|  
                         A curta porém 
                          já numerosa carreira de François Ozon tem um paradoxo dos mais curiosos. Ele construiu sua 
                          fama, ganhou espaço nos festivais e na mente das pessoas 
                          pelo mundo todo muito antes de ter sequer sido verdadeiramente 
                          compreendido. Seu cinema já foi confundido com muita 
                          coisa, de um naturalismo fortemente encenado ao de artesão 
                          num mundo de autores, pelo constante tráfego de gêneros. 
                          Naturalista, decerto, é algo que Ozon 
                          não é. A sua faceta foi sendo desvendada aos poucos, 
                          entre os acertos e erros, modulações e emulações. O 
                          Amor em Cinco Tempos é o marco definitivo de sua 
                          carreira, um filme inteiramente dedicado à construção 
                          de uma imagem, que nasce e morre por si, fatalmente 
                          falsa como o filme todo revela, mas ainda assim absolutamente 
                          verdadeira. É a partir daí que finalmente pôde se compreender 
                          um filme de Ozon. É maneirismo puro. E daí surge a 
                          urgência de se reavaliar, sob esta perspectiva agora 
                          mais evidente sua obra, até mesmo um filme a priori 
                          intolerável como Swimming 
                          Pool. 
                           
                          Angel é mais um mergulho nesse delírio do cinema, 
                          de braços abertos, sem medo de errar. É um filme de 
                          tom completamente acima do normal, que funciona como 
                          uma espécie de conto de fadas kitsch. É um conto de 
                          fadas absolutamente errado na medida em que não há a 
                          torcida óbvia pela protagonista, já que o filme abdica 
                          da noção de simpatia com os personagens. Eles são estranhos, 
                          egoístas, mergulhados dentro de suas próprias loucuras, 
                          uns soam mais sãos que outros, como o de Sam 
                          Neill, mas no fundo são tão solitários, e até mesmo 
                          amargurados, quanto Angel. Ozon 
                          nos força a acompanhá-los nesta jornada épica, cheia 
                          de elipses pela história – uma história que diz respeito 
                          muito mais a sua noção interna de cinema do que a história 
                          do mundo em si – carregada pela fatalidade. A construção 
                          estrutural da narrativa deste filme é particularmente 
                          única, pois possui um ritmo incrivelmente bem composto. 
                          É incomparável em sua ferocidade no contar daquelas 
                          imagens, se articulando diretamente ao conceito visual 
                          extravagante. 
                           
                          A mais costumeira das associações que Ozon 
                          recebe é com Fassbinder. É 
                          algo que sempre fez sentido, e que se articula muito 
                          bem com esta idéia de maneirismo evidente que o cinema 
                          de Ozon assume para si. Mas é por vezes usada num tom errado, 
                          como se Ozon acreditasse que fosse Fassbinder. 
                          É errado, porque entre outros exageros, seu cinema é 
                          menos decalcado de Fassbinder do que decalcado de um espírito que a obra de Fassbinder também possuía. Uma noção de retrabalhar 
                          os códigos do cinema, os gêneros, todos a sua forma, 
                          num outro tempo. É o mesmo que associar Todd 
                          Haynes a Fassbinder de forma indissociável – a relação entre eles é 
                          profunda, mas em certa instância apenas. Angel 
                          não é uma tentativa de um melodrama, ao menos não no 
                          sentido clássico do termo – as noções de cinema de Ozon pertencem a outro tempo. Se ele o é de alguma forma, 
                          é pela recodificação do gênero, pois aquilo que está 
                          na imagem é um filme sobre o cinema e o melodrama como 
                          artifícios visuais, e não um melodrama em si. 
                           
                          Angel talvez seja o filme de Ozon 
                          onde suas raízes maneiristas fiquem mais evidentes. 
                          É um filme aberto, corajoso ao se 
                          arriscar em ser tão franco em sua proposta. Se 
                          O Amor em Cinco Tempos era inteiro a construção 
                          daquela imagem, Angel é todo essa imagem. A face 
                          de um maneirismo que é a falsidade mais perfeita de 
                          uma imagem que existe apenas como cinema. Numa analogia 
                          contemporânea, Angel é o oposto perfeito de Le 
                          Voyage du ballon rouge, 
                          como apontado por Luiz Carlos Oliveira Jr. em sua crítica 
                          do filme de Hou Hsiao-Hsein: o filme de Ozon é um retângulo que se completa em si. Sua narrativa over, as cores berrantes, palácios, o fundo falso 
                          por trás do carro, o “paraíso” – é um cinema materialista, 
                          evidentemente. Um cinema onde a mentira, a falsidade 
                          da imagem, está sempre no centro. Um cinema deliciosamente 
                          fascinante. 
                           
                            
                          Guilherme Martins 
                           
                         
                         |