SHORTBUS
John Cameron Mitchell, Shortbus, EUA, 2006

Shortbus tem um forte potencial imaginário. Ao mesmo tempo em que trata das questões mais mundanas e palpáveis, insere elementos quase fantásticos para contribuição na operação que se desenha no entorno e no interno do filme. John Cameron Mitchell é quase um desmitificador. Não por trabalhar questões vistas como tabus, como o sexo grupal, a homossexualidade e o sexo explícito, mas pela forma como trata estas problemáticas como questões superadas. O filme parte do pressuposto que nenhum espectador irá, nos dias de hoje, se confrontar com o absurdo da homossexualidade ou a transgressão do sexo explícito. As questões em Shortbus são outras. Mitchell está muito mais para analogias políticas e para histórias de amor, sempre tratadas com singeleza, dando uma beleza hedonista que funciona extremamente bem no filme.

Beleza também plástica. A começar pelo primeiro plano do filme: uma câmera se movimenta em camadas de cinza, se distanciando lentamente e girando ao redor de uma construção de concreto que aos poucos vai se revelando. É a Estátua da Liberdade que domina o quadro, com a cidade ao fundo, regida pelas luzes que acendem e apagam ditando o ritmo do funcionamento da mais importante metrópole do mundo.

A Nova York de Shortbus é toda animada. As casas e construções são maquetes simples, que igualam toda e qualquer variação estilística ou construções arquitetônicas. Aqui, a cidade é um todo, formado pela heterogeneidade mais que conhecida. Em escala geométrica, o clube Shortbus está para Nova York, como Nova York está para o mundo. Cada um com suas especificidades, e um sempre dialogando e interferindo no outro. E se "o mundo" não está evidenciado, é também por Nova York não estar detalhada. A atenção do particular é no Shortbus, local de encontro das facetas inusitadas do indivíduo, mas, sobretudo, de congregação de amigos e amantes.

E após adentrarmos, como numa explosão, na esfera particular, vamos aos poucos conhecendo e nos familiarizando com aqueles personagens, que se em um primeiro momento são bastante estranhos, no momento seguinte já são nossos queridos. A câmera que sai da Estátua da Liberdade vai rapidamente passando pela cidade até entrar na casa de Jamie, o primeiro de muitos dos personagens do filme. O vemos numa posição no mínimo inesperada. Jamie tenta chupar seu próprio pau, fazendo malabarismos esquisitíssimos. Ainda estranhos com a figura, somos apresentados a alguns dos demais personagens: uma dominatrix sodomizando um cliente e um casal fazendo sexo em posições dignas de dar inveja em qualquer mestre do kama-sutra.

Mas desde já a câmera de Mitchell não está interessada em problematizar o sexo. Há uma certa construção formal que indica um balanço entre o glamour e o bizarro, o amor e o prazer, a sátira e a comédia. As cores são vibrantes, as luzes são potentes, os rostos são visíveis. O sexo (e também os órgãos sexuais) não são procurados, nem escondidos. Eles estão em quadro porque os personagens se viraram para a câmera dessa forma. Se a primeira seqüência era toda realizada em animação, os planos seguintes são realizados na esfera da fantasia. O sexo como elemento de propulsão mágica e fabulosa. Ainda que presente e palpável, daí os gritos, o suor, a exaustão corporal, o gozo.

Quando, ufa, respiramos após seqüências tão enérgicas, Mitchell nos convida a adentrar na individualidade dos personagens. O namorado de Jamie chega em casa. É James. Os dois se beijam, mas é evidente o clima estranho que assombra o casal. Somos então inseridos nos conflitos pessoais e de relacionamentos. Mitchell nos coloca então diretamente na esfera afetiva, ignorando a problemática da existência de casais gays.

Não que seja elemento definitivo, mas as seqüências iniciais de Shortbus indicam claramente o caminho a ser traçado pelo filme. Passamos da estafa sexual ao carinho entre homens em poucos minutos. Passamos da esfera pública e reconhecível à esfera particular, pulsante e doce. Passamos, sobretudo, de uma posição distante e recatada ao desbunde, ao divertimento e à afeição compartilhada. Resta seguir a levada e cair dentro!

