Shortbus
tem um forte potencial imaginário. Ao mesmo tempo
em que trata das questões mais mundanas e palpáveis,
insere elementos quase fantásticos para contribuição
na operação que se desenha no entorno
e no interno do filme. John Cameron Mitchell é
quase um desmitificador. Não por trabalhar questões
vistas como tabus, como o sexo grupal, a homossexualidade
e o sexo explícito, mas pela forma como trata
estas problemáticas como questões superadas.
O filme parte do pressuposto que nenhum espectador irá,
nos dias de hoje, se confrontar com o absurdo da homossexualidade
ou a transgressão do sexo explícito. As
questões em Shortbus são outras.
Mitchell está muito mais para analogias políticas
e para histórias de amor, sempre tratadas com
singeleza, dando uma beleza hedonista que funciona extremamente
bem no filme.
Beleza também plástica. A começar
pelo primeiro plano do filme: uma câmera se movimenta
em camadas de cinza, se distanciando lentamente e girando
ao redor de uma construção de concreto
que aos poucos vai se revelando. É a Estátua
da Liberdade que domina o quadro, com a cidade ao fundo,
regida pelas luzes que acendem e apagam ditando o ritmo
do funcionamento da mais importante metrópole
do mundo.
A Nova York de Shortbus é toda animada.
As casas e construções são maquetes
simples, que igualam toda e qualquer variação
estilística ou construções arquitetônicas.
Aqui, a cidade é um todo, formado pela heterogeneidade
mais que conhecida. Em escala geométrica, o clube
Shortbus está para Nova York, como Nova York
está para o mundo. Cada um com suas especificidades,
e um sempre dialogando e interferindo no outro. E se
"o mundo" não está evidenciado,
é também por Nova York não estar
detalhada. A atenção do particular é
no Shortbus, local de encontro das facetas inusitadas
do indivíduo, mas, sobretudo, de congregação
de amigos e amantes.
E após adentrarmos, como numa explosão,
na esfera particular, vamos aos poucos conhecendo e
nos familiarizando com aqueles personagens, que se em
um primeiro momento são bastante estranhos, no
momento seguinte já são nossos queridos.
A câmera que sai da Estátua da Liberdade
vai rapidamente passando pela cidade até entrar
na casa de Jamie, o primeiro de muitos dos personagens
do filme. O vemos numa posição no mínimo
inesperada. Jamie tenta chupar seu próprio pau,
fazendo malabarismos esquisitíssimos. Ainda estranhos
com a figura, somos apresentados a alguns dos demais
personagens: uma dominatrix sodomizando um cliente e
um casal fazendo sexo em posições dignas
de dar inveja em qualquer mestre do kama-sutra.
Mas desde já a câmera de Mitchell não
está interessada em problematizar o sexo. Há
uma certa construção formal que indica
um balanço entre o glamour e o bizarro, o amor
e o prazer, a sátira e a comédia. As cores
são vibrantes, as luzes são potentes,
os rostos são visíveis. O sexo (e também
os órgãos sexuais) não são
procurados, nem escondidos. Eles estão em quadro
porque os personagens se viraram para a câmera
dessa forma. Se a primeira seqüência era
toda realizada em animação, os planos
seguintes são realizados na esfera da fantasia.
O sexo como elemento de propulsão mágica
e fabulosa. Ainda que presente e palpável, daí
os gritos, o suor, a exaustão corporal, o gozo.
Quando, ufa, respiramos após seqüências
tão enérgicas, Mitchell nos convida a
adentrar na individualidade dos personagens. O namorado
de Jamie chega em casa. É James. Os dois se beijam,
mas é evidente o clima estranho que assombra
o casal. Somos então inseridos nos conflitos
pessoais e de relacionamentos. Mitchell nos coloca então
diretamente na esfera afetiva, ignorando a problemática
da existência de casais gays.
Não que seja elemento definitivo, mas as seqüências
iniciais de Shortbus indicam claramente o caminho a
ser traçado pelo filme. Passamos da estafa sexual
ao carinho entre homens em poucos minutos. Passamos
da esfera pública e reconhecível à
esfera particular, pulsante e doce. Passamos, sobretudo,
de uma posição distante e recatada ao
desbunde, ao divertimento e à afeição
compartilhada. Resta seguir a levada e cair dentro!
