MUNDO LIVRE
Ken Loach, It's a Free World..., Reino Unido / Itália / Alemanha / Espanha, 2007

Até quando Ken Loach vai fazer um “cinema social”, caindo em todas as armadilhas que esse gênero pode criar? Seu último filme, Mundo Livre, impressiona por conseguir explodir todas as minas colocadas em seu caminho, como um cego em um campo de batalha. Seus filmes são filmes-tese, desejam antes passar uma mensagem, provar algum ponto, do que contar uma história. Só que Ken Loach tem mostrado que suas teses sobre um mundo problemático são pouco interessantes, tão desenvolvidas quanto uma aula de sociologia do segundo grau, fazendo com que seus filmes, a serviço desses questionamentos, sejam repletos de personagens reduzidos a uma representação fechada, como provas demonstrativas de suas idéias. Mesmo que ele “advogue” em torno de causas dignas, sua construção dramática rasa pontuada por momentos fortes de injustiça parece desejar a comoção simpatizante de senhoras de bom-gosto, antes de querer causar uma revolta ativa em alguma parte da sociedade por revelar um problema desconhecido, cujo envolvimento dela pode ser decisivo. Para um cineasta que pretende mudar algo no mundo com suas denúncias, Ken Loach é reacionário.

O problema tratado por Mundo Livre, enlatado em um filme de 96 minutos, é o das péssimas condições de vida e de trabalho de imigrantes, legais ou ilegais, na Inglaterra e no resto da Europa. Logo no início do filme conhecemos Angie, a protagonista, que é demitida de seu trabalho em uma agência de recrutamento (convoca e organiza imigrantes para trabalhos temporários em empresas de clientes) e, irritada por ser sempre explorada e assediada por seus chefes, resolve criar sua própria agência clandestina, para assim ela mesma ganhar diretamente o dinheiro da exploração de seres humanos advindos de países do terceiro mundo. A personagem interpretada por Kierston Wareing segue a lógica de construção “realista” de filmes como Crash de Paul Haggis: seus conflitos são esquematicos e os personagens são sempre os vilões deles mesmos. Buscando algum tipo de equilíbrio de caráter de sua personagem, o diretor a transforma em um pêndulo entre a maldade e a bondade, como se um ato caridoso (Angie cuida de um perseguido político iraniano e de sua família arrumando um passaporte ilegal para ele) seguido de outro maldoso (a mesma Angie trata seus trabalhadores como gado) se equilibrassem e simplesmente representassem as contradições normais da alma humana, relativizando suas escolhas de vida duvidosas. Dada essa fórmula de encadeamento narrativo, não há mais nenhuma oscilação na trama até que chegue o momento que, em uma elipse, Angie se decida por ser realmente má.

Pois na parte final do filme, depois de se questionar e ser questionada sobre suas atitudes, a protagonista é espancada por um grupo de imigrantes que, recrutados por ela, haviam feito um trabalho pelo qual não receberam pagamento (o dono da fábrica clandestina também não havia pagado Angie, mas essa, apesar de “entender a situação deles”, se recusou a seguir a idéia da amiga e pagar os operários de seu próprio bolso). Ainda com o rosto marcado pelo ferimento, em casa com sua amiga, ela conta uma pilha de dinheiro que está acumulando quando sua janela é quebrada por um tijolo carregando um bilhete com a palavra “Bitch”. Não resta dúvidas que o mesmo grupo que a espancou ainda está em seu encalço. Um fade-out nos tira da conclusão da cena, a mulher chora em casa com sua amiga, e, em fade-in, somos apresentados a uma nova Angie, que desiste de sair da clandestinidade (algo que havia prometido a sua amiga e sócia) para fazer mais um trabalho, denunciando em seguida diversos imigrantes ilegais para a autoridade com o objetivo de usar suas precárias moradias para alojar seus trabalhadores, condição essencial para ela fechar negócio. Até final do filme, a antes “complexa” protagonista, irá se agarrar com convicção ao caminho do egoísmo, mesmo que a família Iraniana que antes ela havia ajudado seja uma das famílias que ela denuncia (as ironias do destino pautam boa parte dos acontecimentos do filme), que sua melhor amiga a abandone ou que seu filho seja ameaçado. É importante contar essa parte do filme para atentar que, entre um fade e outro, Ken Loach arbitrariamente nos devolve uma personagem má, sufocando sem explicações uma personagem de nuances (óbvias e extremadas, é verdade) em uma mulher com coração de pedra. O entendimento do diretor sobre o comportamento e o caráter humano é tão ínfimo e apegado a fórmulas que uma mudança de comportamento de sua personagem precisou ser imposta a ela durante uma elipse. Na verdade, as elipses no filme em geral parecem obedecer a uma imposição do diretor, pautado pelo aquilo que interessa mostrar para se resultar em tal mensagem, ou tal efeito. Vemos em plano próximo Angie ser espancada, mas simplesmente somos privados de seu encontro íntimo com os imigrantes que ela chama para sua casa.

Na decupagem, o diretor demonstra uma falta de interesse em aprofundar nas imagens o que o seu filme superficializa com o roteiro, por isso ela obedece a cartilha que ele mesmo ajudou a inventar. Poloneses se comportam, se vestem e pensam da mesma forma que ucranianos, búlgaros ou árabes, mesmo quando são individualizados no filme, do mesmo jeito que a câmera filma cada um deles em plano médio generalizantes. A câmera na mão sempre serve para criar uma tensão “realista” nas cenas de distribuição de empregos, mesmo que, de fato, o que vemos seja um grupo cabisbaixo de pessoas ser ordenado aos berros por uma mulher estressada.  Todos os planos-contraplanos do filme são filmados com a mesma frieza didática, entre pai e filha, chefe/mulher e empregado/amante e mãe e filho. Loach não arrisca nem planos mais próximos quando eles não são óbvios.

É ainda mais preocupante que o discurso usado para justificar as ações no filme seja o mesmo do título irônico. “É um mundo livre...” nos diz a tradução literal, repetida na fala de Angie com seu pai, insinuando que sejam as más escolhas dentro de um mundo de “livre arbítrio” que causem os problemas dele, em um tipo de filosofia de botequim que o filme carrega. É como se, podendo fazer o que elas querem, as chances das pessoas  tomarem as atitudes erradas fosse um tipo de cara-e-coroa do destino, pois a multiplicidade de fatores que podem decidir isso na vida real (a educação, a influência da cultura e da mídia, o funcionamento das estruturas do estado) é demais para o cinema binário de Ken Loach trabalhar.

Bernardo Barcellos