11ª MOSTRA CINEMA DE TIRADENTES
Cobertura diária

OUTUBRO, de Murilo Hauser
AREIA, de Caetano Gotardo

Dois jovens diretores encontram-se com duas mulheres no momento crítico da vida de cada uma delas. Duas personagens femininas experimentam sensações que só parecem ser possíveis se partilhadas com os filmes que se fazem sobre elas. Personagens, e ao mesmo tempo narradoras e comentadoras de suas próprias histórias, em duas encenações da memória. Ainda que as circunstâncias e os destinos de cada uma estejam traçados em linhas bastante diferentes, há um diálogo entre os trabalhos de Caetano Gotardo e Murilo Hauser que ultrapassa a mera coincidência dramática. Dois filmes que se dedicam firmemente a tornar o plano um espaço de explosão de potências, o corte um ampliador de sentidos. Dois dos maiores filmes exibidos em Tiradentes.

"Leva muito tempo pra se tornar jovem"

Outubro começa com um tipo de plano que costuma ser definitivo na vida dos filmes que se arriscam a fazê-lo. A câmera na mão suavizada por uma steady-cam, que começa mostrando o exterior de uma janela, para então recuar e dar um giro pelo quarto em que está, até que uma moça entre em quadro, saque uma arma da gaveta e, numa espécie de exibição exclusiva e combinada para a lente, se coloque diante dela frontalmente, até apontar a arma para a boca e atirar. Um suicídio assim, tão de frente, e tão gráfico (a moça cai e restam os jatos de seu sangue na parede ao fundo). A sensação imediata é a de que estamos onde não deveríamos estar, que aquela proximidade é indesejável, e mesmo nociva. Mas a câmera segue, e aquela mesma moça que acabara de se matar diante dos nossos olhos reaparece, duplica-se. Seu corpo morto está no fundo do quadro, e novamente ela chama a câmera para si como quem se alimenta dela, como se o efeito plácido e bastante contemporizador da steady-cam não fosse uma decisão do cineasta, mas uma reação espontânea (e talvez a única possível) à atitude desta mulher que se mata e depois nos olha nos olhos para dizer que "leva muito tempo pra se tornar jovem".

O que sai daí deveria se tornar uma explicação do contexto que envolve esta mulher, talvez ligado a esse peso do "se tornar" jovem que ela mesma anuncia, como uma espécie de bilhete de suicídio póstumo (e muito vivo, muito presente, nada mórbido). De fato, Outubro apresentará uma série de pequenos momentos – condensação das experiências acumuladas no mês do título, quem sabe – que poderiam estar ligadas diretamente à experiência da morte (um namoro terminado sendo a mais forte delas). Mas de todo modo, essas imagens todas, que formam o corpo do filme, não parecem saídas propriamente de um flashback – ou pelo menos não de um que nos explique o que houve lá no começo. Parecemos estar novamente diante de uma ligação direta entre o filme e os desejos dessa mulher que o protagoniza. As imagens não partem do mundo, da experiência histórica, mas de um emaranhado não necessariamente coerente, não exatamente organizado, que é a própria memória dela. Outubro parece aquilo que dizem ser “o filme que se passa diante dos nossos olhos” no momento imediatamente anterior à morte. E deitada no fundo do quadro, talvez no meio de um último espasmo, foram estas as imagens que a protagonista nos deu a ver.

Diferente da calma relativa e hidraulicamente conquistada pela steady-cam no começo, o que veremos a seguir são uma série de movimentos firmes, decididos, suaves mas seguros de seu objetivo. Um longo plano "ao redor do mundo", que começa no céu e desce até encontrar dois namorados deitados na grama falando amenidades, uma aproximação de câmera lenta em direção à moça e seu priminho, brincando de se esconder debaixo da mesa durante uma festa de família. O largo plano aberto e fixo de uma pista de skate, a câmera presa no fundo de um carro enquanto quatro amigos seguem viagem. Se o presente é instável e disfarça sua condição por um truque tecnológico, o passado, quando retomado, é uma sucessão de estabilidades. De olhar, de ponto-de-vista, mas nunca de sentido. É o filme de uma vida, mas não da nossa. É a encenação de uma subjetividade que não nos pertence e a qual nunca teremos total acesso. E tampouco Murilo Hauser. Forjada essa independência entre personagem e diretor (ilusória, é claro, mas praticável), não resta muito a fazer se não embarcar no não-conhecido, no conscientemente inexplicável.

