MINHA ADORÁVEL LAVANDERIA
Stephen Frears, My Beautiful Laundrette, Reino Unido, 1985

Logo no começo de Minha Adorável Lavanderia, uma das personagens diz para Omar, o jovem protagonista de origem paquistanesa: "Estou cansada desses in-betweens". A expressão inglesa fala de alguém que está sempre no intervalo entre uma coisa e outra, mas nunca se decide de que lado ficar. No momento em que a frase surge, fala-se da tensão entre o país de origem e o país adotivo, de uma geração de filhos de imigrantes da qual Omar é um exemplo perfeito: perdido entre uma cultura da qual não guarda qualquer traço interior, mas cuja presença se percebe pela cor da pele e feições do rosto, e ao mesmo tempo nascido e criado na Inglaterra, onde vive o paradoxo de ser um nativo taxado de estrangeiro. Mas o in-between também se aplica à experiência íntima de Omar, dividido entre as obrigações heterossexuais impregnadas na tradição familiar e sua homossexualidade, com a qual lida muito bem, mas que ainda não pode revelar ao mundo. Mais ainda, é também parte deste caráter fronteiriço o próprio momento da vida em que o rapaz se encontra, percebido pelo filme justamente na curva da vida em que deixa de ser um menino e passa a ser um homem. Seguir dividindo um apartamento pequeno com o pai idealista ou seguir pragmaticamente o rumo dos negócios do tio? Seguir sozinho, sofrendo de uma síndrome que mistura fracasso e vazio existencial, ou embarcar num relacionamento a dois, mesmo que ele também corra o risco do fracasso?

Stephen Frears monta seu filme exatamente no coração destas dúvidas. Se é nos momentos de intersecção entre um ponto e outro da vida que o drama de Omar se realiza, serão exatamente os pontos de intersecção narrativa os primeiros a serem eliminados daqui. Minha Adorável Lavanderia só funciona se suas milhares de transformações ocorrerem simultaneamente, a cada segundo. O salto entre uma seqüência e outra nunca é exatamente conseqüente, não no sentido que nos acostumamos a ver no cinema contador-de-histórias, em que a sucessão temporal é permeada por um senso mínimo de continuidade dramática. São diversas elipses de sentido, que vão instalando questões e abandonando-as logo em seguida sem que tenham sido necessariamente resolvidas. Há uma urgência aqui, própria da experiência de vida de Omar e dos que o cercam (do seu namorado Johnny ao tio empresário ou a prima assanhada, todos estão na passagem de um estágio a outro, todos são in-betweens). Essa urgência não combina com organização lógica, e se a direção que todos os personagens tomam é sempre a de seguir em frente, é para lá que o filme rumará com eles.

Tudo será preenchido por um irresistível desejo de sucesso, e é por isso que Frears transforma a lavanderia do título num pequeno aquário auto-suficiente, onde todos podem se alimentar da utopia sem medo de se decepcionarem. De dentro de um filme que, aparentemente, repetiria o rosário estético do cinema social inglês dos anos 80, cheio de sua secura e contenção, cheio de suas grandes questões de classe e arroubos discursivos, é tão deliciosamente estranho ver nascer um história com um pé fortemente fincado na fantasia. Reformada por Omar e Johnny para ser a versão-lavanderia de um Hotel Ritz, bem no meio do paupérrimo sul de Londres, o lugar se torna o santuário das causas impossíveis que acabam sempre se materializando. Ali ouve-se ópera enquanto as roupas passam pela centrígufa, e dublar o tenor da canção não só não é nada incomum, como é quase um ritual estabelecido. Ali o único maniqueísmo possível é o que opõe aqueles que passam pela vida espalhando animosidades e os que são afetivos a toda prova. É isso que distancia o primo pilantra de Omar da lavanderia, e ao mesmo tempo o que torna os punks amigos de Johnny os primeiros a se converterem à causa da reconstrução do lugar. A disposição simples em baixar a guarda, suspender o fogo, e tentar ouvir o outro, ao invés de disputar no grito quem é o maior vilão.

Este amor que se espalha por onde for possível e esta torcida indisfarçável pelo final feliz são manifestados, sobretudo, na trajetória romântica de Omar e Johnny. Não parece ser à toa que o primeiro beijo dos dois aconteça numa esquina deserta e mal-iluminada, onde a única fonte de luz é uma lâmpada de rua que deixa as peles dos dois com um tom alaranjado, no momento em que o chapeuzinho e o cabelo tingido de Daniel Day-Lewis mais o aproximam do tipo marinheiro de Brad Davis. A pouco mais de três anos da estréia de Querelle nos cinemas, o que Stephen Frears parece querer aqui, mesmo com toda a timidez e respeito evidentes diante da obra-prima de R.W. Fassbinder, é dizer que o amor homossexual, mais que qualquer outro, é sempre vivido no domínio das sombras, entre o desejo pela experiência íntima e a recorrente supressão desse desejo por uma outra ordem, social, mas principalmente da própria natureza constitutiva do ser masculino. A lavanderia, nomeada literalmente como o "pequeno paraíso", é um lugar onde estas frustrações não têm vez. Se o primeiro beijo é dado às escuras, o brilho do néon nos letreiros da fachada é que dará o tom desta relação, que mesmo nunca sendo publicamente assumida, nunca deixa de ser visível nos olhos dos dois – Omar e Johnny amam-se como poucos casais do cinema puderam se amar.

E, ainda assim, algo haveria de sobreviver daquele aviso que Querelle anunciara anteriormente. A utopia da felicidade traz, dentro de si, indissociável de seu corpo, a semente do colapso. Uma série de eventos se desencadeará e a áurea idílica da lavanderia será corrompida por um chamamento à vida-do-lado-de-fora. Mas, ainda assim, Minha Adorável Lavanderia não podia ignorar que, de todas as mudanças de vida que observou, apenas uma garantiu que não vivia no terreno da dúvida, mas já se transformara em certeza. E para ela, para esse amor tão vibrante que quase se ouve sua vibração, a esperança de felicidade sai da esfera da utopia e passa a ser a única atitude crível. Frears cumpre todo um trajeto de fantasia só para nos fazer testemunhar, lá naquele belo plano final em que Omar e Johnny banham-se um ao outro, que ainda é possível filmar um amor ideal em toda sua realidade.

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Platina Filmes)