|   Se existe algum 
                          grande mérito em A Via Láctea, é a vontade 
                          de experimentar de Lina Chamie. 
                          Para contar uma história que – descobrimos durante o 
                          filme – se passa na mente do protagonista no momento 
                          de sua morte, a diretora utiliza todos os recursos de 
                          linguagem que consegue imaginar: voz em off, alternância de ponto-de-vista, repetição 
                          da mesma cena com pequenas diferenças, deslocamento 
                          temporal e espacial, jump-cuts, descrição 
                          de personagens e locais à la Ilha das Flores, meta-linguagem, mudanças de 
                          registro (poético, literário, teatral, naturalista) 
                          ou de suporte (é captado em DV, Super-16 e 35mm), 
                          sujeira, granulação, e esta lista pode continuar quase 
                          infinitamente. Na construção sonora, mistura trilha 
                          sonora de desenhos animados, os barulhos da cidade de 
                          São Paulo, diversas vozes sobrepostas, notícias de rádio 
                          e televisão, música original e um tanto de outras idéias 
                          (tantas que impossíveis de identificar em uma primeira 
                          visão). Essa profusão de elementos procura construir, 
                          através de uma complexa estrutura, o resgate do amor 
                          entre duas pessoas após uma grande briga, na metrópole 
                          de São Paulo. E, infelizmente, o filme peca por, 
                          no meio de tantas idéias, não alcançar nunca o sentimento 
                          desejado.  
                           
                          Talvez porque, ainda que não faça sentido cobrar um 
                          equilíbrio na construção de A 
                          Via Láctea (considerando que a diretora busca certamente 
                          o deslocamento, ou melhor, uma esquizofrenia que revele, 
                          aos poucos, as facetas e a história dos personagens), 
                          falte nessas imagens destoantes um fluxo, ou mesmo uma 
                          simples relação de forças que permita manter o interesse 
                          e faça nascer o sentimento entre as duas pessoas. Em 
                          menos de uma hora e meia, a diretora passeia, rapidamente, 
                          por toda a história de amor entre os dois, justifica 
                          as brigas e os problemas, define as personalidades, 
                          os coloca na cidade de São Paulo – com seu trânsito, 
                          seus mendigos, seus outdoors –, e podemos compreender 
                          tudo que ela deseja alcançar. O grande problema é que 
                          talvez ela deseje alcançar coisas demais – e, principalmente, 
                          com elementos demais – e o que deveria estar por trás 
                          dessas imagens (o amor entre os dois protagonistas), 
                          nunca aparece de verdade.  
                           
                          Nessa aglomeração de intertextualidades e referências, 
                          as seqüências não conseguem ir além delas mesmas, e 
                          em um filme que procura produzir dessa mistura um sentimento, 
                          o registro de superfícies, apenas, se torna um problema. 
                          Ainda que a montagem tente relacionar os diversos momentos 
                          do filme, as mudanças constantes de ritmo, tom e registro 
                          e a não-preocupação com o significado e a forma de cada 
                          um desses momentos para além deles (ou, em outras palavras, 
                          com a forma e a relação de cada um deles em relação 
                          aos outros) acaba transformando cada seqüência em uma 
                          ilha isolada, e a obra que só poderia existir a partir 
                          da junção delas, naturalmente, não existe. 
                          Pois, mesmo como seqüências isoladas, elas não se sustentam, 
                          soando sempre indefinidas, inacabadas, fragmentárias. 
                          Afinal, dentro da construção de A Via Láctea, 
                          cada seqüência é exatamente isso: fragmento de 
                          um amor destruído. A grande questão é que, juntos, os 
                          mesmos fragmentos não conseguem reconstruí-lo, 
                          nem minimamente.  
                           
                          A Via Láctea 
                          existe enquanto caos – o caos da vida interior do escritor, 
                          o caos dos relacionamentos e, principalmente, o caos 
                          da cidade de São Paulo – e talvez enquanto discurso, 
                          mas apenas nessas duas instâncias. O problema reside, 
                          em parte, porque se não existe um todo quando, logicamente, 
                          deveria, nada conseguirá funcionar 
                          direito. Os atores, e em especial Alice Braga, 
                          parecem sempre deslocados, distantes de seus papéis 
                          (e não estamos falando aqui de uma simples premissa 
                          anti-naturalista, mas de pessoas 
                          que, no meio desse caos, não conseguem chegar às personalidades 
                          que o filme pede), e o mesmo problema ocorre com a montagem. 
                          O tempo todo ela tenta construir relações que nunca 
                          funcionam a contento, talvez porque sejam colocadas 
                          às vezes de forma bastante fácil e banal, talvez porque, 
                          em outras vezes, as relações simplesmente não existam. 
                          O erro, naturalmente, surge de uma estrutura que não 
                          consegue suprir a disparidade entre o conceito – talvez 
                          bastante interessante, nunca poderemos saber – e o modo 
                          como colocá-lo na tela.  
                           
                          Assim, ficamos com uma obra cuja força parece sempre 
                          disposta a surgir, mas que permanece inacessível para 
                          o espectador, presa no escombro das mil possibilidades. 
                          Afinal, ao escolher tudo, e sempre, a diretora faz perder 
                          o valor de suas escolhas, ou mesmo o de seus significados. 
                          Assim, atropela a duração, o ritmo e, finalmente, o 
                          sentimento que só pode surgir de tudo isso. Ao espectador, 
                          cabe talvez admirar ao longe a 
                          vontade e o risco, ainda que o produto final esteja 
                          um tanto aquém deste impulso inicial. 
                           
                            
                          Leonardo Levis 
                          
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