Então entremos no famigerado Shortbus: ao mesmo tempo clube das perdições e confessionário sentimental. Ponto de encontro dos personagens e de seus medos, inseguranças, constrangimentos. Mas aqui não há espaço para joguetes psicológicos. Shortbus é ponto de congregação. É aqui que a dominatrix revelará sua insatisfação profissional e seu desejo pelo amor. É aqui que a terapeuta sexual revelará sua inexperiência com um orgasmo. É aqui que o casal Jamies encontrará o terceiro indivíduo que completará sua relação. É aqui que convergirão os sentimentos e vontades pulsantes da Nova York que se apaga para acender dentro de Shortbus.

É no clube também que existirão as referências ao momento contemporâneo vivido pelos personagens, pelos realizadores, pelos espectadores: o pós-11/09. Como figuras emblemáticas, estão presentes no mesmo quadro um garoto modelo, bonito, olhar distante, projeção no infinito e o ex-prefeito de Nova York, com rugas reveladoras da velhice e da experiência, da sabedoria e da prática. Este revela ao jovem que o Shortbus é o lugar onde os pecadores encontram a tolerância. Shortbus, ou Nova York, é o centro agregador das mais diversas etnias e ideologias. Ainda que elas existam em conflito, há uma convivência cotidiana. Um sentimento paradoxal, uma vontade de união.

E é na mesma conversa que o ex-prefeito questiona o garoto de seus pecados. No silêncio, acaba confessando que quando prefeito foi acusado de não investir o suficiente no tratamento da AIDS. Com lágrimas nos olhos, diz que fez o possível que estava ao seu alcance, com a exceção de se revelar como homossexual, pois "ainda não estava preparado". As lágrimas escorrem, o sentimento de culpa se externa. O garoto o abraça e carinhosamente lhe atribui um beijo.

A cena é um composto do papel do prefeito (público) com o do indivíduo (privado). É também a constatação de que a assimilação da existência e do reconhecimento da homossexualidade é uma questão que remete a tempos passados. Com sutileza, Mitchell alfineta os que ainda se incomodam com tal questão.

E é o mesmo garoto que se envolverá com o casal Jamies. Dispostos a procurar um novo elemento, Ceth aparece como incremento na relação do casal. Quando os três fazem um triângulo de fato, um chupando o outro, ao trocar de posições, seus corpos parecem desenhar uma estrela, brilhante, ressaltada pelo suor que emana de seus corpos. Mitchell filma com graça, distanciando-se de qualquer agressão moral. Faz belo do estranho. E faz do belo, o normal.

Mas aos poucos percebemos que Ceth na verdade veio preencher o vazio que Jamie irá deixar. Num ato já indiciado deste o começo do filme, ele tenta o suicídio como forma de libertação dos traumas não resolvidos. Aparece o então misterioso fotógrafo que vem salvar a sua vida e trazer novas esperanças. Assim funciona Shortbus, local de externar os traumas, dividindo-os e recebendo ajuda. O mesmo processo se dá com Sofia. O fato de nunca ter tido um orgasmo é compartilhado com os outros "membros" do clube. Estes querem mais é ajudá-la. E se seu problema é espalhado pelo Shortbus, é na tentativa de mais pessoas estarem na função da solidariedade. Uns tem o dom da escuta, outros tem as pegadas sexuais, outros tem as táticas de sedução. O que importa é fazer com que a terapeuta sexual resolva seu problema. O que importa é que a dominatrix consiga conviver em paz com seus anseios. O que importa é que Bitch, a recepcionista do clube, consiga transmitir a alegria e a vivacidade que existe ali.

Se o filme prega a união, o dar as mãos, certamente ganha força no trabalho conjunto que se revela enquanto construção. Uma arte primorosa, uma trilha contagiante e tocante (dirigida pelos Yo La Tengo), uma iluminação construtiva e potente, e um elenco muitíssimo afinado, que transita com extrema precisão entre o sexo e o drama. Nem falhas na cama, nem falhas na fala. Os personagens de Shortbus trocam um pau por uma lágrima, ou um sorriso por uma bunda com a maior graça e sutileza. Aqui é Shortbus, o lugar da comunhão. Estejamos juntos, na tentativa de superação de traumas, em busca da vida. Bela e inconstante como ela se apresenta.


Raphael Mesquita

 

 




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por Justin Bond and the Hungry March Band