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                         A jovem Machiko 
                          trabalha em uma casa de repouso no alto de uma região 
                          bucólica. Ela cuida de Shigeki, 
                          um homem idoso que jamais se recuperou do trauma de 
                          ter perdido a esposa. Por um descuido, no passado, Machiko 
                          também sofreu uma perda irreparável: ela largou o filho 
                          sozinho e ele morreu. Shigeki 
                          a princípio rechaça agressivamente os cuidados de Machiko, 
                          mas pouco a pouco eles se entendem, se divertem de maneira 
                          infantil – “não há regras formais”, diz a amiga de Machiko, 
                          sua conselheira na primeira parte do filme. Numa cena 
                          ainda no começo, Shigeki apaga a “sílaba” do meio do nome de Machiko, que ela escreveu num papel. O que sobra é Mako, nome do falecido amor de Shigeki. 
                          Está selado o pacto: um mediará o “mogari” 
                          (o “tempo do luto”) do outro. Machiko 
                          deverá cuidar desse homem com idade para ser seu avô 
                          como se ele fosse um filho – cuidado devidamente retribuído 
                          pela profunda e discreta sabedoria de Shigeki. 
                           
                          O peso do passado, portanto, se planta 
                          lá na raiz de Floresta dos Lamentos, cujas imagens são 
                          assediadas por visitas fantasmáticas, encomendas da 
                          memória. Uma dimensão do inaparente 
                          e do invisível tenciona cada plano de Floresta 
                          dos Lamentos, mas, como em Shara, 
                          isso escapa a todo o bê-a-bá 
                          da metafísica ou do transcendental. O fora-de-campo 
                          novamente se vê inflacionado de sons, de vozes, de invasões 
                          do mundo, de fenômenos da natureza (como a chuva), de 
                          sopros de vida que estão por todos os lados. Nesse universo 
                          em que o retângulo cinematográfico é apenas o corte 
                          mínimo de um conjunto muito maior e complexo, sair de 
                          quadro parece fácil e até natural. Esse fora-de-campo 
                          é a continuação – e, sobretudo, a multiplicação – da 
                          vida que está em quadro, mas é também a dúvida, a ameaça. 
                          Kawase aqui se defronta com 
                          essa questão que era o ponto de partida de Shara: fugir do quadro pode significar 
                          sumir do filme, deixar-se sugar por uma armadilha do 
                          espaço. A câmera, no início de Shara, 
                          vacilava e, por um detalhe de reenquadramento, 
                          não acompanhava um dos meninos que corriam por estreitas 
                          ruas e vielas. Erro fatal: o menino que a câmera perdeu 
                          de vista desapareceria para sempre. Mas, em Floresta dos Lamentos, Machiko não perde Shigeki de vista 
                          senão por alguns minutos. Ela o deixa no carro que encalhou 
                          na beira da estradinha de terra e vai buscar ajuda. 
                          Shigeki, enquanto isso, sai 
                          do carro, olha ao redor. Vemos um plano de folhas ao 
                          vento e o tema da desaparição retorna ao cinema de Kawase. 
                          Quando volta ao carro e não encontra Shigeki, 
                          Machiko sai correndo à sua procura, até encontrá-lo em uma 
                          plantação de melancias. É então que, num misto de intuição, 
                          instinto e teimosia, ele vai conduzindo Machiko 
                          para o interior da floresta.  
                           
