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                         As primeiras imagens de Valente 
                          mostram recortes de prédios e letreiros luminosos, calçadas, 
                          sarjetas, gente se cruzando apressadamente, um pequeno 
                          painel da Nova York dos dias de hoje. O filtro destas 
                          imagens é dado pela voz em off 
                          de Erica Bain, 
                          locutora de um programa de 
                          rádio chamado “Caminhada pela Rua”, misto de crônica 
                          urbana e confissão memorial da apresentadora. Mais que 
                          os textos em que lamenta o estado cada vez menos acolhedor 
                          da cidade ou a falta que sente da tartaruga que criara 
                          na infância, Erica capta propriamente 
                          os sons deste lugar, armada com um gravador e um microfone. 
                          Pela Times Square, 
                          no metrô, nas quadras de basquete a céu aberto, ela 
                          vai constituindo este inventário da vibração nova-iorquina, 
                          e aos poucos tomando seu partido, até que vire, ela 
                          mesma, mais um de seus ruídos. A distância entre a simples 
                          captura e a total imersão (ao ponto 
                          de se tornar aquilo que, até então, apenas se 
                          observava) é justamente a que Neil Jordan percorre em 
                          seu filme. 
                           
                          Essa Nova York de Valente, por exemplo. 
                          Ela vive sob o fantasma do medo e da paranóia, está 
                          repleta de aparatos de vigilância, produz uma série 
                          de referências à Guerra no Iraque, desde a piada de 
                          um cafetão até o chamado à consciência de uma das ouvintes 
                          do programa de Erica. E, no 
                          entanto, o 11 de setembro nunca é sequer mencionado. 
                          Um bordão repetido à exaustão pela protagonista versa 
                          sobre a transformação íntima que sofrem todos aqueles 
                          que passaram por uma grande tragédia, a ponto de não 
                          mais existirem como antes, mas de fato se tornarem outras 
                          pessoas, pessoas estranhas. A marca da tragédia nas 
                          Torres Gêmeas tornou Nova York, aos olhos de Valente, 
                          uma cidade estranha. Da tragédia existem apenas alguns 
                          sinais, mas um pacto de silêncio se estabeleceu ali. 
                          A quarentena que Hollywood se impõe para tratar destes 
                          grandes traumas americanos parece ainda valer para Valente, 
                          mas apenas no caso específico da cidade em que se passa. 
                          Há uma estranheza ali, mas percebê-la enquanto tal não 
                          interessa a Neil Jordan. Mergulhar no drama da cidade 
                          exigiria, figuras similares que são, mergulhar no drama 
                          de Erica, e Valente quer delas duas, de Nova York e de 
                          sua protagonista, não mais que o espetáculo de suas 
                          novas identidades. Neil Jordan ignora as revoluções 
                          (aviões jogados contra prédios, gangues matando a pauladas 
                          os namorados com quem vivíamos muito felizes). Seu partido 
                          é o da reação. 
                            
                          Há, no fundo, um desejo de diagnóstico, mas ele 
                          nunca esconde a afetação indignada que percebemos em 
                          qualquer “análise política” feita por colunistas sociais 
                          (e socialmente responsáveis, é claro). Valente 
                          parece querer falar desse mundo pós-11 de setembro, 
                          parece querer identificar em Erica Bain o protótipo do “novo 
                          homem” surgido a partir deste marco, mas suas colocações 
                          nunca passam disso, de elementos ilustrativos colocados 
                          em cena como se objetos de decoração intelectual fossem. 
                          É como a política educacional que considera como alfabetizado 
                          todo aquele que conseguir desenhar seu próprio nome 
                          num papel: Neil Jordan vê seu trabalho como cineasta 
                          o ato de simplesmente “desenhar” na película as imagens 
                          que captura neste mundo transformado, sem que nunca 
                          precise exatamente entender o som de cada letra, o que 
                          significa a junção de duas delas numa sílaba, a força 
                          existente na formação de uma palavra. Um caso exemplar 
                          (ainda que não único, infelizmente) 
                          de um cineasta-funcional.  
                           
                          Assim, Valente vai amontoando estes garranchos 
                          preguiçosos sobre o estado do mundo. Diversos dispositivos 
                          eletrônicos são espalhados por Valente, celulares 
                          que transmitem vídeos, crimes sendo gravados ao vivo 
                          por câmeras portáteis, circuitos internos de vigilância, 
                          tudo isso postado como se fosse um grande e inédito 
                          achado sociológico. Não, não é. Impossível ignorar a 
                          indigência com que a montagem paralela do começo de 
                          Valente mostra o flashback de uma transa entre Erica 
                          e o namorado, equivalendo esta sensação de ser despida 
                          por seu amor à sensação de ter suas roupas íntimas cortadas 
                          pelos para-médicos que a tentam salvar depois do espancamento 
                          brutal. Impossível porque temos na memória a cena de 
                          Munique, de Steven 
                          Spielberg, em que o chefe de uma missão da Mossad faz sexo com sua mulher mas 
                          é atormentado pelas lembranças do massacre dos atletas 
                          israelenses seqüestrados, lembranças que ele nem deveria 
                          ter uma vez que não esteve lá, mas que verdadeiramente 
                          lhe pertencem. Mais que isso, diante da grandeza de 
                          A Última Noite, de Spike 
                          Lee, um filme feito no calor da tragédia e que talvez 
                          nunca seja superado em sua profundidade de percepção 
                          do trauma do 11 de setembro, e um filme que também tem 
                          boa parte de sua ação dramática desenrolada num dos 
                          túneis escuros e desertos do Central Park, com a encenação de espancamentos e ressurreições, e 
                          até mesmo com um cachorro de companhia, é impossível 
                          ignorar a displicência com que estes mesmos elementos, 
                          nas mãos de Neil Jordan, não servem para mais que a 
                          justificação de uma ordem moral retorcida. 
                           
