cada botão que apertamos, um som diferente é adicionado ao ambiente: sons de chuva, vento, sons de selva, de animais, um ou outro ruído... Uma paisagem sonora que vai sendo incrementada e que ressignifica constantemente as imagens que estamos vendo. Inusitadamente, entramos numa obra de Apichatpong pela parte que seria, a tirar por Blissfully Yours e Mal dos Trópicos, a segunda. O lugar da paz, da natureza, dos encantamentos, do sentido movente, do livre escoamento sensório-temporal, esse lugar desta vez vem antes. Você se sente rodeado por uma atmosfera híbrida. Na maior parte do tempo é uma atmosfera apaziguadora – mas algum tipo de paradoxo perturbador já está lá para ser sentido.

Quando você se move para a outra sala, passando por um breve corredor escuro, a instalação muda radicalmente. Esse segundo lugar é bem maior, e está imerso no silêncio e no breu. Há ainda mais botões pendendo do teto. Agora, a cada vez que você pressiona um botão, aparece uma imagem em uma das quatro enormes telas situadas na sala, distribuídas ao seu redor. Experienciamos um surround de imagens e não de som, e a atmosfera não é mais apaziguadora ou relaxante. Muito pelo contrário: vemos imagens de violência, feitas com câmera de vídeo na mão, com um visual bem web. “As imagens são tiradas de gravações clandestinas do assim chamado incidente de Takbai. Um incidente dramático na história recente da Tailândia, no qual muitos manifestantes no sul rebelde morreram. O evento ocorreu em 25 de outubro de 2004, mas as imagens ainda são censuradas”, explica Gertjan Zuilhof no site do festival de Rotterdam.

O incidente trágico está lá, saltando em telas imensas, através de imagens capturadas de diferentes pontos de vista, o que traz o duplo aspecto de simultaneidade e instabilidade. Uma ambiência em “tamanho real” dos jogos de guerra do Playstation? Talvez... Mas muito mais do que isso, também. Salvos do esquecimento, os registros de vídeo podem se abrir a nossa percepção naquele ambiente escuro. Não importa se as imagens podem ser vistas na internet: a criação de um dispositivo para essas imagens, de um espaço de reverberação como esse criado em Black Air, é o que as tira, ao mesmo tempo, da solidão e do voyeurismo, permitindo que se tome, a partir delas, uma atitude política-estética. O que o establishment espera do evento traumático é justamente o blackout dessas imagens. Black Air é uma atitude contra esse blackout.    


“As imagens estão em todo lugar”, diz um dos maiores e mais disseminados clichês da pós-modernidade. Mas Black Air prova que não é tão simples assim. Algumas imagens estão condenadas à total amnésia (pela mídia, pelas autoridades, ou mesmo pela população em si). Algumas nunca nem serão mostradas. Com essa atordoante instalação, Apichatpong e seus colaboradores estão nos obrigando a refletir sobre nosso lugar como espectadores/receptores – e sobre espectatorialidade num sentido mais amplo. Quer seja um significado político, um conjunto de sensações de espaço e de duração ou um elo da arte com o social, o fato é que tudo deve passar pela experiência, pelos lugares reais da percepção. Está a nosso critério ouvir ou não, ver ou não; ação/escolha mais do que necessária na era wireless. Como lidar com as imagens do horror, com a censura? O que fazer com a imagem e seus poderes ilimitados de acumulação, zapping, edição, transmissão viral?

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 
 






Blissfully Yours (2002)


Black Air (2008)