Feito em 1974, A
Primeira Página era
já, naquela época, um filme anacrônico. Na contramão de todas as mudanças no
cinema americano que aconteceram entre os anos sessenta e os setenta (entre elas,
a fuga de estúdios, a influência do cinema moderno europeu e a presença
de diálogos e situações mais “realistas”), Wilder faz de sua obra uma peça de época,
em todos os sentidos. As comédias americanas, nesse tempo, já sentiam o efeito
do humor corrosivo, sexualizado e despudorado do grupo inglês Monty Python (e
vale lembrar que nessa época também começaram a se destacar Woody Allen e Mel
Brooks, entre outros), e as comédias paródicas, referenciais ou mesmo existenciais
passaram a dominar parte considerável do mercado.
Nesse sentido, A Primeira Página é uma
forma de se comunicar com essas mudanças e, ao mesmo tempo, combatê-las. Pois
Wilder faz do filme, antes de qualquer outra coisa, uma homenagem a si mesmo,
e
a toda comédia do período em que viveu o auge de sua carreira artística. Versão
cinematográfica de uma peça clássica do teatro americano, e também refilmagem
de um clássico do cinema (Jejum de Amor,
de Howard Hawks), não é no material de base que reside a maestria do diretor,
certamente, mas no modo como ele coloca tudo a favor de um estilo antigo. E,
de
certa forma, na afirmação de que esse estilo é válido em qualquer época.
Por isso, nada mais natural que os dois protagonistas de A Primeira Página sejam o ator preferido de Wilder, Jack Lemmon,
e
seu velho parceiro Walter Matthau, já nessa época cinqüentenários, ou quase.
Os
papéis principais parecem feitos na medida para os dois (apesar de terem sido
escritos quase cinqüenta anos antes), e não é à toa. O filme inteiro é construído
nesse sentido, para funcionar como uma grande brincadeira de alguns dos principais
nomes do cinema de comédia anos atrás, como se nada pudesse
provar a permanência desses nomes melhor do que umas boas risadas. A câmera parece
não apenas disposta a conseguir o melhor desses atores – seja o timing,
a expressão, ou mesmo a afetividade que surge de suas trocas verbais - mas, principalmente,
está ciente do que fazer para que esse resultado seja
alcançado.
Dizer que A Primeira Página é centrado
na atuação de Lemmon e Matthau não deixa de ser verdade, e não deixa de estar
de acordo com a mesma lógica anacrônica que rege seus princípios, mas é pouco
diante do filme. Esta afirmação exige o reconhecimento de que, por trás do timing
preciso deles, não existe um diretor disposto a se divertir junto, que, acima
de tudo, sabe como funciona cada peça daquele jogo. E, mais, que aquele jogo,
baseado em uma peça, fixado em atores, está longe de ser teatro, e
só pode ser realizado como cinema.
Pois Wilder é um cineasta de estúdio, no sentido de que é um cineasta do controle.
Seus filmes, apesar de libelos cínicos, e até anarquistas, não deixam de ser
perfeitamente planejados, e nisto não existe nenhum demérito. Seus
enquadramentos – principalmente em A Primeira
Página – podem não soar virtuosos ou originais (e quem disse que o cinema
tem sempre de carregar o peso desses atributos?), mas são sempre exatos, precisos
naquilo que propõem. Por isso, nenhuma piada ou ênfase humorística parece deslocada
ou estranha; por isso, o ritmo das piadas rápidas – mas nunca desgovernadas,
afinal é preciso dar o tempo para cada uma delas – mantém a
mesma tônica do início ao fim; por isso, afinal, o filme é bastante bom.
E se ele funciona como força de combate, ou de resistência, não é uma
resistência triste, ou nostálgica. Wilder parece fazer entender que aqueles
diálogos – que parecem não saídos da peça original, mas de seus próprios filmes
anteriores, pelo tom cínico, pelo sentido amoral e, principalmente, pelas
respostas “espertas” travadas em grande velocidade –, que aquela cenografia de
estúdio da década de 50, que a fotografia clássica ou mesmo que as rugas que
estampam os rostos de boa parte do elenco não deveriam permanecer ligadas a um
cinema do passado, pois, afinal, funcionam em qualquer tempo do cinema. E, nesse
sentido, vale afirmar que, trinta anos depois de sua realização, A Primeira Página continua funcionando.
Se não há realmente nada de novo na história de dois grandes jornalistas que
dedicam suas vidas ao sensacionalismo, nessa indústria corrompida que é a da
imprensa marrom, o elogio de Wilder às indústrias corrompidas (ao contrário daquelas
que têm como base a moral e os bons costumes, como o casamento, o Estado e a
polícia), cheio de malícia, não reconhece, nesse anacronismo, ingenuidade alguma.
Pelo contrário, é a afirmação de que o riso não deve ser
visto como peça histórica, e que seu cinema não vira história enquanto provocar
uma série de risadas.
Leonardo Levis
(DVD: Versátil/Universal)
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