IMPÉRIO DOS SONHOS
David Lynch, Inland Empire, EUA/Polônia, 2006

Inland Empire é um exercício em alteridade. O filme se desenvolve como uma sucessão de experiências de transformação em outro. Mas dessa vez, ao contrário de Mulholland Drive, não vemos a narrativa de um sonho seguida de um surto de loucura: vemos um tudo-ao-mesmo-tempo-agora indiscernível ao ponto de não sabermos o que tem consistência de realidade ou de delírio, ou de outra coisa – há tantas possibilidades. Inland Empire apresenta coisas que podemos interpretar como sonhos e alucinações, mas dessa vez acrescenta ainda duas outras camadas, claro, já existentes em sua obra, mas nunca com a devida atenção: a alteridade provocada pelo ser-atriz (ou ser-ator) e a alteridade provocada por ser espectador. David Lynch nos ajuda dizendo que Inland Empire é "sobre uma mulher em perigo". E como Laura Dern é a protagonista, cremos que a frase diz respeito a ela. Mas nada impede que nossa mulher em perigo seja a personagem interpretada pela polonesa Karolina Gruszka, que vemos quase sempre diante da televisão, chorando, entre paralisada e anestesiada (nos créditos está "Lost Girl"). Todo o filme, aliás, pode se sustentar como o amálgama de uma série de situações que derivam da memória dela, do que está passando na televisão e uma mistura de ambos. Mas, da mesma forma, podemos considerá-lo – e talvez seja mais divertido – como um Intolerância desconjuntado, mas que mesmo assim atinge o clímax dramático na aproximação dos mundos distantes apresentados.

Como já se disse, trata-se do mais radical filme de David Lynch até hoje (tanto em termos de discernibilidade da trama quanto no perfil de produção, filmado inteiramente num digital que nem HD é). O que pouco se disse foi que Lynch levou sua mestria em desorientar a patamares que arriscam até a frustrar grande parte de seu público. Pois, em filmes como Estrada Perdida ou Mulholland Dr. o espanto pela construção narrativa inesperada era compensado pelo jogo com o cinema de gênero (o thriller, em especial) e pela incrível inclinação pop da imagens. Em Inland Empire isso até está presente, mas não ocupa o filme inteiro. É que Lynch precisou dizer mais uma vez, repetir o estribilho de Godard: não é a história que é importante, mas a emoção evocada pelas imagens. Daí o choro de nossa Karolina polonesa, que rima com a lágrima de Laura Harring em Mulholland Dr., e aqui serve de leitmotiv para o filme.

Se há sentido em aproximar Inland Empire com outro filme da história do cinema, talvez seja O Espelho de Andrei Tarkovski. Em ambos há essa fragmentação que não conseguimos atribuir a uma instância definida (sonho, memória, ficção, realidade, presente ou passado) e ao mesmo tempo esse sentimento de suspensão que, passado algum tempo de projeção, não sabemos sem olhar o relógio se estamos vendo aquilo há uma hora ou o triplo disso. Tanto Tarkovski quanto Lynch, minimizando a importância da história linear, recorrem ao mistério da imagem como experiência encantatória. No russo, esse é o mistério de uma interpretação mística do mundo, de que há na realidade que se vê mais do que a percepção dos sentidos deixa perceber. Já no americano, mais Méliès que Lumière na famosa partilha de crenças, a mística se dá na proposta de cativar a imaginação, no ato de ficcionar e criar mundos imaginários, sair da literalidade do registro narrativo para fazer o espectador se perder no universo exuberante e assustador de sugestão da imagem. A radicalidade de Inland Empire talvez venha justamente daí: nos filmes anteriores, o registro narrativo indicava a abertura mas mantinha a função de entreter o espectador nem que fosse com a promessa de resolução; agora, ele pede ao espectador que entretenha-se com aquilo que está sendo mostrado, que, duas vezes guiado pela mão até a sintonia com a qual os filmes pedem para ser vistos, agora Lynch faz com seu espectador para caminhar sozinho. Assim, Inland Empire acaba representando na carreira de Lynch o que Death Proof representa na de Tarantino: um mergulho total num universo de imagens desejadas que antes tinham que negociar sua presença entre outros signos mais palatáveis.

