CRÍTICO,
de Kleber Mendonça Filho
Kleber Mendonça é um crítico de cinema e é um cineasta,
e por quase dez anos reuniu depoimentos de diversos
críticos e cineastas (de todas as origens, em todos
os lugares e festivais possíveis do mundo) sobre a
relação que mantém com a crítica – seja como ofício,
seja como objeto de
atenção. Um material naturalmente disperso, reunido em filme na junção de
diversas "cabeças falantes" cujo discurso, se obedece a uma coerência
interna e tem claros movimentos narrativos (blocos de sentido em que cinco ou
seis
falas
dão
conta da relação entre objetividade e subjetividade, por exemplo, ou outro bloco
mais adiante para falar das críticas negativas que acabam sendo mais lembradas
e valiosas que as positivas), também nunca se utiliza do artifício da oposição
dialética entre as falas, em que
um impropério dito por Daniel Filho, por exemplo, precise ser necessariamente
negado pelo depoente seguinte. Os agrupamentos estão longe de
ser aleatórios, mas eles nunca encerram sentidos demarcados, e o respeito à lógica
da "cabeça falante" está muito mais na permissão que se dá a cada frase
dita,
a cada postura assumida, em existir numa zona de livre associação de
idéias. Kleber Mendonça, evidentemente, tem suas próprias idéias sobre tudo aquilo
que se diz ali, e elas estão mais diretamente expressas na série de imagens de
arquivo inseridas ao longo do filme, comentários claros (às vezes óbvios, muitas
outras francamente instigantes) que Crítico faz do filme
que está acontecendo ali dentro de sua estrutura central.
Num filme que fala sobre a recepção do cinema, a equação do processo se esgota
em apenas dois dos grandes personagens coletivos participantes. O mergulho beira,
em muitos dos depoimentos, a mais sincera
sessão aberta de análise já promovida entre críticos e cineastas, com diversas
exposições muito curiosas da maneira como cada profissional lida com seus
próprios medos, ressentimentos e idiossincrasias, e mais ainda, como transforma
isso num discurso que não necessariamente se cola àquilo que conhecemos da
prática de cada um (Cláudio Assis exigindo dos cineastas elegância na hora de
receber uma crítica negativa é certamente um ponto alto da trama de Crítico).
De todo modo, o público está excluído dessa equação, e não só como personagem.
São poucas as falas que desdobram a relação de amor e ódio entre críticos e cineastas
para uma preocupação com o quê, desse imbróglio, chega ao público e
pode envolvê-lo no debate crítico. A verdade é que não há propriamente um debate,
no filme. É aqui que Crítico parece mais intimamente ligado à experiência
de Kleber Mendonça com o cinema: uma vez que se reúna num corpo só essa dupla
relação com os filmes, entre o produtor absorvido e o comentador distanciado,
a reflexão sobre as fronteiras e os entrecruzamentos das duas
atividades não se dá no plano da retórica, mas na manifestação física, na ação,
no fazer filmes ou no escrever sobre eles (às vezes simultaneamente), e é essa
idéia do trabalho diário, de um tema que não é corriqueiro na vida de nenhum
dos falantes, mas, pelo contrário, é parte integrante do próprio espírito de
cada um, que naturalmente exclui o público do problema.
E, ainda assim, há um desejo de público bastante evidente em Crítico,
não o que está ausente dele mesmo, mas o que potencialmente o
assistirá. Uma vontade de tornar esse diálogo, que poderia soar tão umbiguista
e tão pouco relevante para qualquer outro que não os envolvidos diretos no tema
do filme, ao mesmo tempo relacionável com a experiência pessoal do espectador
(os depoimentos que constantemente retiram os pensamentos em torno da crítica
do plano da teoria ou da história do pensamento crítico para trabalhar em
metáforas de apelo universal – "criticar é como escrever cartas de amor",
e por
aí vai) e também correspondente àquilo que se suponha ser o estado em que o espectador
se vê colocado quando diante de um filme ou da crítica dele, e a
revelação da verdade nua e crua destes agentes, "que são seres humanos
normais", como diz Rodrigo Santoro em algum momento. Por isso que o mais
próximo de uma "crise da crítica" que o filme de Kleber Mendonça consiga
chegar é a
discussão em torno do Bonequinho do Globo e, em medida maior, de toda a
crítica de meios impressos. Como diz Luiz Carlos Lacerda (naquele que, curiosamente,
foi o primeiro depoimento dado ao filme), essa crítica de jornal
e revista já não é crítica há muito tempo, e é por se agarrar nela que Crítico soa,
muitas vezes, como uma reflexão tardia e, em certa medida, já superada, de uma
crítica que ainda desperta raiva e rancor nos realizadores, que ainda dá as cartas
na distribuição e exibição de certos filmes, mas que, enquanto forma de pensamento,
está morta há muito tempo. E aí, a questão que Crítico não consegue resolver
consigo mesmo não é tanto o que é a crítica e como ela se manifesta na pele daqueles
diretamente ligados a ela – é o que o filme quer da crítica e, sobretudo, que crítica
o filme quer.
Rodrigo
de Oliveira
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