LADY CHATTERLEY
Pascale Ferran, França/Bélgica/Inglaterra, 2006

Todas as coisas do mundo

Quem somos nós para pôr um limite entre o corpo e o mundo, se o mundo é carne?

Maurice Merleau-Ponty

Lady Chatterley é um filme sobre a experiência sensorial do mundo. Pascale Ferran é mais simples e direta do que a maior parte dos outros grandes do cinema contemporâneo que lidam com a questão, pois em seu filme, o mundo simplesmente é. Quando Constance Chatterley caminha pelo seu bosque, tudo que está na tela simplesmente aflora. Certos filmes, e este é um deles, fazem com que nos lembremos da velha máxima rivettiana da evidencia da imagem. Não há por que discutir o gênio de Lady Chatterley, pois Pascale Ferran nos ofereceu 168 minutos de imagens como prova.

Lady Chatterley é um filme maravilhoso porque é um filme sobre a força carnal do mundo. Não é à toa que Pascale Ferran, ao adaptar o romance de D.H. Lawrence, opte pela segunda versão do livro, aquela que reduz a sua trama ao seus elementos mais básicos e dispensa das principais complicações dramáticas do último ato, e que, como adaptadora, opte por retirar de Lawrence praticamente tudo que envolve seu contexto histórico-social, assim como elidir qualquer evento que não seja essencial – apesar de sua duração, Lady Chatterley é extremamente econômico. Ferran, desta maneira, reduz seu filme ao mínimo, e depois procede de maneira a preenchê-lo com lugares e corpos, todos eles filmados de forma a ressaltar sua existência como matéria. As imagens de Lady Chatterley são densas, sua natureza reverbera com uma carnalidade própria. O mundo no que ele tem de mais expressivo, onde a vegetação, as gotas de chuva, mesmo o ar recuperam seu estatuto de matéria viva. Trata-se do mesmo tipo de operação que Jean Renoir realiza num Um Dia no Campo ou O Rio Sagrado. Um filme em que sentimos a cada plano o peso monumental do mundo no seu estado mais puro, onde até a brisa de ar ganha forma.

Nada disso seria possível, porém, sem os corpos e os rostos de Marina Hands e Jean-Louis Coulloc'h. Raros são os filmes tão atentos à expressividade do gesto e à força do olhar. É justamente um rápido olhar de Constance (Hands) sobre um insuspeito Parkin (Coulloc'h) a se banhar o que primeiro desperta nela o irreconciliável desejo. O processo que esta simples imagem (um homem a se banhar) põe em ação é de uma reeducação à sensibilidade do olhar ao qual Ferran se entrega sem medo de seus excessos. É por isso que o filme precisa ter a duração que tem, que Ferran precisa respeitar cada momento que custe a Constance no processo que a leva a oferecer seu corpo sem qualquer culpa ao homem que ama.

É preciso ressaltar a maneira com que Hands e Coulloc'h se portam na tela, a absoluta segurança com que se movem. Não é comum o cinema apresentar dois corpos de maneira tão confortável um com o outro, forjar de maneira tão tranqüila a intimidade dos corpos. Lady Chatterley é um filme táctil sobre como experienciamos o humano e a maneira como Hands e Coulloc'h impõem sua fisicalidade sobre o espaço e o outro é vital para o sucesso da empreitada da cineasta. A partir do ponto que Constance e Parkin se entregam em definitivo a sua paixão, o próprio filme se entrega a uma relação corpo/mundo e como a carnalidade se dilata neste contato que é de uma beleza incomum. A hora final do filme é uma sustentada epifania, de uma densidade na sua relação câmera/corpo/espaço impressionante, o maravilhamento do mundo encontrando vazão concreta em cada plano.

Ainda não falamos do rosto dos atores, especialmente o olhar de Marina Hands. A maneira como seu rosto se ilumina diante do que vê, como Hands complementa as imagens que Ferran produz. Lady Chatterley inclui algumas das imagens subjetivas mais fortes do cinema recente, mas a simbiose entre diretora e sua atriz central é tal que não sabemos se a maior parte da força emana do plano ou do contracampo do rosto da atriz. Não é por nada que Ferran possa dispensar com todo o material político do livro, pois um plano do rosto de Hands nos dirá mais sobre como aquela personagem enxerga a Inglaterra do entre guerras do que páginas e mais páginas de contextualização histórica. Não há nada mais impressionante no filme do que a maneira com que o rosto de Hands expressa o maravilhamento com que se entrega à carnalidade do mundo à sua volta.

Lady Chatterley é tão simples quanto elusivo, um filme que existe a parte de qualquer discussão retórica. O que ele faz é talvez o que existe de mais básico, mas ao mesmo tempo raro no cinema, esta mais sensual das artes: uma celebração da experiência do mundo.


Filipe Furtado

 

 





Marina Hands e Jean-Louis Coulloc'h em
Lady Chatterley de Pascale Ferran