SOS SAÚDE
Michael Moore, Sicko, EUA, 2007
 

Michael Moore vem melhorando. Farenheit 9/11 já não era tão ruim quanto Tiros em Columbine. Toda a etapa de coleta de dados e de edição apontava um lado mais sólido do seu discurso. O ingrediente polêmico-performático era ainda profundamente constrangedor e inócuo, mas o filme trazia mais do que um simples conjunto de imagens e frases que a CNN jamais veicularia. Em Moore, e isso não é novidade, não se trata de escândalo e denúncia por um viés jornalístico, e sim de showbiz. No fundo, tanto em Farenheit 9/11 como agora em S.O.S. Saúde, o que Moore faz é um excelente inventário do discurso republicano, acoplado a um sistema retórico que, de alguma forma muito bem solucionado em seu novo filme, rende o mais típico espetáculo performático (televisivo?) à moda americana. Ele não apresenta um contra-discurso a Bush que seja inteligente e perspicaz. O supra-sumo de sua retórica consiste nos pontos obscuros deflagrados no discurso da própria ala conservadora que ataca. Resumindo: Michael Moore entende muito bem o pensamento dos inimigos, e sabe usá-lo a seu favor. S.O.S. Saúde é um filme assim: fala mais – e melhor – quando fala através dos inimigos, expondo o ridículo de suas alegações, e mobiliza os aliados (como na cena em que encontra americanos que vivem na França) menos para criar uma nova proposta de pensamento do que para reforçar o absurdo da proposta que seu filme se dedica a espinafrar.

Para além das artimanhas discursivas, S.O.S. Saúde é de longe o filme menos óbvio de Moore. A leviandade de Tiros em Columbine está afastada: aqui as peças não se montam de forma tão afoita. Moore investe numa modalidade interrogativa que mantém o cinismo, mas que é de fato uma necessidade de interrogar, de questionar, enquanto nos outros filmes tudo parecia já ter resposta – portanto, tudo soava falso e, por vezes, desonesto. O melhor de S.O.S. Saúde é aquela operação típica de Moore, e que dá justamente o tom de seu pertencimento a um americanismo profundo: é preciso invadir outro país, ir até o estrangeiro. Godard em Alemanha Nove Zero diz que os EUA só conhecem um tipo de guerra, civil. Primeiro lutaram entre si, depois começaram a combater ditadores ao redor do mundo, por estes estarem por demais parecidos com os EUA. Em S.O.S. Saúde, Moore vai atrás de sistemas de saúde (no Canadá, na Inglaterra, na França) que diferem radicalmente da máfia dos convênios implantada na América. Primeiro ele expõe casos em que o absurdo do sistema americano arruinou a vida de algumas pessoas. Depois vai ao estrangeiro e conversa com pessoas que, cada qual em sua posição (médico, paciente, chefe de serviço de saúde), defendem as vantagens e as maravilhas da saúde pública, ou seja, do acesso democrático ao tratamento médico. De um lado, o inferno; do outro, o paraíso. Moore reforça, quase atingindo um tom de fábula, a visão de que tudo funciona às mil maravilhas nos países que socializaram a medicina. Fragilidade do discurso? Superficialidade? Nem tanto, caso o espectador assuma seu verdadeiro lugar nessa partilha de informações e emoções (e S.O.S. Saúde apela ainda mais para o emocional do que os outros filmes de Moore) estabelecida lá desde o início.

A dobradinha política-sentimentalismo, sobretudo da forma que Moore a articula, faria muitos críticos subirem pelas paredes nos anos 70. E, dado o contexto, eles tinham razão. Mas eis que S.O.S. Saúde dedica toda sua parte final a essa blasfemada articulação e não se sai tão mal. Moore vai a Cuba na companhia de bombeiros americanos que ajudaram no 11 de setembro e, uma vez tendo adquirido doenças pulmonares ou cárdio-vasculares, foram abandonados pelo governo e entregues à selvageria dos planos de saúde. Ele vai, portanto, pedir ajuda ao inimigo de Bush, recorrendo a um hospital da ilha de Fidel Castro (a saúde pública cubana é famosa mundialmente) para tratar os heróis abandonados do 11 de setembro. Está certo que o encontro dos americanos com o corpo de bombeiros de Havana é meio constrangedor, parece aqueles momentos-melodrama dos piores reality shows televisivos (a seqüência que mostra a evolução do tratamento chega a lembrar Extreme Makeover!). Em outros momentos desse encontro, contudo, Moore atinge questões no mínimo curiosas, a exemplo da cena em que deflagra uma lógica de pilhagem imperialista às avessas: os americanos compram remédios para estocar como se fossem sacoleiros (em Cuba esses remédios custam uma bagatela, enquanto nos EUA custam uma fortuna). A idéia que está por trás daquele encontro, assim sendo, compensa o sentimentalismo cafona e, na verdade, revela um filme bem forte – talvez à revelia do próprio Michael Moore.

Luiz Carlos Oliveira Jr.