A análise combinatória operada
pelos produtores americanos,
de tão esgotada, parece nos levar a isto aqui: uma comédia romântica em que o
casal central é formado por Morgan Freeman e Paz Vega. Tão improvável, e depois
de passados os 80 minutos de Um Astro em
Minha Vida, tão indiscutivelmente bonito e justo. Brad Silberling começa
seu filme parecendo querer experimentar um gênero muito específico do cinema,
quase tão marcante como o do filme infantil, que visitara em Gasparzinho e Desventuras
em Série, ou o melodrama de Cidade dos Anjos. A câmera, de dentro
de um carro em movimento,
está apontada para a estrada à frente. O barulho do motor é sustado a cada cartela
negra que aparece com os créditos da produção, num jogo bastante tenso entre
o ruído da rua e o silêncio total. Até que entramos de vez no filme, e no carro
vemos dois sujeitos, um motorista adolescente, branco, gordo e de boca suja,
e seu carona, um velho ator negro, indeciso entre a gravidade e o relaxamento
(pelo qual eventualmente optará, abrindo também a porteira dos
palavrões). O diálogo é esperto, mas nunca declamatório. Pelo contrário, há uma
evidente tentativa de "vida real" ali. É isso: Silberling decidiu fazer seu "filme
independente".
Curioso perceber como esse rótulo já deixou de ser uma
indicação meramente econômica (ainda que Um
Astro em Minha Vida faça parte dela, uma vez que foi feito fora dos grandes
estúdios de Hollywood). Há aí um repertório visual bastante claro, e Silberling
o reproduz com dedicação. No supermercado latino, onde Paz Vega trabalha e onde
Morgan Freeman vai fazer uma pesquisa de campo para o próximo personagem que
interpretará, a câmera busca aqueles quadros estáticos de uma vida colorida artificialmente,
os poucos clientes e funcionários em planos isolados, perdidos no meio dos produtos
e das prateleiras. É aquela impressão de existência vazia
e modorrenta, tão cara ao cinema-Sundance, onde os personagens erram sem muito
que fazer a não ser continuar errando, para que eventualmente se deixem transformar
por algum agente exterior. E, uma vez que o "astro" entre definitivamente em
sua vida, estes mesmos planos da banalidade cotidiana passarão a ser preenchidos
por alguma movimentação, talvez até uma câmera na mão, que nos mostre que a estabilidade
daquele ambiente foi mesmo quebrada. Algo sobre a natureza da alma humana em
tempos de crise pós-moderna acabará nos sendo dito
e, lição devidamente aprendida, poderemos todos seguir em frente com nossas vidas
patéticas.
É exatamente aí que Brad Silberling traça um limite: a alma
humana não é, em nenhum momento, parte dos alvos de Um Astro em Minha Vida.
Pelo menos não em sua configuração
plastificada, pessimista-pop, inventário das lições de um livro de auto-ajuda.
O interesse aqui é mesmo pelos exteriores, pela dimensão visível da experiência
do mundo, e assim este estilo "independente" de filmar é bastante eficiente,
mas seu princípio moral não interessa. Morgan Freeman interpreta um ator sem
nome (mas, pelas diversas referências espalhadas pelo filme – co-estrelou seu último blockbuster com
Ashley Judd,
aprendeu uma dica de como usar camisetas que valorizem o bíceps com Clint
Eastwood – não é impossível imaginar que Freeman esteja fazendo seu próprio papel).
Sem trabalho há quatro anos, ele está tentando voltar à cena fazendo um pequeno
papel num filme, adivinhem?, independente. Mas sua paixão pelo ofício de ator
não cessou durante a aposentadoria forçada, pelo contrário. Freeman dialoga com
o mundo a partir de uma consciência da encenação da vida real. Ao ajudar Scarlet,
uma caixa de supermercado que quer largar o emprego e tentar
ser secretária de uma grande empresa, as dicas de Freeman são todas feitas como
se a moça estivesse se aprontando para entrar num palco: postura, maquiagem,
exercícios de voz, ensaios. Neste universo de atores de si mesmo, em que todas
as emoções são trazidas à superfície pois só assim se tornam visíveis a quem
as
assiste, qualquer investigação da alma estaria fadada ao fracasso.