                          Em algum momento, Erica Bain 
                          cita em seu programa uma passagem de D.H. Lawrence 
                          onde o escritor inglês diz que “a alma americana é naturalmente 
                          assassina”. Novamente, não importará a Neil Jordan mergulhar 
                          nesse conceito tão duro, perceber sua complexidade, 
                          sua amplidão. Valente é uma espécie de foto polaróide dessa alma: instantânea, corriqueira, chapada, esmaecida. 
                          Talvez fosse o caso de rejeitar o 
                          filme por sua assumida veia fascista, que considera 
                          a onda justiceira de Erica, 
                          bem encorpada por Jodie Foster, 
                          como uma limpeza étnica (todos os que não forem “puros 
                          de espírito” merecem morrer, sendo difícil disfarçar 
                          a distorção dessa idéia de pureza). Ou abominar o sopro 
                          de criatividade que Jordan parece se auto-atribuir ao 
                          retratar uma personagem pendular fazendo movimentos 
                          de pêndulo com a câmera, inclinando-a de um lado para 
                          outro sempre que a protagonista passa por algum corredor 
                          escuro ou beco sinistro, tudo acompanhado por uma trilha 
                          sonora que acentua o quão “radical” e “inventivo” aquilo 
                          é. Ou ainda ridicularizar toda a plastificação da violência, como se uma embalagem bonita fosse 
                          o bastante para ignorar a força criminosa que pulsa 
                          ali dentro (e isto serve tanto para a “assassina boa” 
                          de cabelo loiro e corte da moda como para a profusão 
                          de penduricalhos de linguagem mal-utilizados, gruas, 
                          closes, flashbacks tensos e barulhentos). Talvez fosse até 
                          preciso condenar Valente à lata de lixo da imoralidade, 
                          por sua defesa da justiça com as próprias mãos que, 
                          localizada na Nova York do Ground Zero, é de uma miopia histórica inacreditável (os terroristas 
                          são apenas os fanáticos religiosos que provocam estragos 
                          por razões que não queremos compreender, mas quando 
                          a classe média americana e branca assume o capuz do 
                          carrasco, aí tudo se justifica pelo bem à sociedade 
                          livre e democrática). Tudo isto parece bastante aplicável 
                          ao filme, mas há um problema ainda anterior.  
                           
                          Neil Jordan lança Valente no mesmo ano em que 
                          Paul Greengrass completou uma trilogia de espionagem com O Ultimato 
                          Bourne. Dois 
                          filmes de gênero, dois filmes que tomam parte 
                          do mesmo espírito contemporâneo, dois filmes que lidam 
                          com a obsessão americana de resolução dos problemas 
                          sociais e históricos através do assassinato (legalizado 
                          ou apenas moralmente patrocinado pelo senso comum). 
                          A trajetória de Jason Bourne se construiu em torno do momento em que ele se confrontaria 
                          com os responsáveis por sua transformação numa máquina 
                          de matar. Greengrass não realiza nenhum grande tratado 
                          pró-humanidade, e nem mesmo chega a condenar 
                          os políticos e militares americanos que propagaram e 
                          oficializaram esta obsessão. A atitude que diferencia 
                          Greengrass de Jordan é muito 
                          simples, na verdade. O Ultimato Bourne 
                          olha com absoluto espanto para este estado de coisas. 
                          Greengrass não quer evitar 
                          que seu temor com a descartabilidade 
                          da vida se manifeste. Ele está lá, sobretudo 
                          nos acessos que Bourne tem ao lembrar de seu treinamento secreto. O barulho 
                          de um tiro, o tamanho de uma explosão, o 
                          sangue de alguém espalhado no meio de uma estação de 
                          metrô, elementos tão caros ao tipo de cinema a que O 
                          Ultimato Bourne e Valente 
                          se filiam, não podem ser simplesmente jogados na tela, 
                          não num momento em que ecoam diretamente do mundo, e 
                          não apenas por serem uma simples convenção da fórmula 
                          do filme de ação. Valente deve ser repudiado 
                          exatamente por isso. Diante da imagem radical de uma 
                          pessoa apontando uma arma para a cabeça de outra e atirando 
                          sem qualquer piedade ou tremor (“por que minhas mãos 
                          não tremem?”, se pergunta Erica 
                          em diversos momentos), e diante do que isso significa 
                          no mundo de hoje, um cineasta pode fazer quase tudo 
                          – quase tudo, menos fingir que isto é algo normal. Menos 
                          filmar a morte violenta como uma banalidade, elogiando 
                          sua violência, ridicularizando sua banalidade, disfarçando 
                          tudo como se fosse um grande palco de humanidade. Valente 
                          merece repúdio porque sua suposta valentia é a manifestação 
                          da mais pura covardia diante do confronto real com o 
                          mundo que o comporta. 
                           
                            
                          Rodrigo de Oliveira 
                          
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