Todas
as coisas do mundo
Quem somos nós para pôr um limite entre
o corpo e o mundo, se o mundo é carne?
Maurice Merleau-Ponty
Lady Chatterley é um filme sobre a experiência
sensorial do mundo. Pascale Ferran é mais simples
e direta do que a maior parte dos outros grandes do
cinema contemporâneo que lidam com a questão,
pois em seu filme, o mundo simplesmente é. Quando
Constance Chatterley caminha pelo seu bosque, tudo que
está na tela simplesmente aflora. Certos filmes,
e este é um deles, fazem com que nos lembremos
da velha máxima rivettiana da evidencia da imagem.
Não há por que discutir o gênio
de Lady Chatterley, pois Pascale Ferran nos ofereceu
168 minutos de imagens como prova.
Lady Chatterley é um filme maravilhoso
porque é um filme sobre a força carnal
do mundo. Não é à toa que Pascale
Ferran, ao adaptar o romance de D.H. Lawrence, opte
pela segunda versão do livro, aquela que reduz
a sua trama ao seus elementos mais básicos e
dispensa das principais complicações dramáticas
do último ato, e que, como adaptadora, opte por
retirar de Lawrence praticamente tudo que envolve seu
contexto histórico-social, assim como elidir
qualquer evento que não seja essencial – apesar
de sua duração, Lady Chatterley é
extremamente econômico. Ferran, desta maneira,
reduz seu filme ao mínimo, e depois procede de
maneira a preenchê-lo com lugares e corpos, todos
eles filmados de forma a ressaltar sua existência
como matéria. As imagens de Lady Chatterley
são densas, sua natureza reverbera com uma
carnalidade própria. O mundo no que ele tem de
mais expressivo, onde a vegetação, as
gotas de chuva, mesmo o ar recuperam seu estatuto de
matéria viva. Trata-se do mesmo tipo de operação
que Jean Renoir realiza num Um Dia no Campo ou
O Rio Sagrado. Um filme em que sentimos a cada
plano o peso monumental do mundo no seu estado mais
puro, onde até a brisa de ar ganha forma.
Nada disso seria possível, porém, sem
os corpos e os rostos de Marina Hands e Jean-Louis Coulloc'h.
Raros são os filmes tão atentos à
expressividade do gesto e à força do olhar.
É justamente um rápido olhar de Constance
(Hands) sobre um insuspeito Parkin (Coulloc'h) a se
banhar o que primeiro desperta nela o irreconciliável
desejo. O processo que esta simples imagem (um homem
a se banhar) põe em ação é
de uma reeducação à sensibilidade
do olhar ao qual Ferran se entrega sem medo de seus
excessos. É por isso que o filme precisa ter
a duração que tem, que Ferran precisa
respeitar cada momento que custe a Constance no processo
que a leva a oferecer seu corpo sem qualquer culpa ao
homem que ama.
É preciso ressaltar a maneira com que Hands e
Coulloc'h se portam na tela, a absoluta segurança
com que se movem. Não é comum o cinema
apresentar dois corpos de maneira tão confortável
um com o outro, forjar de maneira tão tranqüila
a intimidade dos corpos. Lady Chatterley é
um filme táctil sobre como experienciamos o humano
e a maneira como Hands e Coulloc'h impõem sua
fisicalidade sobre o espaço e o outro é
vital para o sucesso da empreitada da cineasta. A partir
do ponto que Constance e Parkin se entregam em definitivo
a sua paixão, o próprio filme se entrega
a uma relação corpo/mundo e como a carnalidade
se dilata neste contato que é de uma beleza incomum.
A hora final do filme é uma sustentada epifania,
de uma densidade na sua relação câmera/corpo/espaço
impressionante, o maravilhamento do mundo encontrando
vazão concreta em cada plano.
Ainda não falamos do rosto dos atores, especialmente
o olhar de Marina Hands. A maneira como seu rosto se
ilumina diante do que vê, como Hands complementa
as imagens que Ferran produz. Lady Chatterley inclui
algumas das imagens subjetivas mais fortes do cinema
recente, mas a simbiose entre diretora e sua atriz central
é tal que não sabemos se a maior parte
da força emana do plano ou do contracampo do
rosto da atriz. Não é por nada que Ferran
possa dispensar com todo o material político
do livro, pois um plano do rosto de Hands nos dirá
mais sobre como aquela personagem enxerga a Inglaterra
do entre guerras do que páginas e mais páginas
de contextualização histórica.
Não há nada mais impressionante no filme
do que a maneira com que o rosto de Hands expressa o
maravilhamento com que se entrega à carnalidade
do mundo à sua volta.
Lady Chatterley é tão simples quanto
elusivo, um filme que existe a parte de qualquer discussão
retórica. O que ele faz é talvez o que
existe de mais básico, mas ao mesmo tempo raro
no cinema, esta mais sensual das artes: uma celebração
da experiência do mundo.
Filipe Furtado
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