Logo no começo de Minha
Adorável Lavanderia, uma das personagens diz
para Omar, o jovem protagonista de origem paquistanesa: "Estou
cansada desses in-betweens". A
expressão inglesa fala de alguém que está sempre no intervalo entre uma coisa
e outra, mas nunca se decide de que lado ficar. No momento em que a frase surge,
fala-se da tensão entre o país de origem e o país adotivo, de uma geração de
filhos
de imigrantes da qual Omar é um exemplo perfeito: perdido entre uma cultura da
qual não guarda qualquer traço interior, mas cuja presença se percebe pela cor
da pele e feições do rosto, e ao mesmo tempo nascido e criado na Inglaterra,
onde vive o paradoxo de ser um nativo taxado de estrangeiro. Mas o in-between também
se aplica à experiência íntima de Omar, dividido entre as obrigações heterossexuais
impregnadas na tradição familiar e sua homossexualidade, com a qual lida muito
bem, mas que ainda não pode revelar ao mundo. Mais ainda, é também parte deste
caráter fronteiriço o próprio momento da vida em que o rapaz se encontra, percebido
pelo filme justamente na curva da vida em que deixa de ser um menino e passa
a ser um homem. Seguir dividindo um apartamento pequeno com o pai idealista ou
seguir
pragmaticamente o rumo dos negócios do tio? Seguir sozinho,
sofrendo de uma síndrome que mistura fracasso e vazio existencial, ou embarcar
num relacionamento a dois, mesmo que ele também corra o risco do fracasso?
Stephen Frears monta seu
filme exatamente no coração destas dúvidas. Se é nos
momentos de intersecção entre um ponto e outro da vida que o drama de Omar se
realiza, serão exatamente os pontos de intersecção narrativa os primeiros a serem
eliminados daqui. Minha Adorável
Lavanderia só funciona se suas milhares de
transformações ocorrerem simultaneamente, a cada segundo. O salto entre uma
seqüência e outra nunca é exatamente conseqüente, não no sentido que nos acostumamos
a ver no cinema contador-de-histórias, em que a sucessão temporal é permeada
por um senso mínimo de continuidade dramática. São diversas elipses de sentido,
que vão instalando questões e abandonando-as logo em seguida sem que tenham sido
necessariamente resolvidas. Há uma urgência aqui, própria da
experiência de vida de Omar e dos que o cercam (do seu namorado Johnny ao tio
empresário ou a prima assanhada, todos estão na passagem de um estágio a outro,
todos são in-betweens). Essa urgência
não combina com organização lógica, e se a direção que todos os personagens
tomam é sempre a de seguir em frente, é para lá que o filme rumará com eles.
Tudo será preenchido por um
irresistível desejo de sucesso, e é por isso que Frears transforma a lavanderia
do título num pequeno aquário auto-suficiente, onde todos podem se alimentar
da utopia sem medo de se decepcionarem. De dentro de um filme que, aparentemente,
repetiria o rosário estético do cinema social inglês dos anos 80, cheio de sua
secura e contenção, cheio de suas grandes questões de classe e arroubos
discursivos, é tão deliciosamente estranho ver nascer um
história com um pé fortemente fincado na fantasia. Reformada por Omar e Johnny
para ser a versão-lavanderia de um Hotel Ritz, bem no meio do paupérrimo sul
de Londres, o lugar se torna o santuário das causas impossíveis que acabam
sempre se materializando. Ali ouve-se ópera enquanto as roupas passam
pela
centrígufa, e dublar o tenor da canção não só não é nada incomum, como é quase
um ritual estabelecido. Ali o único maniqueísmo possível é o que
opõe aqueles que passam pela vida espalhando animosidades e os que são afetivos
a toda prova. É isso que distancia o primo pilantra de Omar da lavanderia, e
ao
mesmo tempo o que torna os punks amigos de Johnny os primeiros a se converterem à causa
da reconstrução do lugar. A disposição simples em baixar a guarda, suspender
o fogo, e tentar ouvir o outro, ao invés de disputar
no grito quem é o maior vilão.
Este amor que se espalha por
onde for possível e esta torcida indisfarçável pelo final feliz são manifestados,
sobretudo, na trajetória romântica de Omar e Johnny. Não parece ser à toa que
o
primeiro beijo dos dois aconteça numa esquina deserta e mal-iluminada, onde a única
fonte de luz é uma lâmpada de rua que deixa as peles dos dois com um tom alaranjado,
no momento em que o chapeuzinho e o cabelo tingido de Daniel Day-Lewis mais o
aproximam do tipo marinheiro de Brad Davis. A pouco mais de três anos da
estréia de Querelle nos cinemas, o que Stephen Frears parece querer aqui,
mesmo com toda a timidez e respeito evidentes diante da obra-prima de R.W. Fassbinder, é dizer
que o amor homossexual, mais que qualquer outro, é sempre vivido no
domínio das sombras, entre o desejo pela experiência íntima e a recorrente
supressão desse desejo por uma outra ordem, social, mas principalmente da
própria natureza constitutiva do ser masculino. A lavanderia, nomeada literalmente
como o "pequeno paraíso", é um lugar onde estas frustrações não
têm vez. Se o primeiro beijo é dado às escuras, o brilho do néon nos letreiros
da fachada é que dará o tom desta relação, que mesmo nunca sendo publicamente
assumida, nunca deixa de ser visível nos olhos dos dois – Omar e Johnny amam-se
como poucos casais do cinema puderam se amar.
E, ainda assim, algo haveria
de sobreviver daquele aviso que Querelle anunciara anteriormente. A utopia
da felicidade traz, dentro de si,
indissociável de seu corpo, a semente do colapso. Uma série de eventos se
desencadeará e a áurea idílica da lavanderia será corrompida por um chamamento à vida-do-lado-de-fora.
Mas, ainda assim, Minha
Adorável Lavanderia não podia ignorar que, de todas as mudanças de vida que
observou, apenas uma garantiu que não vivia no terreno
da dúvida, mas já se transformara em certeza. E para ela, para esse amor tão
vibrante que quase se ouve sua vibração, a esperança de felicidade sai da esfera
da utopia e passa a ser a única atitude crível. Frears cumpre todo um trajeto
de fantasia só para nos fazer testemunhar, lá naquele belo plano final em que
Omar e Johnny banham-se um ao outro, que ainda é possível filmar um amor ideal
em toda sua realidade.
Rodrigo de Oliveira
(DVD: Platina Filmes)
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