MUTUM
Sandra Kogut, Brasil, 2007

Um filme que se constrói no olhar

O universo primeiro é o de Guimarães Rosa. O universo atingido é o de Sandra Kogut. Mutum parte da fábula, da fantasia, do absurdo, da generosidade, do carinho pelos personagens para chegar numa história repleta de afetividade, amor e ansiedade.

Muitos dos espaços trabalhados em Mutum estão elipsados. Descortinar situações certamente não é o objetivo do filme, que se mostra muito mais interessado em pensar as relações de proximidades e entendimento do indivíduo. É no olhar – da câmera, mas sobretudo dos personagens – que Sandra Kogut constrói todas as relações trabalhadas no filme. Partimos do protagonista Tiago, garoto extremamente carismático e corpo estranho no universo em que habita. Sem que os outros o compreendam, se fecha num silêncio, transmitido especialmente pelo olhar distante e desfocado. Kogut, respeitando com cuidado o espaço que Tiago transita não direciona, portanto, seu interesse para o deslocamento do garoto. Ressoa na tela a impressão de que o próprio menino não se sente incomodado com seu posicionamento na estrutura familiar. Se se fecha em mundo próprio, é mais por prazer e vontade, do que por necessidade ou incomunicabilidade. Estamos falando de personagens derivados de Guimarães Rosa. Estes, cheios de vida, cavucam seus espaços em tempos outros que não necessariamente os da narrativa. A mesma operação é realizada pelo menino Tiago e contemplada, com graça, por Sandra Kogut.

Os diversos closes nos olhos são seguramente a melhor forma de se contar esta história. A raiva do pai, a figura suspeita da avó, a complacência da mãe, o carinho do tio, a curiosidade da irmã, o amor do irmão. É no brilho dos olhos de cada um que Sandra Kogut encontra as personalidades e sentimentos de seus personagens. Se o espaço está elipsado, é por nos olhos dos personagens conterem a projeção de sua sugestão, e é também por nos olhos estarem contidos o inevitável de não se enxergar além do horizonte. Os olhos dos personagens de Mutum são contadores de histórias e espelho para reflexão.

No meio de espaços, tempos e situações que não se completam, o menino Tiago transita em levitação, por vezes acompanhada de pendências corporais: o choro do irmão, os tapas do pai, o abraço do tio. O contato físico de Mutum é presente e objetivo. O corpo que toca o do próximo é meticuloso e cheio de cuidado, seja para acariciar, seja para espancar.

No início do filme, uma sugestão de que a mãe de Tiago trai o pai com o cunhado. Ouvimos o espancamento dentro de casa, até que Filipe corre para chamar o irmão. A reação de Tiago é imediata: corre para dentro de casa a fim de intervir na briga. Livra a mãe, e paga o preço. Por trás da porta, ouvimos os tapas do pai e o choro do garoto. Sua primeira iniciativa é de ação, ou reação. E se a ação será deixada de lado ao longo do filme, o menino está sempre reagindo. Se se coloca como corpo estranho, incapaz de habitar a mesma dimensão espacial que os demais, é plenamente capaz de corresponder aos estímulos afetivos que o toca. E é nessa história cercada de situações interrompidas e espaços incompletos, que evanesce no ar um clima estranho, que varia do incômodo ao apaziguamento, sempre expressos pelo olhar. Mas Mutum não se determina exclusivamente em Tiago. O mundo que gira ao seu redor é também o mesmo mundo dos demais e, portanto, o olhar é compartilhado sobre diversos pontos de vista, que não se definem, nem, tampouco, são definitivos. Não cabe nos perguntarmos se Mutum é a história de Tiago, é a história de uma vila, é a história de uma situação. Mutum é tudo isso e muito mais. É a incorporação dos elementos naturais, imbuído da fantasia e da realidade. Paradigmático em sua construção ideal, o filme é fonte e não córrego. Nasce e não se esvai.

