|   A estética pessoal 
                          de Pablo Trapero foi sempre, em sua curta carreira, 
                          marcada por um delicado equilíbrio entre personagem 
                          e ambiente, advinda de uma afetuosa relação entre o 
                          protagonista e o mundo à sua volta. Ainda que seus filmes 
                          contivessem narrativas e histórias desenvolvidas, era 
                          o ato de colocar um, ou mais, personagens no mundo e 
                          observar, com carinho, o modo como esses personagens 
                          agem diante dele, que se colocava em primeiro plano. 
                          O relativo fracasso de Nascido e Criado talvez venha dessa alteração, 
                          ou mesmo inversão, de forças, para a qual o cineasta 
                          claramente não estava preparado. Existe ainda, aqui, 
                          um personagem jogado no mundo e aprendendo a se relacionar 
                          com ele (o título não poderia ser mais explicito nesse 
                          sentido), mas o filme nunca consegue se desligar do 
                          drama pessoal do protagonista, transformando-o no elemento 
                          principal. E, ao tentar desenvolver o drama através 
                          de cacoetes de profundidade dramática, revelações de 
                          roteiro, relações de montagem, o cineasta não consegue 
                          um resultado além do razoável.  
                           
                          Pois, se, por exemplo, há realmente uma problematização 
                          da idéia de família perfeita no início do filme, ou 
                          mesmo se a cena de sexo entre o protagonista e sua esposa 
                          carrega uma boa dose de doçura e beleza, são os rostos 
                          felizes de pai, mãe e filha, a casa limpa e branca, 
                          o café-da-manhã leite e frutas na mesa (como num ensaio 
                          publicitário) que irão se destacar. Não porque o cineasta 
                          não se interesse por corpos palpáveis e reais, mas porque 
                          esse interesse estará sempre em segundo plano diante 
                          de uma narrativa que precisa andar, sempre, e calculadamente. 
                          Assim, o drama da tragédia familiar que se seguirá a 
                          este prólogo será tão mais enfatizado quão maior for 
                          o amor e a felicidade daquelas pessoas. Nascido 
                          e Criado existe sempre dentro da contradição entre 
                          os lugares-comuns que Trapero usa para valorizar sua 
                          narrativa e seu talento natural para filmar cenas que 
                          não apenas fogem, mas se opõem a esse lugar-comum. Entretanto, 
                          como não há ironia alguma em nenhuma das duas operações, 
                          nem consciência de sua disparidade, são poucas as seqüências 
                          nas quais o talento não é engolido pelas fáceis soluções. 
                           
                           
                          Portanto, quando Santiago se muda para a Patagônia – 
                          o fim do mundo, quase literalmente - disposto a superar 
                          o acidente de carro que possivelmente matou sua mulher 
                          e filha, quase nunca entraremos realmente nas profundezas 
                          dessa dor, pois os dados de tristeza que o filme coloca 
                          não fogem daqueles que esperamos em tal situação. Passar 
                          os dias em estado de apatia, vomitar de noite, sentir-se 
                          perseguido quando anda de carro, ter pequenos e incontroláveis 
                          surtos, olhar triste para baixo ou para o lado quando 
                          alguém menciona a existência de uma família. Nascido 
                          e Criado caminha lentamente nessa sucessão de lugares-comuns 
                          (há, no mínimo, uma seqüência de filme para cada um 
                          desses elementos), e, não fosse o talento de Trapero 
                          para encontrar algo real não por trás, mas juntamente 
                          a esses indícios, o interesse do filme seria ainda mais 
                          reduzido.  
                           
                          Mas o talento existe, e essa tristeza pré-fabricada 
                          em dramas de segunda categoria sobreviverá junto a pequenos 
                          momentos de alegria, olhares de afetividade, relações 
                          de companheirismo, e a mão-pesada da tragédia conseguirá 
                          conviver com a leveza dos relacionamentos pessoais. 
                          Existe, no olhar do diretor, uma vontade de reconhecer 
                          o que resta de vida nos caminhos não apenas de Santiago, 
                          mas de todos os habitantes de uma cidade tão fria quanto 
                          vazia. Por isso, quando não está preocupado em mostrar 
                          como seu protagonista ainda sofre, são os diversos momentos 
                          de bebedeiras, as trocas de olhares, as peças e brincadeiras 
                          e os comentários cotidianos (enfim, tudo isso que nos 
                          acostumamos a chamar de amizade) que aparecem na tela, 
                          com admirável sinceridade, conduzidos pelas músicas 
                          típicas da região – melodiosas e “para cima” - que volta 
                          e meia surgem, em momentos banais.  
                           
                          Para isso, contribui a capacidade de Trapero de filmar 
                          o ambiente da Patagônia, suas folhas secas, as estradas 
                          ruins, o gelo permanente, o vazio das ruas e os bares 
                          cheios. Não se trata apenas de reconhecer nessas características 
                          um equivalente ao estado de espírito desolado do protagonista, 
                          mas de perceber nelas, também, a capacidade de reverter 
                          este estado. Pois, se o frio pode ser considerado o 
                          “clima” perfeito para alguém que quer se distanciar 
                          do mundo e ficar sozinho, é também por causa dele que 
                          os companheiros de Santiago instalam-se nos bares, acolhem-se 
                          uns aos outros, unem-se, afinal. E se as paisagens secas 
                          poderiam ser sinônimos da falta de sentimento, serão 
                          elas, também, o local no qual o protagonista irá renascer 
                          e recriar-se. Esta ambigüidade com a qual Trapero filma 
                          a relação do homem com o ambiente, infelizmente, não 
                          existe no restante do filme.  
                           
                          Assim, belos momentos são interrompidos para que o cineasta 
                          possa fazer valer seu estudo sobre o sofrimento humano. 
                          Um triângulo amoroso é estragado por uma explosão de 
                          raiva de Santiago quando tentam tirar sua camisa e, 
                          no instante seguinte, descobrimos em seu corpo uma série 
                          de cicatrizes, depois de mais de uma hora de filme. 
                          Uma cena de bebedeira entre os amigos é seguida pela 
                          morte da mulher de um deles, como se o diretor precisasse 
                          frisar que todos os prazeres têm de conter uma grande 
                          parcela de culpa. É assim que a vida em Nascido e Criado – que o cineasta tanto 
                          sabe filmar – vai sendo minada em função de uma dramaturgia 
                          sem muito interesse, construída em cima desses calculados 
                          jogos de roteiro e montagem que apenas nos distanciam 
                          do personagem.  
                           
                          Pois se todas as seqüências deste último filme de Trapero 
                          fossem como a última, onde um homem e uma mulher se 
                          reencontram, às lágrimas, e nada mais precisa ser dito, 
                          onde, afinal, o cineasta transmite o sentimento captando 
                          o indizível, Nascido e Criado seria um belo filme. Mas, 
                          infelizmente, Trapero quer sempre dizer muito, dizer 
                          demais e, na maior parte das vezes, não consegue dizer 
                          nada além daquilo que, de antemão, já sabemos.  
                           
                            
                          Leonardo Levis 
                          
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