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                         Caso fosse uma peça de teatro, 
                          esse filme de Jane Birkin 
                          seria encenado em um palco multi-segmentado, 
                          composto de vários cubos cênicos interconectados. Um 
                          personagem repentinamente poderia passar de um cubo 
                          (ou de uma caixa) para outro. No filme, contudo, não 
                          há necessidade dessa engenharia cenográfica. Cada plano 
                          funciona como uma caixa conectada à outra pelo fora-de-campo 
                          e pela montagem. É sempre surpreendente quando um personagem, 
                          sem ter sido convidado, une-se à cena em andamento e 
                          contribui com sua resolução dramática. Birkin injeta 
                          vida nos mortos. O fora-de-campo 
                          assume um poder de encarnação: basta um contraplano 
                          e um novo corpo – antes relegado a um ponto cego da 
                          decupagem – está integrado 
                          ao filme, sem qualquer prejuízo da coerência e da unidade 
                          do espaço cênico. A partir de um certo momento, as cenas 
                          vivem na iminência de serem invadidas por mais personagens 
                          (já apresentados no filme ou não). 
                           
                          Caixas possui um clima de devaneio que 
                          o elenco sustenta em todas as suas virtudes. Michel 
                          Piccoli e Geraldine Chaplin levam ao filme 
                          o exato tom de drôlerie que outros atores, como a bela Lou Doillon, contrabalançam através 
                          de perturbações mais delicadas e tímidas. A loucura, 
                          a memória, o presente: tudo está no cenário e nos personagens. 
                          Não há trama, não há história, somente o jogo. 
                          Várias gerações e várias situações a princípio 
                          desconexas se articulam num lugar imaginário, manipulável, 
                          coordenado por um tempo reversível e múltiplo: a casa-cinema 
                          de Birkin é uma espécie de 
                          cubo mágico que guarda tanto a obscuridade quanto a 
                          aura lendária da vida da cantora/atriz/diretora. Através de Anna, a personagem que 
                          ela mesma interpreta, Jane Birkin 
                          coloca no filme uma sucessão de questões afetivas e 
                          familiares que ficaram mal resolvidas. Os perigos de 
                          um filme-catarse são afastados de forma por vezes até 
                          brilhante, e o tom passa longe, muito longe da amargura. 
                              
                          A narrativa se entrega a esse misto de prazer e desafio 
                          que é transformar a memória em um lugar – a casa. Caixas se torna, assim, uma inversão provocativa e elegante 
                          em relação ao enredo de fantasmagoria mais tradicional: 
                          na casa labiríntica para a qual a família se muda, as 
                          assombrações não se devem aos fantasmas dos antigos 
                          proprietários, mas sim às vivências da própria família, 
                          aos personagens do seu passado. Geralmente os fantasmas 
                          já habitam a casa e se vêem perturbados com a chegada 
                          de novos moradores. No filme de Birkin, 
                          são os novos moradores que levam seus próprios fantasmas 
                          nas caixas de mudança. Abertas as caixas, eles se libertam 
                          e circulam pela casa. Às vezes temos a impressão de 
                          presenciar uma versão frívola de Bergman: 
                          a decupagem é 
                          maliciosa, os acertos de contas entre os personagens 
                          são cruéis, os mortos são vivos e vice-versa – mas a 
                          casa não é asfixiante, há a possibilidade de sair, retornar, 
                          sair de novo. É possível “tomar um ar fresco”, como 
                          se diz quase ao final. A memória é um universo sem paredes. 
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                         
                           
                         
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