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                         Encomendas 
                          para projetos coletivos em cinema são freqüentemente 
                          frustrantes. Costumam ser pequenos projetos de férias 
                          aos quais se dedica pouco tempo de pensamento e execução 
                          entre um projeto e outro. Mas, pior que as circunstâncias, 
                          são as ancoragens temáticas. É 
                          muito freqüente que a questão geral do projeto 
                          nada tenha a ver ou conjugue pouco com as preocupações 
                          de cada cineasta, e é comum ver filmes que ora 
                          desviam o percurso do assunto, ora tratam dele, por 
                          não saber, da forma mais desajeitada possível. 
                          No entanto, a mais terrível das conseqüências 
                          desses filmes coletivos aparece quando o tema geral 
                          parece sobredeterminar todo o conteúdo presente 
                          no episódio. Num filme intitulado O Estado 
                          do Mundo, o perigo só aumenta, pois, além 
                          de jogar para o terreno dos "grandes temas relevantes" 
                          na nossa sociedade, absolutamente tudo pode, de uma 
                          forma ou outra, se inscrever sob essa rubrica, do nascimento 
                          de um menino no Quênia à velhice em Vladivostok. 
                          "Estado do mundo", "estado do mundo"... Qualquer ficção, 
                          mesmo uma microficção íntima, um 
                          autodocumentário, pode revelar algo sobre "o 
                          estado do mundo": quem sabe a relação 
                          entre uma objetividade totalmente violentadora e o uso 
                          da introspecção como resistência? 
                          Ou seja, fugir da redundância nesse caso é 
                          extremamente difícil 
                           
                          Ao mesmo tempo, ao menos a partir do modernismo, pede-se 
                          que a arte apresente uma interface que fuja do óbvio 
                          das facilidades de decifração das obras 
                          convencionais, que apresentem, secreta ou abertamente, 
                          um outro olhar que adense a relação entre 
                          olhar de espectador/conteúdo de obra para além 
                          da simples fruição facilitada. Considerando 
                          que O Estado do Mundo fez encomenda a artistas 
                          que buscam se estabelecer fora do registro convencional 
                          – alguns deles, ao contrário, situam-se em terreno 
                          francamente experimental, ampliando os limites do cinema 
                          e desanimando as sensibilidades com olhos no passado 
                          –, é de se imaginar que, ainda que de forma inconfessa, 
                          peça-se a esses artista algo de subversão 
                          em relação ao tema proposto: um adensamento 
                          do olhar que não entregue simplesmente a evocação 
                          de um "grande tema" contemporâneo, mas elabore 
                          um terreno estético próprio que tenha 
                          sua própria consistência e não seja 
                          subsumido pela simples menção da agenda 
                          político-social-global contemporânea. Em 
                          O Estado do Mundo, Apichatpong Weerasethakul, 
                          Wang Bing, Pedro Costa e Chantal Akerman conseguem operar 
                          com destreza esse limite de operação – 
                          como, aliás, era de se esperar. 
                           
                          No mesmo terreno, Vicente Ferraz e Aiysha Abraham falham 
                          miseravelmente. Germano, de Ferraz, narra a dificuldade 
                          de pescadores cariocas depois que a baía da Guanabara 
                          foi poluída, entre outras coisas, pelos grandes 
                          navios (no caso um petroleiro do Iraque), destruindo 
                          o meio-ambiente e acabando com a atividade econômica 
                          da região – e com a profissão desses homens. 
                          Mas facilmente o filme se deixa inscrever na solenidade 
                          do grande versus pequeno, da grande corporação 
                          industrial que destrói o pequeno negócio 
                          artesanal, no desrespeito à ecologia, nos desempregados 
                          e subempregados do mundo inteiro, a necessidade de resistência. 
                          E nada mais. Como é comum num certo cinema convencional 
                          que afronta temas políticos, o todo da estética 
                          é subsumido por duas ou três palavras de 
                          ordem que trocam a incitação ao questionamento 
                          pela veemência da redundância. O filme da 
                          indiana Aiysha Abraham também identifica com 
                          clareza sua submissão mecânica ao projeto: 
                          estrangeiros do Nepal subempregados na Índia, 
                          fronteiras, injustiças sociais, o homem constrói 
                          uma casa mas não tem onde morar. Em registro 
                          documentário, o filme apresenta até alguns 
                          planos bonitos e inspirados, mas a estrutura não 
                          permite vôos maiores que um filmete sem gosto 
                          próprio e sem qualquer característica 
                          singularizante. Ainda sobre os dois filmes, cabe mencionar: 
                          ao passo que o filme de Abraham tem ao menos uma certa 
                          eficiência de feitura, o filme de Ferraz, apesar 
                          de Paschoal Villaboim e Babu Santana, é filmado 
                          de forma bastante constrangedora, em especial quando 
                          surge o petroleiro russo, objeto hilário entre 
                          encouraçado Potemkin e mamute siberiano. 
                           
