Até quando Ken Loach
vai fazer um “cinema social”, caindo em todas as armadilhas
que esse gênero pode criar? Seu último filme, Mundo
Livre, impressiona por conseguir explodir todas
as minas colocadas em seu caminho, como um cego em um
campo de batalha. Seus filmes são filmes-tese, desejam
antes passar uma mensagem, provar algum ponto, do que
contar uma história. Só que Ken Loach
tem mostrado que suas teses sobre um mundo problemático
são pouco interessantes, tão desenvolvidas quanto uma aula de sociologia do segundo grau,
fazendo com que seus filmes, a serviço desses questionamentos,
sejam repletos de personagens reduzidos a uma representação
fechada, como provas demonstrativas de suas idéias.
Mesmo que ele “advogue” em torno de causas dignas, sua
construção dramática rasa pontuada por momentos fortes
de injustiça parece desejar a comoção simpatizante de
senhoras de bom-gosto, antes de querer causar uma revolta
ativa em alguma parte da sociedade por revelar um problema desconhecido, cujo envolvimento dela pode ser decisivo.
Para um cineasta que pretende mudar algo no mundo com
suas denúncias, Ken Loach é reacionário.
O problema tratado por Mundo Livre, enlatado em um filme
de 96 minutos, é o das péssimas condições de vida e
de trabalho de imigrantes, legais ou ilegais, na Inglaterra
e no resto da Europa. Logo no início do filme conhecemos
Angie, a protagonista, que é demitida de seu trabalho em uma
agência de recrutamento (convoca e organiza imigrantes
para trabalhos temporários em empresas de clientes)
e, irritada por ser sempre explorada e assediada por
seus chefes, resolve criar sua própria agência clandestina,
para assim ela mesma ganhar diretamente o dinheiro da
exploração de seres humanos advindos de países do terceiro
mundo. A personagem interpretada por Kierston Wareing segue a lógica
de construção “realista” de filmes como Crash
de Paul Haggis: seus conflitos
são esquematicos e os personagens são sempre os vilões deles mesmos.
Buscando algum tipo de equilíbrio de caráter de sua
personagem, o diretor a transforma em um pêndulo entre
a maldade e a bondade, como se um ato caridoso (Angie
cuida de um perseguido político iraniano e de sua família
arrumando um passaporte ilegal para ele) seguido de
outro maldoso (a mesma Angie
trata seus trabalhadores como gado) se equilibrassem
e simplesmente representassem as contradições normais
da alma humana, relativizando
suas escolhas de vida duvidosas. Dada essa fórmula de
encadeamento narrativo, não há mais nenhuma oscilação
na trama até que chegue o momento que, em uma elipse,
Angie se decida por ser realmente má.
Pois na parte final do filme, depois de se questionar
e ser questionada sobre suas atitudes, a protagonista
é espancada por um grupo de imigrantes que, recrutados
por ela, haviam feito um trabalho pelo qual não receberam
pagamento (o dono da fábrica clandestina também não
havia pagado Angie, mas essa,
apesar de “entender a situação deles”, se recusou a
seguir a idéia da amiga e pagar os operários de seu
próprio bolso). Ainda com o rosto marcado pelo ferimento,
em casa com sua amiga, ela conta uma pilha de dinheiro
que está acumulando quando sua janela é quebrada por
um tijolo carregando um bilhete com a palavra “Bitch”.
Não resta dúvidas que o mesmo grupo que a espancou ainda
está em seu encalço. Um fade-out
nos tira da conclusão da cena, a mulher chora em casa
com sua amiga, e, em fade-in, somos apresentados a uma nova Angie,
que desiste de sair da clandestinidade (algo que havia
prometido a sua amiga e sócia) para fazer mais um trabalho,
denunciando em seguida diversos imigrantes ilegais para
a autoridade com o objetivo de usar suas precárias moradias
para alojar seus trabalhadores, condição essencial para
ela fechar negócio. Até final do filme, a antes “complexa”
protagonista, irá se agarrar com convicção ao caminho
do egoísmo, mesmo que a família Iraniana que antes ela
havia ajudado seja uma das famílias que ela denuncia
(as ironias do destino pautam boa parte dos acontecimentos
do filme), que sua melhor amiga a abandone ou que seu
filho seja ameaçado. É importante contar essa parte
do filme para atentar que, entre um fade e outro, Ken
Loach arbitrariamente nos
devolve uma personagem má, sufocando
sem explicações uma personagem de nuances (óbvias
e extremadas, é verdade) em uma mulher com coração de
pedra. O entendimento do diretor sobre o comportamento
e o caráter humano é tão ínfimo e apegado a fórmulas
que uma mudança de comportamento de sua personagem precisou
ser imposta a ela durante uma elipse. Na verdade, as
elipses no filme em geral parecem obedecer a uma imposição
do diretor, pautado pelo aquilo que interessa mostrar
para se resultar em tal mensagem, ou tal efeito. Vemos
em plano próximo Angie ser
espancada, mas simplesmente somos privados de seu encontro
íntimo com os imigrantes que ela chama para sua casa.
Na decupagem, o diretor demonstra
uma falta de interesse em aprofundar nas imagens o que
o seu filme superficializa
com o roteiro, por isso ela obedece a
cartilha que ele mesmo ajudou a inventar. Poloneses
se comportam, se vestem e pensam da mesma forma que
ucranianos, búlgaros ou árabes, mesmo quando são individualizados
no filme, do mesmo jeito que a câmera filma cada um
deles em plano médio generalizantes. A câmera
na mão sempre serve para criar uma tensão “realista”
nas cenas de distribuição de empregos, mesmo que, de
fato, o que vemos seja um grupo cabisbaixo de pessoas
ser ordenado aos berros por uma mulher estressada.
Todos os planos-contraplanos
do filme são filmados com a mesma frieza didática, entre
pai e filha, chefe/mulher e empregado/amante
e mãe e filho. Loach não arrisca
nem planos mais próximos quando eles não são óbvios.
É ainda mais preocupante que o discurso usado para justificar
as ações no filme seja o mesmo do título irônico. “É
um mundo livre...” nos diz a tradução literal, repetida
na fala de Angie com seu pai,
insinuando que sejam as más escolhas dentro de um mundo
de “livre arbítrio” que causem os problemas dele, em
um tipo de filosofia de botequim que o filme carrega.
É como se, podendo fazer o que elas querem, as chances
das pessoas tomarem as atitudes
erradas fosse um tipo de cara-e-coroa do destino, pois
a multiplicidade de fatores que podem decidir isso na
vida real (a educação, a influência da cultura e da
mídia, o funcionamento das estruturas do estado) é demais
para o cinema binário de Ken Loach
trabalhar.
Bernardo Barcellos
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