Um filme que se constrói
no olhar
O universo primeiro é o de Guimarães Rosa. O universo
atingido é o de Sandra Kogut. Mutum parte da fábula, da fantasia, do absurdo,
da generosidade, do carinho pelos personagens para chegar
numa história repleta de afetividade, amor e ansiedade.
Muitos dos espaços trabalhados em Mutum estão
elipsados. Descortinar situações
certamente não é o objetivo do filme, que se mostra
muito mais interessado em pensar as relações de proximidades
e entendimento do indivíduo. É no olhar – da câmera,
mas sobretudo dos personagens
– que Sandra Kogut constrói
todas as relações trabalhadas no filme. Partimos do
protagonista Tiago, garoto extremamente carismático
e corpo estranho no universo em que habita. Sem que
os outros o compreendam, se fecha num silêncio, transmitido
especialmente pelo olhar distante e desfocado. Kogut, respeitando com
cuidado o espaço que Tiago transita não direciona, portanto,
seu interesse para o deslocamento do garoto. Ressoa
na tela a impressão de que o próprio menino não se sente
incomodado com seu posicionamento na estrutura familiar.
Se se fecha em mundo próprio, é mais por prazer e vontade, do
que por necessidade ou incomunicabilidade. Estamos falando
de personagens derivados de Guimarães Rosa. Estes, cheios
de vida, cavucam seus espaços
em tempos outros que não necessariamente os da narrativa.
A mesma operação é realizada pelo menino Tiago e contemplada,
com graça, por Sandra Kogut.
Os diversos closes nos olhos são seguramente a melhor
forma de se contar esta história. A raiva do pai, a
figura suspeita da avó, a complacência da mãe, o carinho
do tio, a curiosidade da irmã, o amor do irmão. É no
brilho dos olhos de cada um que Sandra Kogut
encontra as personalidades e sentimentos de seus personagens.
Se o espaço está elipsado, é por nos olhos dos
personagens conterem a projeção de sua sugestão, e é
também por nos olhos estarem contidos o inevitável de
não se enxergar além do horizonte. Os olhos dos personagens
de Mutum são contadores de histórias e espelho
para reflexão.
No meio de espaços, tempos e situações que não se completam,
o menino Tiago transita em levitação, por vezes acompanhada
de pendências corporais: o choro do irmão, os tapas
do pai, o abraço do tio. O contato físico de Mutum
é presente e objetivo. O corpo que toca o do próximo
é meticuloso e cheio de cuidado, seja para acariciar,
seja para espancar.
No início do filme, uma sugestão de que a mãe de Tiago
trai o pai com o cunhado. Ouvimos o espancamento dentro
de casa, até que Filipe corre para chamar o irmão. A
reação de Tiago é imediata: corre para dentro de casa
a fim de intervir na briga. Livra a mãe, e paga o preço.
Por trás da porta, ouvimos os tapas do pai e o choro
do garoto. Sua primeira iniciativa é de ação, ou reação.
E se a ação será deixada de lado ao longo do filme,
o menino está sempre reagindo. Se se
coloca como corpo estranho, incapaz de habitar a mesma
dimensão espacial que os demais, é plenamente capaz
de corresponder aos estímulos afetivos que o toca. E
é nessa história cercada de situações interrompidas
e espaços incompletos, que evanesce
no ar um clima estranho, que varia do incômodo
ao apaziguamento, sempre expressos pelo olhar.
Mas Mutum não se determina exclusivamente em
Tiago. O mundo que gira ao seu redor é também o mesmo
mundo dos demais e, portanto, o olhar é compartilhado
sobre diversos pontos de vista, que não se definem,
nem, tampouco, são definitivos. Não cabe nos perguntarmos
se Mutum é a história de Tiago, é a história
de uma vila, é a história de uma situação. Mutum
é tudo isso e muito mais. É a incorporação dos elementos
naturais, imbuído da fantasia e da realidade. Paradigmático
em sua construção ideal, o filme é fonte e não córrego.
Nasce e não se esvai.
O fio regente nos faz acompanhar Tiago e sua assimilação
por parte dos demais. “Este menino é muito calado”.