Assim, Silberling frustrará todos os picos de suposta
profundidade na trajetória destes dos personagens. Ainda temos o encontro de
opostos, ainda temos a relação que imediatamente se estabelece, como se o destino
já tivesse se encarregado de juntá-los e não fosse necessário disfarçar uma falsa
repulsa inicial. Ainda serão um homem e uma mulher cruzando meia
Califórnia dentro de um carro, parando no caminho para se contaminar dos coadjuvantes
deste trajeto, e eventualmente contaminando um ao outro com suas mais bonitas
qualidades e seus melhores defeitos. O próprio título original do filme, se indica
o tipo de trabalho de Scarlet (ela é trabalha naquele
caixa-rápido do supermercado que só aceita compras de 10 produtos ou menos),
indica, acima de tudo, a brincadeirinha que os dois fazem entre si, destacando
as 10 coisas que mais odeiam e as 10 coisas que querem ter para sempre no mundo.
Prato cheio para um desfile de insights engrandecedores, ele e ela não
listarão mais que o óbvio: odeiam precisar de
dinheiro, amam a família, odeiam envelhecer, amam o carro comprado com muito
suor. Nada demais.
E aí, talvez, esteja o maior valor de Um Astro em Minha Vida: sua consciência
da banalidade automática que se adiciona a qualquer filme que tente falar de
uma vida que não lhe diz respeito, sobre a qual tem uma lista de mandamentos
e certezas, mas que,
arredia como só ela, nunca é realmente reproduzível nas imagens. Um Astro
em Minha Vida é sobre... nada
demais, na verdade. Porque não interessa o "sobre". Interessa o "quem" e o "como".
Daí o estapafúrdio da junção de Morgan Freeman e Paz Vega se desfazer logo no
primeiro encontro dos dois na tela: temos ali duas pessoas que nunca vimos juntos,
dois grandes atores que nunca dividiram o mesmo espaço, que não conhecem os truques
de atuação um do outro, e que nunca tiveram Silberling por
trás da câmera que os registra. A vontade do filme é a de ser filme,
simplesmente. De propor um caminho narrativo, de reunir
os elementos que preencherão este caminho, e então observar seu desdobramento.
Os extras do DVD colocam sob o título de "entrevistas" duas pequenas cenas em
que Morgan Freeman colhe o depoimento de dois figurantes do filme. Assim, sem
olhar para a câmera, a conversa se estabelece com uma franqueza
irresistível, e saberemos que a mulher que interpreta a vendedora de esfregões é,
na verdade, uma atriz que abandonou a vida no interior para tentar a sorte na
Califórnia, e que o jovem atendente do filme é um imigrante vietnamita cheio
de teorias sobre a felicidade. Não é difícil imaginar estes dois momentos de
bastidores como parte de alguma das seqüências do filme em si. Um Astro em
Minha Vida é cheio destas
pequenas jóias do improviso (se realmente improvisado ou escrito para parecer
improvisado, pouco importa). Cheio desse “deixar acontecer” que vai revelando
emoções que nem sequer supúnhamos existir ali. O chamado para embarcar na
viagem é tão intenso quanto desprovido de promessas: vidas não se modificarão,
lágrimas não serão vertidas, amores não serão eternizados. É o preço que se paga
pelo apego aos exteriores. Como nas canções que os protagonistas tentam ensinar
um para o outro, ela em espanhol, ele em inglês, há a repetição
fonética, a aproximação quase perfeita ao som da língua estrangeira. Mas aprender
uma outra língua, apreender um novo modo de vida no espaço tão curto de um filme,
isso já não parece possível.
Freeman repete ao longo de todo o filme que adora os "strong endings".
Não os finais "felizes",
mas os finais fortes. Um Astro em Minha
Vida tem um desses. À maneira independente, é claro: seco, inesperado, inconcluso.
Nada demais, é verdade. Não fosse a sensação de que presenciamos algo realmente
precioso acontecer ali.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Swen Filmes)
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