O ANTIGO JARDIM
Im Sang-soo, Orae-doen jeongwon, Coréia do Sul, 2006

Faça amor, faça guerra

Mais do que a prosperidade financeira e o ritmo incessante de produção, o que define o cinema coreano como indústria é o seguinte aspecto: ele atende a um desejo coletivo de imagem. O cinema industrial é aquele que consegue manter o ineditismo de uma história mesmo recorrendo a certas formas e códigos já vistos servindo a outras histórias. A singularidade do tema de um filme, portanto, negocia com as formas disponíveis; quaisquer que sejam os temas abordados, eles dispõem de um mesmo estoque de ficção. Assim é uma indústria: atender a demandas individuais através de uma produção em massa. No caso de O Antigo Jardim, Im Sang-soo visita a galeria do melodrama para, mais uma vez em sua carreira, tratar de uma história de forte teor político. Em A Última Transa do Presidente ele dilata o tempo, reconstruindo quase em live action o contexto da noite em que o ditador Park Chun-hee foi assassinado. O Antigo Jardim começa onde A Última Transa do Presidente termina: na nova e violenta fase da ditadura após a morte de Park Chun-hee. O filme apanha os confrontos entre o movimento estudantil e as forças repressivas do Estado, em 1980 (a versão coreana do maio de 68). Os conflitos são filmados de forma confusa, violenta e instável. É um choque e tanto em relação às cenas de Hyun-woo revisitando sua memória. Ele começa o filme saindo da prisão, após dezessete anos que compreendem o final de sua juventude e a primeira parte da vida adulta. Hyun-soo sequer pôde conhecer a filha que teve com Yoon-hee, a mulher que amou e com quem passou os doces momentos trazidos ao filme em flash-back. O velho jardim do título se refere à casa onde ela morava, à beira de um lago, lugar que transforma os encontros de Hyun-soo e Yoon-hee em idílios. As cenas românticas têm todo um requinte de abstração. Se a ditadura coreana é novamente o tema central de Im, sua forma de abordá-la recorre agora menos ao thriller do que ao melodrama.

O choque acontece quando os conflitos políticos chegam diretamente ao filme. Antes era um discurso de Reagan na televisão, uma conversa entre amigos, uma discussão de Hyun-soo e Yoon-hee. E Im Sang-soo filmava tudo com um apuro visual incrível, decupava a cena em todos os níveis dramáticos que ela pedia. Com as cenas de guerra urbana, vem uma impossibilidade de manter a estética concisa e límpida das cenas anteriores. A mise en scène não é mais suficiente, um tremor do mundo interrompe o pensamento e as imagens se tornam diretas, cruas. O ápice é quando o corpo de uma jovem despenca em chamas, filmado com um grau assustador de realidade (o absurdo da realidade, por assim dizer). Ela morre queimada, e o contorno de seu corpo fica marcado no chão. Um rapaz se deita sobre aquele contorno, numa imagem simbolicamente crucial para o filme: o presente se junta à marca deixada pelo passado para formar um corpo único. A narrativa não dissocia passado e presente, mas antes cria um espaço de presença simultânea. É como o quadro que Yoon-hee pinta antes de morrer de câncer: ela, Hyun-soo e a filha, encontro que nunca ocorreu de fato, mas que pode se realizar nessa esfera inabalável da vontade e do sonho, exatamente como ocorre na cena final, uma pérola do sentimentalismo e da abstração, com o fantasma de Yoon-hee rondando o encontro de Hyun-soo com a filha. No plano mais interessante do filme, Hyun-soo fala com a filha ao telefone, marca o encontro, e de repente começa a flutuar pelo espaço. O telefonema é filmado em um único plano fechado sobre ele, mas vemos pelas variações do fundo que ele está levantando vôo enquanto ouve a voz da filha. Na vida de Hyun-soo existiu o amor por Yoon-hee e existiu a necessidade de ir à luta contra a ditadura. Uma coisa nunca esteve destacada da outra. Im Sang-soo filma um romance ao mesmo tempo provocado e fraturado pela História, paradoxo cruel e belo que funda mais um bom filme do diretor.

Luiz Carlos Oliveira Jr.