Quando convocado pelo pai a trabalhar na roça a fim
de calejar suas mãos e pés, sabemos que no fundo há
também a necessidade de calejar seu coração. Na tradição
conservadora de uma família sertaneja, os sofrimentos
devem ser introduzidos e digeridos com espontaneidade.
A estranheza do menino faz seu pai buscar a transfiguração
na dureza sertaneja. O pai, que não recebe nome, é na
verdade uma mistura do sertanejo de Rosa com o de Euclides
da Cunha, para quem antes de tudo o sertanejo é um forte.
O contraponto da dureza é encontrado no amor, também
familiar. Todas as cenas que envolvem a morte de Filipe
recebem um tratamento e olhar extremamente carinhoso.
Tiago é perceptivo o bastante para acordar de madrugada
e perceber que o irmão não está bem. O garoto geme baixinho
e é questionado por Tiago que, aflito, pergunta o que
se passa. Então é revelada uma proximidade muito grande
entre os dois irmãos, que compartilham suas experiências,
medos e sentimentos. Filipe revela que sentiu inveja
do irmão, pois o papagaio aprendeu a falar o nome dele
e não o seu. Tiago reage: corre até o bicho e insistentemente
tenta fazer com que este aprenda o nome de Filipe. Quer
satisfazer os desejos (e fantasias) do irmão. É a forma
que encontra de responder e demonstrar o amor que sente.
Kogut deixa que os pequenos
momentos falem por si, como na seqüência em que Filipe
dá vida às pipocas, transformando-as em cavaleiros,
heróis, brinquedos.
No entanto, esse calmo acompanhamento é deixado de lado
no decorrer do filme. Desde a morte de Filipe há uma
aceleração na narrativa, deixando a impressão que aquela
história deveria se resolver o quanto antes (daí a idéia
de “ansiedade” citada no primeiro parágrafo deste texto).
A morte do menino impulsiona o filme a explorar as idas
e vindas dos personagens, que podem representar uma
desestruturação familiar. Tiago é obrigado a deixar
a casa, assim como o tio já havia feito. Quando recebe
a notícia que seu pai matou um homem e, portanto, abandonou
o lar, é levado de volta pelo tio. A idéia do retorno
e do abandono é trabalhada com superficialidade, sem
que nos preocupemos com a valorização do lar e do terreno
de origem.
Estando em casa, Tiago recebe a visita de um médico
que veio a região para uma conferência cotidiana. Sua
primeira aparição é diante do garoto, que não responde
com satisfação às suas perguntas. Na seqüência mal ajambrada
e de algum mau-gosto (destoado inclusive do restante
do filme), o médico tira seus grandes óculos para colocá-los
no rosto do garoto. Situação fácil, Tiago “vê” o mundo,
então desconhecido. O que aparentemente parece ser um
problema de roteiro se revela, na verdade, como problema
de montagem. Ao não receberem o tempo que demandam, as circunstâncias da visita do médico
são tratadas com tamanha objetividade que tira
a graça da história. Qualquer sugestão de que os óculos
são elementos de fantasia é deixada de lado para embarcarmos
na materialidade de que aquilo nada mais é do que um
instrumento de correção. Resta ao espectador o bom senso
de escapar da idéia de que Tiago careça disso para se
localizar naquele espaço. Em se tratando de Rosa, uma
vez mais, há sempre um indício fantasioso, aqui não
trabalhado.
Então o filme passa a privilegiar os acontecimentos,
em detrimento de suas durações. Os fatos são todos atropelados,
sem que possamos nos envolver com seus resultados e
desdobramentos. As elipses narrativas que cediam espaço
a tempos de respiro (constituintes da comoção pretendida)
são agora simplesmente ferramentas narrativas. A justaposição
abrupta dos fatos leva a crer que Sandra Kogut
se esqueceu de toda a construção e levada que criara,
parecendo querer dar conta de finalizar o filme dentro
de 90 minutos. Mera especulação, mas deve-se lembrar
que o filme tem co-produção francesa e deve atender
às necessidades do “filme de arte”. Assim sendo, essa
minutagem vem bem a calhar. Para a lógica de mercado, e não
para o filme – que perde, e muito.
E se essa crítica acaba assim, meio de repente, é por
corresponder ao sentimento que o filme passa. Emocionante
em um primeiro momento, corrido e passageiro no instante
seguinte.
Raphael Mesquita
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