O SEGREDO DE BERLIM
Steven Soderbergh, The Good German, EUA, 2006

Desde que entrou definitivamente para o cenário central da indústria americana, Steven Soderbergh vinha alternando, com alguma regularidade, os papéis de garoto-problema e funcionário-modelo. E uma olhada superficial sobre este O Segredo de Berlim talvez nos fizesse crer que estamos aqui diante do degrau de seriedade e comprometimento artístico que sempre marcou o momento anterior à explosão cafajeste de algum dos três Homens e Segredos. O engano vai se desfazendo já na seqüência de créditos, onde os nomes da equipe nos são apresentados em fontes à moda Warner Brothers anos 50, com trechos de documentários sobre os destroços da Alemanha do imediato pós-guerra sendo mostrados ao fundo. Muito rapidamente, aparecerá o exagero ciaroscuro da iluminação, os cortes de uma cena a outra realizados com aqueles efeitos de cortina muito comuns no cinema clássico e, no cúmulo das mimetizações, um passeio de carro pela Berlim destruída utilizando o truque da back projection através das janelas.

Mas a profusão de "homenagens" ao velho estilo noir, ao filme de espionagem de guerra, nunca se mostra exatamente como tal. Soderbergh parece utilizar estes elementos todos com o mesmo caráter de brincadeira cinemática de que preenche seus blockbusters de assalto. E, ao mesmo tempo em que se diverte com tudo isso, O Segredo de Berlim faz do jogo direto com a linguagem clássica (não por sua narração, mas puramente pela técnica) um espaço de experimentação que nenhum de seus filmes ditos "experimentais" nunca chegou realmente a promover – sobretudo na maneira como o próprio Soderbergh (mais uma vez sob o pseudônimo de Peter Andrews) decide fotografar certas cenas, dando poucos ou nenhum close glamouroso a seus atores mas, pelo contrário, várias vezes mergulhando seus rostos na pura escuridão.

Desse caldo entre a declarada diversão e uma ousadia estética inédita, não deixa de ser um pouco surpreendente que Soderbergh consiga realizar aqui seu pior filme desde Kafka. As semelhanças entre os dois projetos, aliás, são bem maiores que a simples repetição do preto-e-branco. Soderbergh via no trabalho imaginário sobre a vida de Franz Kafka o mesmo potencial anárquico que vê aqui nesta declaração do fim da castidade moral atribuída aos países vencedores da guerra. Lá, o exercício era supor um escritor preso, em sua vida real, pelas mesmas tramas que criara na ficção, enquanto O Segredo de Berlim quer usar a ficção para restituir a ligação original entre o fato e aquilo que efetivamente entrou para a história. Nas duas frentes, um desejo que já nasce morto: que descobertas maiores sobre a vida íntima de Kafka poderiam nos fazer mais interessados nela que naquilo que, por conta própria, já conhecíamos de sua literatura? E, do outro lado, que novidades poderíamos perceber neste chamado à verdade da guerra, que coloca americanos e russos na mesma laia corrupta e perniciosa dos oficiais nazistas que acabavam de derrotar? Não é tanto na disposição em nos mostrar o novo que Soderbergh falha, mas sim na própria crença de que seu "novo" o era de fato. E que isso basta para sustentar um filme.

Assim, não há de fato nenhum "segredo de Berlim" a ser revelado, e a descoberta do "bom alemão" não passa de uma leve distração narrativa, que no fundo importa muito pouco para o filme. Na verdade, difícil é saber o que importa. Certamente não é o oficial malandro de Tobey Maguire, ou a prostituta alemã tão fassbinderiana de Cate Blanchett, muito menos o jornalista sempre disfarçado de oficial de George Clooney. Não à toa, nossos três condutores estarão sempre apanhando, sendo baleados ou eventualmente assassinados. Mas nem podemos falar de um desprezo de Soderbergh por eles, pelo contrário. Há uma acentuada aura de profundidade impregnada nestes dramas individuais, mas ela nunca se materializa para além da simples afetação. Estes personagens estão suspensos num mundo inexistente. A mímica é divertida, mas não só não consegue chegar à raiz das questões que cercavam o cinema noir de cinqüenta anos atrás, como também rompe qualquer laço com a contemporaneidade para além desse desespero infantil por uma reinserção no passado do qual não fizemos parte, mas que sentimos nos pertencer (há uma evidente ligação entre os destemperos dos oficiais americanos dos anos 40 e o jogo sujo do alto comando da era Bush mas, novamente, precisava ser tão evidente?).

Do mesmo modo, os protagonistas são portadores desta teoria que tenta vender uma velha novidade com jeito de grande golpe contra o bom-mocismo (onde nem os judeus escapam, uma vez que O Segredo de Berlim defende que podem até ter existido vítimas e assassinos na Segunda Guerra, mas que ninguém ali era inocente). Se apanham e sofrem ao longo de todo o filme, é porque Soderbergh busca mártires onde não existiam nem mesmo causas a serem defendidas. Sem idéias, sem personagens, e sem uma única operação de estilo que não soe sempre como um rascunho e nunca como o produto final de alguma coisa, O Segredo de Berlim é o máximo da irrealização. Olhamos suas imagens, acompanhamos sua história, pegamos a caixinha do DVD, vemos as diversas ocorrências do título do filme no Google, mas é difícil provar que existia realmente um filme ali. Bem provável que este seja, no fundo, seu grande segredo.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Warner)

 

 





Steven Soderbergh dirige George Clooney e Cate Blanchett na seqüência final de O Segredo de Berlim