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                          Quinta-feira, 4 de outubro de 2007 
                          Jogo de Cena vem sendo anunciado há tempos
                          como uma “virada” na obra de Eduardo Coutinho, especialmente
                          em relação à reflexão que provocaria sobre seu trabalho
                          recente. Sem dúvida, o filme tematiza seu próprio dispositivo
                          e este é, em si mesmo, uma derivação do dispositivo
                          utilizado pelo cineasta anteriormente. A grande pergunta é:
                          de que forma a premissa, enunciativa por si só, transforma-se
                          em filme? E que nos traz este filme como acontecimento
                          na tela? Bom, a verdade é que, provocações reflexivas à parte,
                          as operações emocionais de Jogo de Cena são
                          uma extensão dos últimos filmes
                          do cineasta. Com a observação de que, aqui, ele fecha
                          seu escopo dramático e concentra as narrativas num
                          determinado paradigma, o freudiano. É impressionante
                          como a recorrência
                          absoluta de histórias sobre gravidez, sobre relação
                          pai-e-filha e sobre sonhos significantes tece um terreno
                          propício para Coutinho explorar as lágrimas, a comoção
                          e a abertura afetiva – seja dos seus personagens, seja
                          do público. Me questiono sobre a escolha de filmar
                          apenas mulheres; e, apesar deste desenvolvimento temático
                          me fornecer uma pista, ainda não tenho certeza se compreendo
                          a exata relação – ou mesmo a relação entre a dinâmica
                          depoimento-encenação de depoimento e esta proposição
                          narrativa. Há no filme, por certo, um determinado estado
                          de direito concedido às personagens que situam-se de
                          frente para o palco (como numa extensão da platéia)
                          e, ainda assim, em cima dele e diante da câmera-coutinho.
                          Este estado, ao mesmo tempo em que corresponde à conquista
                          de um direito de fala (o “processo de seleção” é explicitado
                          no filme), configura-se como um acesso privilegiado
                          a um confessionário-divã, onde nenhuma expressão pessoal
                          pode ser censurada (absolutamente significativos são
                          os planos das personagens acedendo ao palco por uma
                          escada escura à semelhança de um túnel). Quanto àquela
                          que seria a “questão central” do filme, a re-interpretação
                          dos depoimentos por atrizes, o que temos é menos um
                          questionamento efetivo (ou assunção verdadeira) da
                          dose de encenação dos depoimentos, do que um instigante
                          jogo com a estética do depoimento documental que, no
                          entanto, procura valorizar tudo o que ele tem de único
                          e espontâneo em contraposição ao artifício de uma atuação.
                          Neste sentido, Coutinho em nada muda sua premissa:
                          captar uma espécie de verdade que se daria numa performance
                          carregada de investimento pessoal e emotivo. São particularmente
                          belos os momentos em que as atrizes tornam-se personagens
                          de documentário elas mesmas, e são registradas falando
                          sobre sua experiência ali no momento da filmagem. Ao
                          entrarem na auto-avaliação, porém, identificando os
                          pontos ou não de contato com o depoimento original,
                          elas corroboram com a armação metalingüística do filme,
                          que de longe é o que ele tem de menos interessante.
                          Se entregue totalmente à autenticidade do artifício – como
                          nos instantes em que a presença física e a fala bastam
                          por si, nivelando a imagem-depoimento das atrizes com
                          a de qualquer depoente real – Jogo de Cena talvez
                          me fosse mais arrebatador. Lembro dos planos de Império
                          dos Sonhos, visto há alguns dias, em que Laura
                          Dern passa os diálogos do filme-dentro-do-filme e torna-se,
                          para a câmera de Lynch, ao mesmo tempo e indistintamente,
                          a personagem-atriz e a personagem do filme-dentro-do-filme,
                          fazendo o estatuto do registro encontrar o abismo de
                          si. Sim, trata-se de um projeto de cinema radicalmente
                          diferente, assim como de outra concepção de mundo,
                          mas me pergunto se não é reducionista o “jogo” que
                          Coutinho propõe também para o espectador: interrogar
                          as camadas (e a graça do filme é que elas são, na verdade,
                          muitas vezes simplesmente indefiníveis) de representação
                          e de autenticidade de cada manifestação, enxergar nas
                          atrizes conhecidas sua interpretação “mais humana” e
                          apreciá-las sempre em contraponto com as depoentes
                          em que se baseiam. Ou mesmo identificar as diferenças
                          como ponto positivo e sinal de sua capacidade de criar
                          e provocar com isso emoções da mesma monta – quiçá até maiores.
