MARRIED LIFE
Ira Sachs, EUA, 2007

Married Life é um filme de reconstrução de época (no caso, EUA no fim dos anos 40), em que um homem (Chris Cooper) sem saber como pedir o divorcio a esposa (Patricia Clarkson), resolve matá-la. Sachs vencera Sundance com seu filme anterior Quarenta Tons de Azul, e faz aqui o inevitável – dentro da lógica do cinema independente americano – próximo passo numa produção maior e repleta de atores conhecidos. Seu interesse, no entanto, tem pouca relação com o lado fácil de tal premissa (a crítica aos subúrbios americanos de 60 anos atrás), ele está mais preocupado nas possibilidades de fazer uma meticulosa reconstrução do período e no possível jogo entre a rigidez de tal formato e o exercício social que suas personagem realizam cotidianamente. Assim como o que pode retirar dos recursos mais amplos à sua disposição.

Sachs realiza este processo por vezes de maneira bem explicita, ameaçando até soterrar o filme sob o peso da produção e da direção de arte, por outras a partir de uma enumeração de pequenos detalhes cotidianos, extraídos tanto pelo bom olhar observador do cineasta, assim como pela sua inspirada parceria com seu elenco. Married Life não deixa de ser o exato oposto do filme que sua sinopse descreve, já que se trata de um trabalho expansivo que pela acumulação de pequenos elementos termina nos deixando com uma paisagem humana bem maior do que começou, ao invés de reduzi-la a alguns poucos tiques supostamente críticos. Que o filme por vezes pareça se sufocar em sua reconstituição é um risco calculado, já que ela é essencial para o jogo que o cineasta propõe.

Este jogo nunca fica tão claro quanto na ótima seqüência em que Pierce Brosnan descobre que a esposa do seu amigo tem um amante. A começar pelo clássico plano pictórico-iconográfico de dona de casa, com que Sachs abre a cena, que acaba dando espaço a uma sensualidade inesperada. Toda a seqüência é construída de maneira circular com Brosnan primeiro negando o assunto e depois de ser confrontado com ele tentando reduzi-lo a nada. A seqüência é toda construída no encontro das duas esferas de atuação por parte dos envolvidos, tanto seu desconforto pessoal quanto a sua necessidade de manter seu papel, e no caso de Brosnan ainda somam-se as informações privadas sobre o amigo de que só ele dispõe – e a maneira com que o ator consegue sugerir seu personagem pensando de três maneiras radicalmente diferentes ao mesmo tempo apontam quão inspirado ele se revela ao longo de todo o filme.

Mas talvez o grande momento do filme venha quando o cineasta interrompe a sua reconstituição precisa e de maneira anacrônica faz uma homenagem a Mes Petites Amoureuses de Jean Eustache (uma referência que diz muito sobre os interesses estéticos do cineasta) fazendo com que Brosnan vá assistir Pandora & The Flying Dutchmen, um filme que só seria lançado dentro de alguns anos.  Nesse momento em que o projeto do filme se interrompe para permitir ao personagem uma epifania e uma forma de pastiche se sobrepõe à outra, Married Life encontra seu sentido.

Filipe Furtado