                          Kawase mais uma vez não constrói 
                          o drama, pois este preexiste ao filme e nele permanece 
                          como tensão subterrânea. Ela constrói tão-somente a 
                          diegese, que se funda por 
                          conjuntos de forças contraditórias e cúmplices, uma 
                          visão cosmológica que se articula à natureza e seus 
                          ciclos, seus fluxos, suas concentrações e intensidades. 
                          Os personagens, uma vez instalados no tempo e no lugar 
                          do filme, participam de uma lógica de troca e circulação 
                          (de energia, traumas, afetos, vivências). Enquanto Apichatpong 
                          e Hou Hsiao-hsien – outros dois geniais cineastas contemporâneos 
                          que representam a vida como fato enérgico e dramatizam 
                          os limites do visível – tendem a uma espécie de formalismo 
                          calmo, de duração serena, Kawase 
                          devolve a essa tranqüilidade o furor da natureza, suas 
                          correntezas intempestivas. Floresta 
                          dos Lamentos reencontra uma violência nativa do 
                          mundo. Há uma boa parte do filme que trabalha na chave 
                          do suspense, enfatizando a tensão e a sugestão, o risco 
                          da aventura, um cinema natural-fantástico (a realizadora 
                          encontra um pouco dos conterrâneos Shinji Aoyama e Kiyoshi Kurosawa pelo caminho).  
                           
                          Machiko e Shigeki 
                          se embrenham no meio da floresta, esse lugar reconfortante 
                          e perigoso ao mesmo tempo. Eles a atravessam se defrontando 
                          com signos de vida e de morte, como no decurso de uma 
                          jornada clássica de transformação dos heróis. Porém 
                          não há resolução psicológica, e sim uma escavação do 
                          drama na terra, na paisagem. O clímax do suspense é 
                          a passagem pelo rio, com Machiko 
                          aos berros e Shigeki obstinado 
                          de forma quase suicida. Uma enxurrada irrompe bruscamente, 
                          e a iminência da fatalidade é depois amenizada pelas 
                          palavras reluzentes de Shigeki: 
                          a água do rio que passa jamais retorna à sua origem 
                          – comentário filosófico sobre o próprio enredo de superação 
                          do filme. À noite, mesmo com a fogueira acesa, Shigeki desmaia de frio, e Machiko 
                          tira a blusa para pôr sua pele em contato com a dele, 
                          nessa cena inesquecível de um corpo emprestando calor 
                          ao outro. É como se para voltar à vida, para superar 
                          o luto, fosse preciso um flerte com a morte, uma experiência 
                          limite, uma prova de esforço e resistência das funções 
                          vitais. O corpo precisa ser atravessado por uma nova 
                          voltagem. Kawase filma o corpo, 
                          sem dúvida, mas não é aquela mistura de realidade carnal 
                          e fragrância afrodisíaca do cinema de Claire 
                          Denis. O corpo em Kawase é um puro suporte de energia e afetos, massa prenhe 
                          de vida.  
                           
                          O trabalho de dramaturgia e a movimentação instável 
                          da câmera ativam forças nos personagens e na natureza, 
                          constituindo uma apreensão mágico-concreta do enredo. 
                          Shigeki e Machiko 
                          estavam imantados ao coração secreto da floresta. Uma 
                          vez o tendo atingido, eles não pensam ainda na volta. 
                          No desconcertante final do filme, Machiko 
                          olha para cima sem clamar por nenhuma aparição, nenhuma 
                          esfera transcendente que venha pôr ordem na indeterminação 
                          do mundo ou explicar seu mistério. O som ensurdecedor 
                          do helicóptero – o resgate dos aventureiros perdidos? 
                          – não se traduz em imagem, a câmera aponta na direção 
                          do céu mas nada encontra, e 
                          portanto retorna ao solo onde Shigeki 
                          encosta a cabeça (“eu quero dormir aqui, me sinto tão 
                          bem...”). Machiko continua olhando para cima, ela está abismada com 
                          esse mundo maravilhoso, monstruoso, que dá e tira vida. 
                          E a experiência que Floresta dos Lamentos provoca no espectador 
                          não é muito diferente disso. Um filme assustadoramente 
                          humano e místico; o Stalker de Naomi Kawase, um ritual de cura pela terra e pela água, uma fé que 
                          nasce e se propaga como um processo físico produzido 
                          no corpo. O cinema celebra o absurdo terrível e lindo 
                          que é a vida. 
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                          
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