BELLE TOUJOURS – SEMPRE BELA
Manoel de Oliveira, Belle toujours, França/Portugal, 2006

Oliveira/Buñuel, uma união frutífera, duas almas convergentes? Para aqueles que dirigem um olhar meio apressado para o suposto racionalismo e para a clareza do diretor português, os dois estariam em aspectos diferentes dos valores humanos, um dissecando a razão e outro as irrupções do desejo que destróem e dominam o raciocínio. Mas basta um olhar um pouco mais agudo para revelar os distúrbios, as idéias fixas, a sede de irracional em personagens e intrigas oliveirianas: a resolução final de A Caça, a idéia fixa de Leonor Baldaque em O Princípio da Incerteza, Leonor Silveira em O Vale Abraão e Espelho Mágico, o final de Um Filme Falado. Em Buñuel a visão é ontológica, testando o tempo inteiro a tão propalada humanidade do homem e fazendo-a dialogar com a animalidade de seus instintos. Em Oliveira, ela é mediada pela História, porque não é só a animalidade, mas um conjunto de valores e códigos sociais que determinam comportamentos, ações, gostos, trabalhos, pensamentos. Mas não é só porque ela é agregada à História que essa visão não pode existir em todo seu caráter de exceção, de desvio, de perversão. Ao contrário, há um lado perverso pronunciado em todo curioso – e a curiosidade de Oliveira excede o ambiente mundano do hoje e caminha verticalmente através dos séculos e das épocas. Belle Toujours aproxima o ponto de vista do protagonista Henri Husson com o ponto de vista do filme, fazendo dele uma espécie de guia iniciático e dando à narrativa um pequeno gosto sádico da preparação de um ritual.

Há identificações muito claras de procedimentos. Se Manoel de Oliveira decide cavucar na história do cinema e reedita 38 anos depois os personagens de A Bela da Tarde, Henri Husson reencontra casualmente o rosto envelhecido da bela Sévérine e, mesmo notando um desconforto por parte dela, força um encontro entre os dois. Reside nele a vontade e a possibilidade do encontro, que é organizado criteriosamente como uma mise-en-scène: locações especiais, criação de climas, até objetos de cena (a famosa caixinha de A Bela da Tarde, encontrada por acaso num antiquário). Manoel de Oliveira faz seu cinema, Henri faz o dele, e as curiosidades se comunicam, se espelham, se identificam.

Mas o distúrbio é filmado de forma inteiramente diferente. Se o desejo incomum de Sévérine em A Bela da Tarde assumia caráter de escândalo, em Belle Toujours ele será perspectivado historicamente, através das conversas confessionais entre Henri/Michel Piccoli e o barman/Ricardo Trepa entre o balcão do bar, com o auxílio luxuoso das duas prostitutas interpretadas por Júlia Buisel e a sempre encantadora Leonor Baldaque. Essas conversas a princípio têm função de familiarizar o espectador com a história pregressa de Sévérine, em caso de não ter visto o filme de Buñuel. Mas fica claro rapidamente que o interesse de Oliveira é maior do que isso, e está em outra parte: situar histórica e culturalmente a obsessão da mulher casada nos anos 60, e observar o estatuto cultural das casas de rendez-vous entre aquela época e os dias de hoje. O esforço não é de provocação, como em Buñuel, mas de compreensão. Eis como Manoel de Oliveira toma o discurso de um outro – Joseph Kessel, Jean-Claude Carrière, Luis Buñuel – e redireciona o material para seu próprio terreno.

Belle Toujours tem o sabor de um doce divertimento, de uma narrativa com andamento ligeiro, curta em duração (68 minutos), de uma irreverência burlesca, quase gaiata. Surgem ressonâncias imediatas com a leveza de Vou para Casa, com a simplicidade e a doçura de sua narrativa, com o humor das cenas do café parisiense. Aparece também, com força, a identificação entre velhice e infância, onde o idoso assume a impertinência de uma criança e sai por aí a fazer travessuras. Belle Toujours é um filme que se constrói galhardo, límpido, elegante, que evolui com uma fluência incomum e apaixonante. Sóbrio e econômico, ele vai com precisão ao que interessa: casa de concerto, ruas, bar, hotel, bar de novo, hotel de novo, e assim por diante, até culminar com o jantar de reencontro, filmado um pouco como um jogo de xadrez, em que finalmente as mise-en-scènes de Oliveira e Henri se colam, e seus pequenos prazeres sádicos se expõem na chave de um revelação, a microchantagem com que Henri coage Sévérine ao encontro, para saber se afinal ele havia contado ao marido e amigo as aventuras sexuais de sua esposa.

Se falamos de um doce sadismo de Oliveira, é porque o filme todo é construído nesse ambiente um pouco proibido de um encontro forçado, e seu desenvolvimento narrativo funciona como os passos de um ritual sado-masô, de um programa a seguir que é extremamente prazeroso ao diletante Henri, bebedor de uísques duplos, flaneur, degustador de pratos finos e espectador de concertos. O elegante prazer perverso de Belle Toujours consiste em atrasar o encontro, em tecer zonas de sombra que provocam a curiosidade do espectador e não comunicam a ele o mistério (as conversas que não ouvimos, o conteúdo da caixinha), em fazer do processo e não da resolução a fonte do deleite. Daí a impressão de um filme sem fim e sem começo, de um segundo ato eterno, que diz respeito única e exclusivamente à curiosidade e à minúcia na preparação do ritual. Questão de execução de um programa, de apuro na confecção, de mise-en-scène pois. E a de Oliveira em Belle Toujours é de uma clareza mágica, adiando o gozo, brincando com nossas expectativas e entregando a beleza de seus enquadramentos, a delicadeza de suas composições, a sutil e sublime criancice que consiste em ocupar o tempo ocioso criando pequenos jogos pelo simples prazer de jogá-los. O que encanta em Belle Toujours é a suprema adequação da forma do filme ao projeto, sua transparente ligeireza e frivolidade, seus tons meio brincalhões de homenagem, sua velocidade que faz com que pareça que estamos vendo um curta-metragem, sua sedução que consiste na degustação do andamento e da beleza dos planos, no acompanhar de um jogo que é vão em seu objetivo mas essencial em seu processo. Eis como Manoel de Oliveira chega, esbelto, jovem e docemente perverso, a mais uma obra-prima de sua majestosa carreira.

Ruy Gardnier

 

 





Michel Piccoli satisfazendo-se como mestre de um ritual...


...e a etapa final do jogo (Belle Toujours de Manoel de Oliveira).