Inland
Empire é um exercício em alteridade.
O filme se desenvolve como uma sucessão de experiências
de transformação em outro. Mas dessa vez,
ao contrário de Mulholland Drive, não
vemos a narrativa de um sonho seguida de um surto de
loucura: vemos um tudo-ao-mesmo-tempo-agora indiscernível
ao ponto de não sabermos o que tem consistência
de realidade ou de delírio, ou de outra coisa
– há tantas possibilidades. Inland Empire apresenta
coisas que podemos interpretar como sonhos e alucinações,
mas dessa vez acrescenta ainda duas outras camadas,
claro, já existentes em sua obra, mas nunca com
a devida atenção: a alteridade provocada
pelo ser-atriz (ou ser-ator) e a alteridade provocada
por ser espectador. David Lynch nos ajuda dizendo que
Inland Empire é "sobre uma mulher em perigo".
E como Laura Dern é a protagonista, cremos que
a frase diz respeito a ela. Mas nada impede que nossa
mulher em perigo seja a personagem interpretada pela
polonesa Karolina Gruszka, que vemos quase sempre diante
da televisão, chorando, entre paralisada e anestesiada
(nos créditos está "Lost Girl"). Todo
o filme, aliás, pode se sustentar como o amálgama
de uma série de situações que derivam
da memória dela, do que está passando
na televisão e uma mistura de ambos. Mas, da
mesma forma, podemos considerá-lo – e talvez
seja mais divertido – como um Intolerância
desconjuntado, mas que mesmo assim atinge o clímax
dramático na aproximação dos mundos
distantes apresentados.
Como já se disse, trata-se do mais radical filme
de David Lynch até hoje (tanto em termos de discernibilidade
da trama quanto no perfil de produção,
filmado inteiramente num digital que nem HD é).
O que pouco se disse foi que Lynch levou sua mestria
em desorientar a patamares que arriscam até a
frustrar grande parte de seu público. Pois, em
filmes como Estrada Perdida ou Mulholland
Dr. o espanto pela construção narrativa
inesperada era compensado pelo jogo com o cinema de
gênero (o thriller, em especial) e pela incrível
inclinação pop da imagens. Em Inland
Empire isso até está presente, mas
não ocupa o filme inteiro. É que Lynch
precisou dizer mais uma vez, repetir o estribilho de
Godard: não é a história que é
importante, mas a emoção evocada pelas
imagens. Daí o choro de nossa Karolina polonesa,
que rima com a lágrima de Laura Harring em Mulholland
Dr., e aqui serve de leitmotiv para o filme.
Se há sentido em aproximar Inland Empire com
outro filme da história do cinema, talvez seja
O Espelho de Andrei Tarkovski. Em ambos há
essa fragmentação que não conseguimos
atribuir a uma instância definida (sonho, memória,
ficção, realidade, presente ou passado)
e ao mesmo tempo esse sentimento de suspensão
que, passado algum tempo de projeção,
não sabemos sem olhar o relógio se estamos
vendo aquilo há uma hora ou o triplo disso. Tanto
Tarkovski quanto Lynch, minimizando a importância
da história linear, recorrem ao mistério
da imagem como experiência encantatória.
No russo, esse é o mistério de uma interpretação
mística do mundo, de que há na realidade
que se vê mais do que a percepção
dos sentidos deixa perceber. Já no americano,
mais Méliès que Lumière na famosa
partilha de crenças, a mística se dá
na proposta de cativar a imaginação, no
ato de ficcionar e criar mundos imaginários,
sair da literalidade do registro narrativo para fazer
o espectador se perder no universo exuberante e assustador
de sugestão da imagem. A radicalidade de Inland
Empire talvez venha justamente daí: nos filmes
anteriores, o registro narrativo indicava a abertura
mas mantinha a função de entreter o espectador
nem que fosse com a promessa de resolução;
agora, ele pede ao espectador que entretenha-se com
aquilo que está sendo mostrado, que, duas vezes
guiado pela mão até a sintonia com a qual
os filmes pedem para ser vistos, agora Lynch faz com
seu espectador para caminhar sozinho. Assim, Inland
Empire acaba representando na carreira de Lynch
o que Death Proof representa na de Tarantino:
um mergulho total num universo de imagens desejadas
que antes tinham que negociar sua presença entre
outros signos mais palatáveis.