Então entremos no famigerado Shortbus: ao mesmo
tempo clube das perdições e confessionário
sentimental. Ponto de encontro dos personagens e de
seus medos, inseguranças, constrangimentos. Mas
aqui não há espaço para joguetes
psicológicos. Shortbus é ponto de congregação.
É aqui que a dominatrix revelará sua insatisfação
profissional e seu desejo pelo amor. É aqui que
a terapeuta sexual revelará sua inexperiência
com um orgasmo. É aqui que o casal Jamies encontrará
o terceiro indivíduo que completará sua
relação. É aqui que convergirão
os sentimentos e vontades pulsantes da Nova York que
se apaga para acender dentro de Shortbus.
É no clube também que existirão
as referências ao momento contemporâneo
vivido pelos personagens, pelos realizadores, pelos
espectadores: o pós-11/09. Como figuras emblemáticas,
estão presentes no mesmo quadro um garoto modelo,
bonito, olhar distante, projeção no infinito
e o ex-prefeito de Nova York, com rugas reveladoras
da velhice e da experiência, da sabedoria e da
prática. Este revela ao jovem que o Shortbus
é o lugar onde os pecadores encontram a tolerância.
Shortbus, ou Nova York, é o centro agregador
das mais diversas etnias e ideologias. Ainda que elas
existam em conflito, há uma convivência
cotidiana. Um sentimento paradoxal, uma vontade de união.
E é na mesma conversa que o ex-prefeito questiona
o garoto de seus pecados. No silêncio, acaba confessando
que quando prefeito foi acusado de não investir
o suficiente no tratamento da AIDS. Com lágrimas
nos olhos, diz que fez o possível que estava
ao seu alcance, com a exceção de se revelar
como homossexual, pois "ainda não estava
preparado". As lágrimas escorrem, o sentimento
de culpa se externa. O garoto o abraça e carinhosamente
lhe atribui um beijo.
A cena é um composto do papel do prefeito (público)
com o do indivíduo (privado). É também
a constatação de que a assimilação
da existência e do reconhecimento da homossexualidade
é uma questão que remete a tempos passados.
Com sutileza, Mitchell alfineta os que ainda se incomodam
com tal questão.
E é o mesmo garoto que se envolverá com
o casal Jamies. Dispostos a procurar um novo elemento,
Ceth aparece como incremento na relação
do casal. Quando os três fazem um triângulo
de fato, um chupando o outro, ao trocar de posições,
seus corpos parecem desenhar uma estrela, brilhante,
ressaltada pelo suor que emana de seus corpos. Mitchell
filma com graça, distanciando-se de qualquer
agressão moral. Faz belo do estranho. E faz do
belo, o normal.
Mas aos poucos percebemos que Ceth na verdade veio preencher
o vazio que Jamie irá deixar. Num ato já
indiciado deste o começo do filme, ele tenta
o suicídio como forma de libertação
dos traumas não resolvidos. Aparece o então
misterioso fotógrafo que vem salvar a sua vida
e trazer novas esperanças. Assim funciona Shortbus,
local de externar os traumas, dividindo-os e recebendo
ajuda. O mesmo processo se dá com Sofia. O fato
de nunca ter tido um orgasmo é compartilhado
com os outros "membros" do clube. Estes querem
mais é ajudá-la. E se seu problema é
espalhado pelo Shortbus, é na tentativa de mais
pessoas estarem na função da solidariedade.
Uns tem o dom da escuta, outros tem as pegadas sexuais,
outros tem as táticas de sedução.
O que importa é fazer com que a terapeuta sexual
resolva seu problema. O que importa é que a dominatrix
consiga conviver em paz com seus anseios. O que importa
é que Bitch, a recepcionista do clube, consiga
transmitir a alegria e a vivacidade que existe ali.
Se o filme prega a união, o dar as mãos,
certamente ganha força no trabalho conjunto que
se revela enquanto construção. Uma arte
primorosa, uma trilha contagiante e tocante (dirigida
pelos Yo La Tengo), uma iluminação construtiva
e potente, e um elenco muitíssimo afinado, que
transita com extrema precisão entre o sexo e
o drama. Nem falhas na cama, nem falhas na fala. Os
personagens de Shortbus trocam um pau por uma lágrima,
ou um sorriso por uma bunda com a maior graça
e sutileza. Aqui é Shortbus, o lugar da comunhão.
Estejamos juntos, na tentativa de superação
de traumas, em busca da vida. Bela e inconstante como
ela se apresenta.
Raphael Mesquita
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