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                         Faça 
                          amor, faça guerra 
                           
                          Mais do que a prosperidade financeira e o ritmo incessante 
                          de produção, o que define o cinema coreano como indústria 
                          é o seguinte aspecto: ele atende a um desejo coletivo 
                          de imagem. O cinema industrial é aquele que consegue 
                          manter o ineditismo de uma história mesmo recorrendo 
                          a certas formas e códigos já vistos servindo a outras 
                          histórias. A singularidade do tema de um filme, portanto, 
                          negocia com as formas disponíveis; quaisquer que sejam 
                          os temas abordados, eles dispõem de um mesmo estoque 
                          de ficção. Assim é uma indústria: atender a demandas 
                          individuais através de uma produção em massa. No caso 
                          de O Antigo Jardim, Im 
                          Sang-soo visita a galeria 
                          do melodrama para, mais uma vez em sua carreira, tratar 
                          de uma história de forte teor político. Em A Última Transa do Presidente ele dilata 
                          o tempo, reconstruindo quase em live action o contexto da noite em que o ditador Park Chun-hee foi assassinado. O Antigo Jardim começa onde A Última Transa do Presidente termina: 
                          na nova e violenta fase da ditadura após a morte de 
                          Park Chun-hee. 
                          O filme apanha os confrontos entre o movimento estudantil 
                          e as forças repressivas do Estado, em 1980 (a 
                          versão coreana do maio de 68). Os conflitos são filmados 
                          de forma confusa, violenta e instável. É um choque e 
                          tanto em relação às cenas de Hyun-woo 
                          revisitando sua memória. Ele começa o filme saindo da prisão, 
                          após dezessete anos que compreendem o final de sua juventude 
                          e a primeira parte da vida adulta. Hyun-soo sequer pôde conhecer a filha que teve com Yoon-hee, a mulher que amou e com quem passou os doces momentos 
                          trazidos ao filme em flash-back. O velho jardim do título 
                          se refere à casa onde ela morava, à beira de um lago, lugar que transforma 
                          os encontros de Hyun-soo e 
                          Yoon-hee em idílios. As cenas românticas têm todo um 
                          requinte de abstração. Se a ditadura coreana é 
                          novamente o tema central de Im, sua forma de abordá-la 
                          recorre agora menos ao thriller do que ao melodrama. 
                           
                          O choque acontece quando os conflitos políticos chegam 
                          diretamente ao filme. Antes era um discurso de Reagan 
                          na televisão, uma conversa entre amigos, uma discussão 
                          de Hyun-soo e Yoon-hee. 
                          E Im Sang-soo filmava tudo 
                          com um apuro visual incrível, decupava a cena em todos os níveis dramáticos que ela pedia. 
                          Com as cenas de guerra urbana, vem uma impossibilidade 
                          de manter a estética concisa e límpida das cenas anteriores. 
                          A mise en scène não 
                          é mais suficiente, um tremor do mundo interrompe o pensamento 
                          e as imagens se tornam diretas, cruas. O ápice é quando 
                          o corpo de uma jovem despenca em chamas, filmado com 
                          um grau assustador de realidade (o absurdo da realidade, 
                          por assim dizer). Ela morre queimada, e o contorno de 
                          seu corpo fica marcado no chão. Um rapaz se deita sobre 
                          aquele contorno, numa imagem simbolicamente crucial 
                          para o filme: o presente se junta à marca deixada pelo 
                          passado para formar um corpo único. A narrativa não 
                          dissocia passado e presente, mas antes cria um espaço 
                          de presença simultânea. É como o quadro que Yoon-hee 
                          pinta antes de morrer de câncer: ela, Hyun-soo 
                          e a filha, encontro que nunca ocorreu de fato, mas que 
                          pode se realizar nessa esfera inabalável da vontade 
                          e do sonho, exatamente como ocorre na cena final, uma 
                          pérola do sentimentalismo e da abstração, com o fantasma 
                          de Yoon-hee rondando o encontro 
                          de Hyun-soo com a filha. No 
                          plano mais interessante do filme, Hyun-soo 
                          fala com a filha ao telefone, marca o encontro, e de 
                          repente começa a flutuar pelo espaço. O telefonema é 
                          filmado em um único plano fechado sobre ele, mas vemos 
                          pelas variações do fundo que ele está levantando vôo 
                          enquanto ouve a voz da filha. Na vida de Hyun-soo existiu o amor por Yoon-hee 
                          e existiu a necessidade de ir à luta contra a ditadura. 
                          Uma coisa nunca esteve destacada 
                          da outra. Im Sang-soo 
                          filma um romance ao mesmo tempo provocado e fraturado 
                          pela História, paradoxo cruel e belo que funda mais 
                          um bom filme do diretor. 
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                          
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