                          Luminous People, o filme de Apichatpong Weerasethakul 
                          que abre O Estado do Mundo, situa-se entre a 
                          fronteira do Laos e de Tailândia, maie exatamente 
                          num barco que cruza o rio. Mas ele frustra terrivelmente 
                          quem busca um discurso claro em torno do assunto – que 
                          seria, óbvio, "as fronteiras são ruins, 
                          a união dos povos é boa, respeitando as 
                          diferenças" – e entrega vários dados que 
                          podemos integrar ou não à questão 
                          geral, sem necessariamente nos direcionar a isso: a 
                          cerimônia funeral, a ritualística ancestral, 
                          uma música sobre o pai, um cantor de hip-hop 
                          do Laos, o cansaço dos tripulantes. Mas o que 
                          toma a frente são os dados sensoriais: a forte 
                          e hipnótica sonoridade do mar revolvido pelo 
                          barco, a falta de amparos naturalistas de ambiência 
                          para unir som e imagem, a granulação da 
                          imagem e a força da cor, tudo isso imprime a 
                          Luminous People um caráter afetivo de 
                          relato pessoal de uma experiência vivida. A voz 
                          over dos personagens, como que surfando sobre 
                          as imagens, evoca naturalmente Jaguar de Jean 
                          Rouch na forma de sua construção. 
                           
                          Em Brutality Factory, Wang Bing trata da tortura 
                          contra os "contra-revolucionários" no nomento 
                          de recrudescimento que foi a Revolução 
                          Cultural da segunda metade dos anos 60 na China. Vemos, 
                          em imagens um tanto banais, a tortura mental e física 
                          contra uma mulher que deve denunciar seu marido. No 
                          entanto, aos poucos, a percepção muda: 
                          pela forma de filmar, pelos enquadramentos que dão 
                          mais atenção à instalação 
                          no espaço do que efetivamente nos acontecimentos, 
                          pela persistência mais no trabalho dos torturadores 
                          do que na ação da tortura, o filme varia 
                          o ponto de vista e, via título, chama a atenção 
                          para o fato de que a brutalidade é uma indústria 
                          como qualquer outro, com seus operários, seus 
                          espaços, seus procedimentos burocráticos 
                          repetitivos. Se algumas imagens ressoam mal pelo aspecto 
                          de redundância (o tema da tortura, a sensação 
                          de intensidade dada pelo sofrimento da mulher torturada), 
                          a forma como Wang Bing filma o espaço, forçosamente 
                          de trabalho, é, como em A Oeste dos Trilhos, 
                          impressionante. Resta um longo plano final, do presente, 
                          daquele espaço sendo demolido, que instaura uma 
                          distância histórica entre momentos distintos 
                          da história chinesa e mostra como o espaço, 
                          que carrega em si todo o traço das populações 
                          e mentalidades que nele viveram, é também 
                          modificável, deformável, assim como os 
                          pensamentos e os tempos. 
                           
