Carta aberta ao amigo Ricardo
Miranda
Ricardo,
Escrevo aqui o que não pude te dizer com calma na saída do cinema, após a apresentação
de A Etnografia da Amizade no Odeon. Seu filme é lindo, mas não é apenas
isso que eu queria dizer aqui. Seria muito fácil simplesmente qualificar A
Etnografia da Amizade como um filme lindo e emocionante – e ele é, mas por
caminhos e razões muito próprios, que fazem dele um filme único. O que vejo de
especial nele é o seguinte: o filme nos faz participar do afeto por Saraceni.
Eu poderia dizer de maneira mais simplista que a característica que o difere
de muitos outros documentários recentes é que se trata de um filme que provoca
a curiosidade do espectador, que não lhe dá todas as informações de mão beijada.
Mas acho que isso seria reduzir seu filme a um jogo de reconhecimento para iniciados – e
ele é bem mais que isso. É bem mais que isso justamente pelo despudor em entrar
nos mundos do Paulo César e se ligar intimamente a ele – no mundo dos amigos,
no mundo dos filmes, no mundo dos bares, no mundo das memórias, no mundo do carnaval
e tantos mais. Esse inventário dos afetos de Paulo César Saraceni não se faz
como mera enumeração, mas como participação de fato (isso é bastante evidente,
por exemplo, no momento em que o filme mostra as filmagens de Banda de Ipanema).
Porque seu filme não apenas mostra Saraceni, ele o vê, e o vê com o seu olhar,
Ricardo. E é assim que, como espectador, me senti convidado a vivenciar um pouco
do afeto que Paulo César espalha e gera pelo mundo afora.
E Paulo César Saraceni é um carioca cineasta que já viveu muitos bons momentos,
que já fez um bocado de filmes, que de fato tem muitos afetos espalhados e lembranças
felizes – de seu envolvimento com o futebol e com o cinema, de suas viagens,
de seus amigos, seus cúmplices e seus mestres, Mario Carneiro, Glauber Rocha,
Lúcio Cardoso, Otávio de Farias e tantos outros. O retrato que A Etnografia
da Amizade faz de Saraceni é uma elegia a um herói da afetividade, que naturalmente é também
um criador de belezas. É isso – o que esperávamos era um filme sobre um artista
historicamente importante, um livre criador, e o que temos é uma exibição de
evidências que, ao final, nos mostram que esse livre criador, para existir, precisa
ser um catalisador de afetos, imagens e idéias. É daí que surge Porto das
Caixas: mais do que por inspirações individuais, o filme surge da liga que
Paulo César faz surgir a partir da amizade com Irma Alvarez, Lúcio Cardoso, Mario
Carneiro, Tom Jobim... O mesmo pode ser dito de Banda de Ipanema (é a
amizade pelo falecido Albino Pinheiro, por Mario Carneiro e, enfim, por todos
os que criam aquela grande festa que faz o filme surgir), Bahia de Todos os
Sambas (Gianni Amico, Leon Hirzsman, a cultura baiana lá retratada...), O
Viajante (novamente Lúcio Cardoso, Mario Carneiro, agora Marília Pêra e,
como que mostrando que os afetos unem familiarmente, Paulo Jobim, o filho de
Tom) e, desconfio eu, de todos ou quase todos os filmes de Saraceni.
Por isso vi o seu filme como uma elegia a um certo cinema e, sobretudo, a um
certo modo de viver a vida como obra de arte (como outros já disseram). É isso
que se torna o Paulo César do seu retrato alguém capaz de se mostrar presente
e com personalidade única mesmo num comício festivo do MST. No seu filme, a vida
e o modo de ser de Saraceni são a sua mais admirável obra – algo que já me parecia
claro no livro fascinante que ele escreveu, Por Dentro do Cinema Novo – Minha
Viagem, mas que no seu filme é algo que toma corpo e sentido. Desse modo,
me pareceu que A Etnografia da Amizade conseguiu retratar o que Paulo César tem
de mais admirável e irretratável – e, assim, neste sentido seu filme acaba homenageando
não apenas ele, mas toda uma arte de viver e criar.
Foi por isso que eu quis te escrever essa carta, para agradecer publicamente
por essa feliz experiência.
Abraço grande,
Daniel Caetano
|