a via láctea
Lina Chamie, Brasil, 2007

Se existe algum grande mérito em A Via Láctea, é a vontade de experimentar de Lina Chamie. Para contar uma história que – descobrimos durante o filme – se passa na mente do protagonista no momento de sua morte, a diretora utiliza todos os recursos de linguagem que consegue imaginar: voz em off, alternância de ponto-de-vista, repetição da mesma cena com pequenas diferenças, deslocamento temporal e espacial, jump-cuts, descrição de personagens e locais à la Ilha das Flores, meta-linguagem, mudanças de registro (poético, literário, teatral, naturalista) ou de suporte (é captado em DV, Super-16 e 35mm), sujeira, granulação, e esta lista pode continuar quase infinitamente. Na construção sonora, mistura trilha sonora de desenhos animados, os barulhos da cidade de São Paulo, diversas vozes sobrepostas, notícias de rádio e televisão, música original e um tanto de outras idéias (tantas que impossíveis de identificar em uma primeira visão). Essa profusão de elementos procura construir, através de uma complexa estrutura, o resgate do amor entre duas pessoas após uma grande briga, na metrópole de São Paulo. E, infelizmente, o filme peca por, no meio de tantas idéias, não alcançar nunca o sentimento desejado.

Talvez porque, ainda que não faça sentido cobrar um equilíbrio na construção de A Via Láctea (considerando que a diretora busca certamente o deslocamento, ou melhor, uma esquizofrenia que revele, aos poucos, as facetas e a história dos personagens), falte nessas imagens destoantes um fluxo, ou mesmo uma simples relação de forças que permita manter o interesse e faça nascer o sentimento entre as duas pessoas. Em menos de uma hora e meia, a diretora passeia, rapidamente, por toda a história de amor entre os dois, justifica as brigas e os problemas, define as personalidades, os coloca na cidade de São Paulo – com seu trânsito, seus mendigos, seus outdoors –, e podemos compreender tudo que ela deseja alcançar. O grande problema é que talvez ela deseje alcançar coisas demais – e, principalmente, com elementos demais – e o que deveria estar por trás dessas imagens (o amor entre os dois protagonistas), nunca aparece de verdade.

Nessa aglomeração de intertextualidades e referências, as seqüências não conseguem ir além delas mesmas, e em um filme que procura produzir dessa mistura um sentimento, o registro de superfícies, apenas, se torna um problema. Ainda que a montagem tente relacionar os diversos momentos do filme, as mudanças constantes de ritmo, tom e registro e a não-preocupação com o significado e a forma de cada um desses momentos para além deles (ou, em outras palavras, com a forma e a relação de cada um deles em relação aos outros) acaba transformando cada seqüência em uma ilha isolada, e a obra que só poderia existir a partir da junção delas, naturalmente, não existe. Pois, mesmo como seqüências isoladas, elas não se sustentam, soando sempre indefinidas, inacabadas, fragmentárias. Afinal, dentro da construção de A Via Láctea, cada seqüência é exatamente isso: fragmento de um amor destruído. A grande questão é que, juntos, os mesmos fragmentos não conseguem reconstruí-lo, nem minimamente.

A Via Láctea existe enquanto caos – o caos da vida interior do escritor, o caos dos relacionamentos e, principalmente, o caos da cidade de São Paulo – e talvez enquanto discurso, mas apenas nessas duas instâncias. O problema reside, em parte, porque se não existe um todo quando, logicamente, deveria, nada conseguirá funcionar direito. Os atores, e em especial Alice Braga, parecem sempre deslocados, distantes de seus papéis (e não estamos falando aqui de uma simples premissa anti-naturalista, mas de pessoas que, no meio desse caos, não conseguem chegar às personalidades que o filme pede), e o mesmo problema ocorre com a montagem. O tempo todo ela tenta construir relações que nunca funcionam a contento, talvez porque sejam colocadas às vezes de forma bastante fácil e banal, talvez porque, em outras vezes, as relações simplesmente não existam. O erro, naturalmente, surge de uma estrutura que não consegue suprir a disparidade entre o conceito – talvez bastante interessante, nunca poderemos saber – e o modo como colocá-lo na tela.

Assim, ficamos com uma obra cuja força parece sempre disposta a surgir, mas que permanece inacessível para o espectador, presa no escombro das mil possibilidades. Afinal, ao escolher tudo, e sempre, a diretora faz perder o valor de suas escolhas, ou mesmo o de seus significados. Assim, atropela a duração, o ritmo e, finalmente, o sentimento que só pode surgir de tudo isso. Ao espectador, cabe talvez admirar ao longe a vontade e o risco, ainda que o produto final esteja um tanto aquém deste impulso inicial.

Leonardo Levis

 

 








Nesta terra das mil possibilidades chamada A Via Láctea, a distância entre os protagonistas nunca é suprida.