                          Tarrafal, de Pedro Costa, lida com habitação, 
                          exílio, marginalidade, questão dos estrangeiros 
                          na Europa. Quem viu Juventude em Marcha naturalmente 
                          vai reconhecer procedimentos semelhantes de enquadramento, 
                          iluminação, e mesmo identificar o personagem 
                          principal do filme, Ventura, aqui em papel secundário. 
                          Mas, vendo com mais cuidado, Tarrafal tem um 
                          clima inteiramente diferente e, ainda que o filme evoque 
                          a monumental obra anterior (mas quem censuraria Picasso 
                          por continuar em outros quadros os procedimentos das 
                          Demoiselles d'Avignon?), o ritmo e as situações 
                          são muito mais fragmentados – até plano 
                          com menos de dez segundos tem! –, e, mais do que a melancolia 
                          e a dor de ser obrigado a fazer um movimento que vai 
                          redundar na estagnação, aqui vive-se uma 
                          ligação com a terra natal em modo mais 
                          evocativo e um sentimento mais forte de ação, 
                          até de resistência ("O meu corpo só 
                          enterram no Tarrafal", diz o protagonista Zé 
                          Alberto, notificado pelo governo de Portugal a abandonar 
                          sua casa em Fontainhas). Resta que reatar contato com 
                          as magníficas construções visuais 
                          de Pedro Costa permanece sempre uma das experiências 
                          mais intensas no cinema contemporâneo. 
                           
                          Por fim, Chantal Akerman realiza com Tombée 
                          de nuit en Shangai um filme que, a partir de uma 
                          estratégia incrivelmente fácil porém 
                          certeira – registrar as modificações da 
                          China contemporânea pelas gigantescas projeções 
                          sobre prédios que transformam-se em telas multicoloridas 
                          para spots publicitários –, dissolve o 
                          geral no particular e o particular no geral. Pois, ainda 
                          que o título situe o filme e que acreditemos 
                          que aquelas imagens, daquela forma, só podem 
                          acontecer na China, o filme fornece, pelos dados de 
                          som e imagem, referências que nos fazem saltitar 
                          do Japão à Jamaica, da Europa aos Estados 
                          Unidos, da música clássica de outros séculos 
                          à música pop do século XX, da Mona 
                          Lisa às animações hi-tech, revelando 
                          a partir de um dispositivo simples toda a superposição 
                          de tempos e espaços, comportamentos e culturas 
                          típicos dos dias de hoje. O genial do filme de 
                          Chantal Akerman é que ela utiliza a duração 
                          do plano para simplesmente registrar, sem nos direcionar 
                          ao discurso. Se, ao final, o filme corrobora enunciados 
                          verdadeiros porém já terrivelmente batidos 
                          – o "tudo ao mesmo tempo agora" que a tecnologia permite 
                          –, ele deixa apenas a realidade fazê-lo, utilizando 
                          a câmera apenas através de sua virtude 
                          passiva de registro. Mas o filme faz muito mais que 
                          isso: pela persistência da imagem (último 
                          plano fixo de dez minutos), somos ao mesmo tempo remetidos 
                          a três instâncias diferentes, as imagens 
                          que passam ser a realidade da percepção, 
                          os prédios que são irrealizados pela imagem 
                          (são mais percebidos como tela de inscrição 
                          do que por sua materialidade e função 
                          primordial) e, em extra-campo total, a realidade sensível 
                          da vida das pessoas que ocupam os apartamentos e escritórios 
                          desses prédios, detalhes infinitesimais dentro 
                          do cenário bigger than life dessa Metropolis 
                          (impossível deixar de pensar na imagem da cidade 
                          hi-tech do filme de Fritz Lang) saída da ficção 
                          e instaurada como realidade sensível. Se o filme 
                          de Chantal Akerman é o único que consegue 
                          de fato sair do dado local e responder com o vigor que 
                          pedem as poderosas palavras "estado" e "mundo" – ou, 
                          trocando em miúdos, é o único filme 
                          que de fato incorporou de forma completa a demanda do 
                          projeto –, ao mesmo tempo ele oferece dados imersivos 
                          de percepção que constróem uma 
                          experiência que ultrapassa em muito a simples 
                          questão da temática geral. E que, portanto, 
                          ganha nas duas frentes. 
                           
                            
                          Ruy Gardnier 
                          
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