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                         Em A 
                          França, temos Camille. O ano é 1917, o mundo vive a Primeira Guerra, e ela 
                          recebe do front as cartas do marido François. “La 
                          France”, “François”: o medo 
                          de uma alegoria totalizante em moldes já conhecidos/gastos 
                          atravessa a mente do espectador. Mas o diretor é Serge 
                          Bozon, de Mods, musical still life feito de poses e repetições 
                          mais que de grandes coreografias e espetáculos visuais, 
                          e logo constatamos que A França fará de sua lama de fundo mitológica não o tema para hinos 
                          ou cantos épicos de vitória, e sim o lugar singelo de 
                          uma música branda, acústica, 
                          nostálgica, fora do tempo e do espaço, uma interseção 
                          de trova medieval com Beach Boys e o 
                          Flaming Lips de Transmissions from the satellite heart. 
                          Nada de cantos de batalha em A 
                          França. Até porque o filme é uma poesia da deserção. 
                          Camille se junta a uma pequena 
                          tropa de soldados franceses que estão desertando da 
                          guerra, perambulando por um espaço espectral e distante, 
                          onde a guerra é o fora-de-campo. Bozon faz uma anti-geografia do território francês: nenhum aspecto pitoresco, 
                          nenhum aspecto icônico, nenhum aspecto cartográfico, 
                          apenas campos esverdeados de um verde não-peculiar, 
                          qualquer, assignificante. 
                          A personagens nômades, corresponde uma França inapreensível. 
                          As paisagens humanas recebem um mesmo tratamento: se 
                          o espaço é desértico e indiferente, a dramaturgia por 
                          sua vez é enigmática, vívida à mesma medida que 
                          inexpressiva (há alguma coisa no rosto dos personagens, 
                          alguma coisa de difícil definição). 
                          Já nos primeiros minutos percebemos que Bozon 
                          dá continuidade em A 
                          França a um tipo peculiar de estudo de fisionomias. 
                          Quando Camille corta o cabelo 
                          e se veste de homem, partindo na jornada quixotesca 
                          em busca do marido, entra em cena uma nova versão da 
                          atriz Sylvie Testud: rosto frágil, anódino, assexuado, 
                          como um animalzinho selvagem que não nos induz a pensar 
                          se é macho ou fêmea. Ela recebera de François uma carta 
                          de término de relação, elíptica e pouco esclarecedora. 
                          Não conformada, resolveu ir a seu encontro.  
                           
                          Céline Bozon, 
                          irmã de Serge e diretora de fotografia do filme, 
                          destila tons de verde, azul, cinza, um dégradé 
                          melancólico e noturno. A França é um filme com a cor da noite. 
                          Mesmo o dia funciona como uma dimensão da noite, ou 
                          como um simples intervalo entre a noite anterior e a 
                          seguinte. Esse aspecto fica melhor 
                          ilustrado quando Bozon filma 
                          o horário de transição, o limbo entre a escuridão e 
                          o sol: durante a primeira música do filme, o 
                          oficial que lidera a tropa desertora, encarnado magistralmente 
                          por Pascal Greggory, tira a farda e vai se banhar no rio. Há um plano 
                          dele nu, enquadrado de longe, dirigindo-se ao rio, com 
                          o céu tomado pela aurora. Todo o elemento mítico do 
                          filme está ali naquele plano. O que presenciamos não 
                          é a imagem dos vencedores, tampouco dos perdedores: 
                          o filme trata de desertores e uma espécie de pictorialismo 
                          crepuscular assombra aquela imagem. As canções que embalam 
                          o filme são os hinos dos perdidos, dos sem rumo, mas 
                          não dos losers. 
                          Canções tocadas em instrumentos improvisados com latas, 
                          pedaços de madeira, objetos readaptados. Os instrumentos 
                          musicais prolongam o visual dos próprios soldados, de 
                          uniforme rasgado, sujo, desbotado, seres passantes, 
                          reciclados de uma fábula mal contada, munidos de melodias 
                          para sonorizar as baladas de um western impossível. 
                          Suas andanças nos fazem lembrar alguns dos melhores 
                          filmes já feitos sobre a Segunda Guerra, como 
                          Objective, Burma! (Walsh), A Walk in the Sun 
                          (Lewis Milestone) ou Fixed Bayonets (Fuller). 
                          Mas, felizmente, Bozon não fez um filme de aspecto 
                          vintage, ou seja, não exibiu um artigo 
                          de antiquário. Seu filme revisita o passado do 
                          cinema de uma forma viva e pouco comum nos dias de hoje. 
                           
                          Embora os soldados de A França fujam da 
                          guerra, a violência é inevitável e aparece no meio do 
                          caminho, vez ou outra, como na cena em que os soldados 
                          são salvos de uma armadilha por um fazendeiro e seu 
                          filho. A cena culmina na descoberta, por parte dos soldados, 
                          de que Camille é uma mulher. 
                          Mas o personagem de Greggory 
                          resolve deixar que ela continue acompanhando o grupo. 
                          Afinal, é justamente de seres excessivamente sensíveis 
                          – sensíveis demais para uma guerra – que é composto 
                          aquele “regimento”. Camille, 
                          no fundo, está mais preparada que eles para essa 
                          guerra (como demonstra na cena em que ataca um inimigo 
                          de sentinela). A História não se narra senão do ponto 
                          de vista dos heróis, sabemos disso. A França, no entanto, não tem nada 
                          de histórico, e oferece a perspectiva (ou anti-perspectiva) 
                          de um grupo de pessoas que foram à guerra para cantar 
                          um trajeto que leva a um lugar imaginário, talvez pacífico, 
                          talvez não. 
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                          
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