É curioso que o leitmotiv do filme seja uma mulher
chorando diante da televisão. Curioso que nas
seqüências com pessoas de rosto de coelho
(que o fã de David Lynch reconhecerá como
sendo sua série para internet Rabbits,
disponível em seu website) haja aquela claque
de risos pré-gravados onipresente nos seriados
e programas de comédia, que vejamos tudo como
fragmentos de filmes – ou mesmo novelas – já
começados e que a qualidade da imagem e alguns
movimentos bruscos de câmera ou zoom nos
façam pensar antes em televisão do que
em cinema. Homenagem à televisão, Inland
Empire? Possivelmente, e com razão, afinal
foi a partir do trabalho com televisão em Twin
Peaks que Lynch caiu definitivamente nas graças
de todos. Mas esse tributo não nasce como emulação,
antes como subversão. Lynch nos mostra uma série
de situações que bem poderiam ser vistas
corriqueiramente na televisão, só que
teima em retirar delas o sentido narrativo, seja porque
não sabemos o que levou os personagens até
ali, seja porque não conseguimos identificar
a razão da intriga, seja porque existe uma trama
de mistério (acompanhada, como não poderia
deixar de ser, pela música característica)
cujo mistério efetivamente nos escapa. O resultado
é um monumental zapping através
da Lynchlândia transformada em rede de canais
a cabo.
É preciso, no entanto, distinguir o zapping
lynchiano de um simples pot-pourri redundante e
autocomplacente. Pois o exato charme de Inland Empire
é levar o universo lynchiano a um nível
totalmente outro, a um fôlego de fragmentação
e descompromisso com as regras costumeiras da narrativa
que aproxima o filme mais do cenário da vanguarda
do que do bom e velho cinema comercial. Esse desprendimento
muitas vezes é garantia de resultados catastróficos
(Full Frontal de Steven Soderbergh, Black
Moon de Louis Malle), mas em se tratando de David
Lynch temos a clara certeza de que aquelas imagens que
Inland Empire tão erraticamente exibe
são a fina flor da produção de
seu autor, a utopia de seu cinema: nexo emocional e
não lógico, mistério abominável
contra a doçura harmoniosa do amor (Marilyn Manson
contra Julle Cruise), força evocativa da imagem,
sugestão mais importante que a resolução.
O cinema de David Lynch é muito sobre o simples
gesto de ver cinema, ou imagens, e reagir a elas. Não
à toa, sempre houve espectadores em seus filmes,
Lara Flynn Boyle e o namorado que viam a apresentação
de Julee Cruise na série Twin Peaks, Laura
Herring em Mullholland Dr., os espectadores do
espancamento de Kyle MacLachlan em Veludo Azul.
Em Inland Empire, o espectador se mistura com
a própria ficção que lhe é
apresentada, a ponto de ser indiscernível para
nós distinguir entre visão passiva e produção
própria. No filme, a viagem do espectador é
identificada à alucinação, ao sonho,
ao trabalho do ator: tornar-se outro ou, para usar vocabulário
deleuziano, desterritorializar-se, sair dos amparos
individuais da percepção, fazê-la
cambalear no desconhecido da ausência de sentido
e no excesso de intensidades livres de códigos
(narrativos). Tema ao qual Lynch sempre retorna (mais
evidentemente em Estrada Perdida e na "troca"
de dois personagens), mas que em Inland Empire aparece
como uma ontologia do ver cinema e, por extensão,
do relacionar-se com o mundo: o que importa é
o que se retém da experiência, e não
se ela faz "sentido". Aos olhos do espectador de Lynch,
a experiência é o sentido, e Inland
Empire é a imponente comprovação
dessa aposta.
Ruy Gardnier
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