Desde que entrou definitivamente
para o cenário central da
indústria americana, Steven Soderbergh vinha alternando, com alguma regularidade,
os papéis de garoto-problema e funcionário-modelo. E uma olhada superficial sobre
este O Segredo de
Berlim talvez nos fizesse crer que estamos aqui diante do degrau de seriedade
e comprometimento artístico que sempre marcou o momento anterior à explosão cafajeste
de algum dos três Homens
e Segredos. O engano vai se desfazendo já na seqüência de créditos, onde
os
nomes da equipe nos são apresentados em fontes à moda Warner Brothers anos 50,
com trechos de documentários sobre os destroços da Alemanha do imediato
pós-guerra sendo mostrados ao fundo. Muito rapidamente, aparecerá o exagero ciaroscuro da
iluminação, os cortes de uma cena a outra realizados com aqueles efeitos de cortina
muito comuns no
cinema clássico e, no cúmulo das mimetizações, um passeio de carro pela Berlim
destruída utilizando o truque da back
projection através das janelas.
Mas a profusão de "homenagens" ao velho estilo noir, ao filme de espionagem de
guerra, nunca se mostra exatamente como tal. Soderbergh parece utilizar estes
elementos todos com o mesmo caráter de brincadeira
cinemática de que preenche seus blockbusters de assalto. E, ao mesmo
tempo em que se diverte com tudo isso, O Segredo de Berlim faz do jogo
direto
com a linguagem clássica (não por sua narração, mas puramente pela técnica) um
espaço de experimentação que nenhum de seus filmes ditos "experimentais" nunca
chegou realmente a promover – sobretudo na maneira como o próprio Soderbergh
(mais uma vez sob o pseudônimo de Peter Andrews) decide fotografar certas cenas,
dando poucos ou nenhum close glamouroso a seus atores mas, pelo contrário,
várias vezes mergulhando seus rostos na pura escuridão.
Desse caldo entre a declarada diversão e uma ousadia
estética inédita, não deixa de ser um pouco surpreendente que Soderbergh consiga
realizar aqui seu pior filme desde Kafka.
As semelhanças entre os dois projetos, aliás, são bem maiores que a simples
repetição do preto-e-branco. Soderbergh via no trabalho imaginário sobre a vida
de Franz Kafka o mesmo potencial anárquico que vê aqui nesta declaração do fim
da castidade moral atribuída aos países vencedores da guerra. Lá, o exercício
era supor um escritor preso, em sua vida real, pelas mesmas tramas que criara
na ficção, enquanto O Segredo de Berlim quer usar a ficção para restituir
a ligação original entre o fato e aquilo que
efetivamente entrou para a história. Nas duas frentes, um desejo que já nasce
morto: que descobertas maiores sobre a vida íntima de Kafka poderiam nos fazer
mais interessados nela que naquilo que, por conta própria, já conhecíamos de
sua literatura? E, do outro lado, que novidades poderíamos perceber neste
chamado à verdade da guerra, que coloca americanos e russos na mesma laia corrupta
e perniciosa dos oficiais nazistas que acabavam de derrotar? Não é tanto na disposição
em nos mostrar o novo que Soderbergh falha, mas sim na
própria crença de que seu "novo" o era de fato. E que isso basta para
sustentar
um filme.
Assim, não há de fato nenhum "segredo de Berlim" a ser revelado, e a descoberta
do "bom alemão" não passa de uma leve distração narrativa, que no fundo importa
muito pouco para o filme. Na verdade, difícil é saber o que importa. Certamente
não é o oficial malandro de Tobey Maguire, ou a
prostituta alemã tão fassbinderiana de Cate Blanchett, muito menos o jornalista
sempre disfarçado de oficial de George Clooney. Não à toa, nossos três condutores
estarão sempre apanhando, sendo baleados ou eventualmente assassinados. Mas nem
podemos falar de um desprezo de Soderbergh por eles, pelo contrário. Há uma acentuada
aura de profundidade impregnada nestes dramas individuais, mas ela nunca se materializa
para além da simples afetação. Estes personagens estão suspensos num mundo inexistente.
A mímica é divertida, mas não só não consegue
chegar à raiz das questões que cercavam o cinema noir de cinqüenta anos atrás,
como
também rompe qualquer laço com a contemporaneidade para além desse desespero
infantil por uma reinserção no passado do qual não fizemos parte, mas que sentimos
nos pertencer (há uma evidente ligação entre os destemperos dos oficiais americanos
dos anos 40 e o jogo sujo do alto comando da era Bush mas, novamente, precisava
ser tão evidente?).
Do mesmo modo, os protagonistas são portadores desta teoria que tenta vender
uma velha novidade com jeito de grande golpe contra o bom-mocismo (onde nem os
judeus escapam, uma vez que O
Segredo de Berlim defende que podem até ter existido vítimas e assassinos
na Segunda Guerra, mas que ninguém ali era inocente). Se apanham e sofrem ao
longo de todo o filme, é porque Soderbergh busca mártires onde não existiam nem
mesmo causas a serem defendidas. Sem idéias, sem personagens, e sem uma única
operação de estilo que não soe sempre como um rascunho e nunca como o produto
final de alguma coisa, O Segredo de
Berlim é o máximo da irrealização. Olhamos suas imagens, acompanhamos sua
história, pegamos a caixinha do DVD, vemos as diversas ocorrências do título
do
filme no Google, mas é difícil provar que existia realmente um filme ali. Bem
provável que este seja, no fundo, seu grande segredo.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Warner)
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