"Tem gente que não agüenta fim de tarde"

Estamos, de fato, metidos num fluxo de imagens que não passa pelo filtro de qualquer idéia de realidade, mas que está empenhado em testemunhar e participar do delírio, do sonho, da imaginação dessas mulheres. É de confusão, de repetição, de reticências, e nunca de pontos finais, que se constrói a memória, e os filmes que se dedicam a ela só poderiam acompanhar este fluxo, tentando, da maneira que podem, materializar o imaterial.

Areia apresentará, nesse sentido, uma oposição reveladora. Talvez não haja espaço em que a condição externa seja mais evidente e incontrolável que uma praia. A força do mar, o choque das ondas na areia, o vento, há um clima de descontrole e uma sensação de mundo exterior muito forte e evidente, algo impossível de se fabricar ou reproduzir em laboratório. É exatamente neste espaço, no quebra-mar, que Areia começará, e é como se só diante de tamanha exterioridade fosse possível cumprir o caminho que o filme pretende, que é o da interiorização total. Poucas vezes se viu uma locação natural ser utilizada de maneira tão artificial, todos esses indícios de realidade postos em cheque através de sua completa deturpação. E não poderia ser diferente: salvo os dois últimos planos do filme, com tonalidade, contraste e cores completamente diversas de todos os anteriores, os únicos planos que podemos dizer que foram filmados "no mundo real", todo o resto pertence à cabeça da protagonista. É lá que o filme existe, e como se trata literalmente da tentativa de recuperação da memória através de sua re-encenação (uma mulher de meia-idade sentada na areia ao lado de um garoto de dezesseis anos, revivendo erraticamente um primeiro encontro, de muitos anos antes, quando ela também tinha só dezesseis anos), enfim, como estamos no domínio da imprecisão e do pensamento sobre si mesmo, uma praia não poderia ser filmada como praia: destacados do fundo, isolados do exterior, este garoto e esta mulher sempre aparecerão como se estivessem sendo filmados num estúdio, com um cenário digital colocado no fundo. Areia, quem poderia imaginar, é um filme de internas, ainda que tudo em volta nos prove o contrário.

O drama feminino já não é o mesmo de Outubro. Não se trata mais de perguntar o que torna a juventude algo tão doloroso, o que há nela que torne toda experiência, mesmo as mais banais, uma marca definitiva (o peso que pode tomar um olhar para o céu de dentro de um carro, uma conversa desajeitada com o pai). A protagonista de Areia está na outra ponta, no momento em que a memória não se constrói do atropelo de vivências, do acúmulo aparentemente desorganizado e aleatório de situações. É o momento em que o definitivo começa a perder contorno, começa a desvanecer, o momento em que a relativização é muito mais forte que as decisões absolutas da juventude. O terreno é a vida adulta, e se há algo a ser buscado na juventude, o esforço não é meramente o da lembrança: é preciso reconstrução, esforço ativo. Reviver, de uma certa maneira. Repetir as frases ditas até que se acerte o texto do passado, tocar onde se imaginou um dia ter tocado. O sentido (apontado no estarrecedor plano final, estarrecedor porque simples, um corte seco, um ponto-de-vista direto e transbordante de significado) é o presente.

E ainda assim, mesmo tendo acesso direto à memória desta mulher, mesmo vendo-a exposta num momento de clara fragilidade, na tentativa de recuperar uma sensação perdida no tempo e que agora também começa a se perder dentro de si, que abismos ainda existem por trás de um choro, de uma reação ao sorriso sempre encantador do garoto que está ao seu lado, no mesmo lugar que um dia um outro esteve. Novamente, toda a medida de interioridade que Areia proporciona ainda não será o bastante (e nem se desejava isso) para dominar completamente a matéria de que são feitas as emoções desta mulher.

Estivemos, nos dois filmes, tão próximos, tão dentro, apenas para descobrir que existe ainda tantos caminhos a se desvendar, caminhos que não competem a Areia ou a Outubro seguirem. Em cada plano, em cada corte, um mundo de outras imagens que Caetano Gotardo e Murilo Hauser nos sugerem, nos propõem, gentilmente nos dizendo um "agora é com vocês".

Rodrigo de Oliveira

 

 
















Outubro: o corpo morto ao fundo, e a duplicação
da protagonista, diante da câmera



































Areia: a memória que transforma o externo em interno,
o fundo real que ganha ares de cenário de estúdio