Married Life é um filme
de reconstrução de época (no caso, EUA no fim dos anos
40), em que um homem (Chris
Cooper) sem saber como pedir o divorcio a esposa (Patricia
Clarkson), resolve matá-la.
Sachs vencera Sundance
com seu filme anterior Quarenta Tons de Azul, e faz aqui o inevitável
– dentro da lógica do cinema independente americano
– próximo passo numa produção maior e repleta de atores
conhecidos. Seu interesse, no entanto, tem pouca relação
com o lado fácil de tal premissa (a crítica aos subúrbios
americanos de 60 anos atrás), ele está mais preocupado
nas possibilidades de fazer uma meticulosa reconstrução
do período e no possível jogo entre a rigidez de tal
formato e o exercício social que suas personagem realizam
cotidianamente. Assim como o que pode retirar dos recursos
mais amplos à sua disposição.
Sachs realiza este processo
por vezes de maneira bem explicita, ameaçando até soterrar
o filme sob o peso da produção e da direção de arte,
por outras a partir de uma enumeração de pequenos detalhes
cotidianos, extraídos tanto pelo bom olhar observador
do cineasta, assim como pela sua inspirada parceria
com seu elenco. Married Life não deixa de ser o exato oposto do filme que sua
sinopse descreve, já que se trata de um trabalho expansivo
que pela acumulação de pequenos elementos termina nos
deixando com uma paisagem humana bem maior do que começou,
ao invés de reduzi-la a alguns poucos tiques supostamente
críticos. Que o filme por vezes pareça se sufocar em
sua reconstituição é um risco calculado, já que ela
é essencial para o jogo que o cineasta propõe.
Este jogo nunca fica tão claro quanto na ótima seqüência
em que Pierce Brosnan descobre que a esposa do seu amigo tem um amante.
A começar pelo clássico plano pictórico-iconográfico
de dona de casa, com que Sachs abre a cena, que acaba dando espaço a uma sensualidade
inesperada. Toda a seqüência é construída de maneira
circular com Brosnan primeiro negando o assunto e depois de ser confrontado
com ele tentando reduzi-lo a nada. A seqüência é toda
construída no encontro das duas esferas de atuação por
parte dos envolvidos, tanto seu desconforto pessoal
quanto a sua necessidade de manter seu papel, e no caso
de Brosnan ainda somam-se as informações
privadas sobre o amigo de que só ele dispõe – e a maneira
com que o ator consegue sugerir seu personagem pensando
de três maneiras radicalmente diferentes ao mesmo tempo
apontam quão inspirado ele se revela ao longo de todo
o filme.
Mas talvez o grande momento do filme venha quando o
cineasta interrompe a sua reconstituição precisa e de
maneira anacrônica faz uma homenagem a Mes Petites Amoureuses de Jean Eustache
(uma referência que diz muito sobre os interesses estéticos
do cineasta) fazendo com que Brosnan
vá assistir Pandora & The
Flying Dutchmen, um filme que
só seria lançado dentro de alguns anos.
Nesse momento em que o projeto do filme se interrompe
para permitir ao personagem uma epifania
e uma forma de pastiche se sobrepõe à outra, Married Life encontra
seu sentido.
Filipe Furtado
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