É curioso que o leitmotiv do filme seja uma mulher chorando diante da televisão. Curioso que nas seqüências com pessoas de rosto de coelho (que o fã de David Lynch reconhecerá como sendo sua série para internet Rabbits, disponível em seu website) haja aquela claque de risos pré-gravados onipresente nos seriados e programas de comédia, que vejamos tudo como fragmentos de filmes – ou mesmo novelas – já começados e que a qualidade da imagem e alguns movimentos bruscos de câmera ou zoom nos façam pensar antes em televisão do que em cinema. Homenagem à televisão, Inland Empire? Possivelmente, e com razão, afinal foi a partir do trabalho com televisão em Twin Peaks que Lynch caiu definitivamente nas graças de todos. Mas esse tributo não nasce como emulação, antes como subversão. Lynch nos mostra uma série de situações que bem poderiam ser vistas corriqueiramente na televisão, só que teima em retirar delas o sentido narrativo, seja porque não sabemos o que levou os personagens até ali, seja porque não conseguimos identificar a razão da intriga, seja porque existe uma trama de mistério (acompanhada, como não poderia deixar de ser, pela música característica) cujo mistério efetivamente nos escapa. O resultado é um monumental zapping através da Lynchlândia transformada em rede de canais a cabo.

É preciso, no entanto, distinguir o zapping lynchiano de um simples pot-pourri redundante e autocomplacente. Pois o exato charme de Inland Empire é levar o universo lynchiano a um nível totalmente outro, a um fôlego de fragmentação e descompromisso com as regras costumeiras da narrativa que aproxima o filme mais do cenário da vanguarda do que do bom e velho cinema comercial. Esse desprendimento muitas vezes é garantia de resultados catastróficos (Full Frontal de Steven Soderbergh, Black Moon de Louis Malle), mas em se tratando de David Lynch temos a clara certeza de que aquelas imagens que Inland Empire tão erraticamente exibe são a fina flor da produção de seu autor, a utopia de seu cinema: nexo emocional e não lógico, mistério abominável contra a doçura harmoniosa do amor (Marilyn Manson contra Julle Cruise), força evocativa da imagem, sugestão mais importante que a resolução.

O cinema de David Lynch é muito sobre o simples gesto de ver cinema, ou imagens, e reagir a elas. Não à toa, sempre houve espectadores em seus filmes, Lara Flynn Boyle e o namorado que viam a apresentação de Julee Cruise na série Twin Peaks, Laura Herring em Mullholland Dr., os espectadores do espancamento de Kyle MacLachlan em Veludo Azul. Em Inland Empire, o espectador se mistura com a própria ficção que lhe é apresentada, a ponto de ser indiscernível para nós distinguir entre visão passiva e produção própria. No filme, a viagem do espectador é identificada à alucinação, ao sonho, ao trabalho do ator: tornar-se outro ou, para usar vocabulário deleuziano, desterritorializar-se, sair dos amparos individuais da percepção, fazê-la cambalear no desconhecido da ausência de sentido e no excesso de intensidades livres de códigos (narrativos). Tema ao qual Lynch sempre retorna (mais evidentemente em Estrada Perdida e na "troca" de dois personagens), mas que em Inland Empire aparece como uma ontologia do ver cinema e, por extensão, do relacionar-se com o mundo: o que importa é o que se retém da experiência, e não se ela faz "sentido". Aos olhos do espectador de Lynch, a experiência é o sentido, e Inland Empire é a imponente comprovação dessa aposta.


Ruy Gardnier

 

 











Variações sobre mulheres em perigo: Karolina Gruszka
(primeira imagem) e Laura Dern (outras três)
em Inland Empire de David Lynch