O fio regente nos faz acompanhar Tiago e sua assimilação por parte dos demais. “Este menino é muito calado”. Quando convocado pelo pai a trabalhar na roça a fim de calejar suas mãos e pés, sabemos que no fundo há também a necessidade de calejar seu coração. Na tradição conservadora de uma família sertaneja, os sofrimentos devem ser introduzidos e digeridos com espontaneidade. A estranheza do menino faz seu pai buscar a transfiguração na dureza sertaneja. O pai, que não recebe nome, é na verdade uma mistura do sertanejo de Rosa com o de Euclides da Cunha, para quem antes de tudo o sertanejo é um forte.

O contraponto da dureza é encontrado no amor, também familiar. Todas as cenas que envolvem a morte de Filipe recebem um tratamento e olhar extremamente carinhoso. Tiago é perceptivo o bastante para acordar de madrugada e perceber que o irmão não está bem. O garoto geme baixinho e é questionado por Tiago que, aflito, pergunta o que se passa. Então é revelada uma proximidade muito grande entre os dois irmãos, que compartilham suas experiências, medos e sentimentos. Filipe revela que sentiu inveja do irmão, pois o papagaio aprendeu a falar o nome dele e não o seu. Tiago reage: corre até o bicho e insistentemente tenta fazer com que este aprenda o nome de Filipe. Quer satisfazer os desejos (e fantasias) do irmão. É a forma que encontra de responder e demonstrar o amor que sente. Kogut deixa que os pequenos momentos falem por si, como na seqüência em que Filipe dá vida às pipocas, transformando-as em cavaleiros, heróis, brinquedos.

No entanto, esse calmo acompanhamento é deixado de lado no decorrer do filme. Desde a morte de Filipe há uma aceleração na narrativa, deixando a impressão que aquela história deveria se resolver o quanto antes (daí a idéia de “ansiedade” citada no primeiro parágrafo deste texto). A morte do menino impulsiona o filme a explorar as idas e vindas dos personagens, que podem representar uma desestruturação familiar. Tiago é obrigado a deixar a casa, assim como o tio já havia feito. Quando recebe a notícia que seu pai matou um homem e, portanto, abandonou o lar, é levado de volta pelo tio. A idéia do retorno e do abandono é trabalhada com superficialidade, sem que nos preocupemos com a valorização do lar e do terreno de origem.

Estando em casa, Tiago recebe a visita de um médico que veio a região para uma conferência cotidiana. Sua primeira aparição é diante do garoto, que não responde com satisfação às suas perguntas. Na seqüência mal ajambrada e de algum mau-gosto (destoado inclusive do restante do filme), o médico tira seus grandes óculos para colocá-los no rosto do garoto. Situação fácil, Tiago “vê” o mundo, então desconhecido. O que aparentemente parece ser um problema de roteiro se revela, na verdade, como problema de montagem. Ao não receberem o tempo que demandam, as circunstâncias da visita do médico são tratadas com tamanha objetividade que tira a graça da história. Qualquer sugestão de que os óculos são elementos de fantasia é deixada de lado para embarcarmos na materialidade de que aquilo nada mais é do que um instrumento de correção. Resta ao espectador o bom senso de escapar da idéia de que Tiago careça disso para se localizar naquele espaço. Em se tratando de Rosa, uma vez mais, há sempre um indício fantasioso, aqui não trabalhado.

Então o filme passa a privilegiar os acontecimentos, em detrimento de suas durações. Os fatos são todos atropelados, sem que possamos nos envolver com seus resultados e desdobramentos. As elipses narrativas que cediam espaço a tempos de respiro (constituintes da comoção pretendida) são agora simplesmente ferramentas narrativas. A justaposição abrupta dos fatos leva a crer que Sandra Kogut se esqueceu de toda a construção e levada que criara, parecendo querer dar conta de finalizar o filme dentro de 90 minutos. Mera especulação, mas deve-se lembrar que o filme tem co-produção francesa e deve atender às necessidades do “filme de arte”. Assim sendo, essa minutagem vem bem a calhar. Para a lógica de mercado, e não para o filme – que perde, e muito.

E se essa crítica acaba assim, meio de repente, é por corresponder ao sentimento que o filme passa. Emocionante em um primeiro momento, corrido e passageiro no instante seguinte.

Raphael Mesquita