                          Me pergunto também qual será a recepção deste filme
                          no exterior, em que os rostos conhecidos para nós serão
                          desconhecidos e este aspecto significativo do filme
                          se perderá, para ser eventualmente substituído por
                          outra. Enfim, estes são apenas alguns questionamentos
                          iniciais sobre Jogo de Cena, resultados de uma
                          reação bastante imediata a ele. Certamente outros se
                          seguirão, assim como desdobramentos mais argumentativos
                          destes. O fato é que o último filme de Coutinho é um
                          trabalho bastante rico e instigante e que provoca ao
                          extremo o exercício crítico. (TM) 
                           
                          Quarta-feira, 3 de outubro de 2007 
                          Nunca fui a Cannes, então não sei 
                          o que acontece. Mas, visto daqui, em momentos existe 
                          a impressão de uma lavagem cerebral em massa 
                          que se instala e domina o ambiente, dando a certos filmes 
                          uma dimensão que eles nunca teriam se não 
                          estivessem na competição oficial da Croisette. 
                          Não digo isso de prêmios porque aí 
                          já é mais natural, ainda que um tanto 
                          nulo, discutir o mérito à láurea 
                          concedida. E não digo isso também dos 
                          veículos oficiais, jornais etc., que adoram pagar 
                          uma de maria-vai-com-as-outras. Digo mesmo das figuras 
                          mais interessantes, inteligentes e independentes de 
                          espírito que escrevem sobre cinema, aqui e acolá. 
                          Porque, por mais que eu procure, não consigo 
                          entender o porquê de ninguém ter feito 
                          o debunking da excrescência que é 
                          4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, filme romeno vencedor 
                          da Palma de Ouro em Cannes. Mesmo os que não 
                          gostaram muito do filme, ao menos no que eu li de cobertura 
                          (que não foi exaustivo mas foi longe de ser pouco), 
                          relevaram as operações mais gritantemente 
                          alarmistas para inscrever o filme na "cena romena", 
                          tentando ver mais um zeitgeist romeno do que 
                          tentando apontar para a pura repetição 
                          de fórmulas. Mas talvez isso tenha a ver com 
                          uma necessidade de se defender Cannes, e por extensão 
                          a excelência da seleção oficial, 
                          como um ponto mais político que estético. 
                          Isso ao menos da parte da crítica francesa. Não 
                          sei. Só sei que fiquei impactado de, ao meio-dia 
                          do antepenúltimo dia de festival, ver um filme 
                          que ganhou o prêmio mais importante no cinema 
                          de autor e ter o impacto, totalmente inesperado, de 
                          ter visto um nada. O resto está na crítica, 
                          já no ar. Em seguida, Smiley Face, de 
                          Gregg Araki. E não é que não era 
                          esperado, mas a gente sempre mantém a esperança, 
                          né? Estrada para Lugar Nenhum é 
                          péssimo, Splendor é pavoroso, mas 
                          ele tinha feito o belo Mistérios da Carne, 
                          não é? E filme bom a gente não 
                          tem pra dar e vender, assim, molezinha molezinha, então 
                          vamos conferir... e... sabe filme que em três 
                          ou quatro planos a gente já sabe o que vai ser, 
                          e que o tom, o ponto-de-vista da câmera, a maneira 
                          de atuar, já revelam uma total falta de vigor 
                          impossível de ser revertida? Pois é, isso 
                          tudo pode ser visto em Smiley Face. Só sei que 
                          antes mesmo dos créditos tentei me instalar para 
                          dormir, coisa que, infelizmente, só consegui 
                          lá pela metade do filme, depois que a maconheira 
                          protagonista interpretada pela Anna Faris recebe em 
                          mãos o manuscrito do Manifesto do Partido 
                          Comunista e tem a idéia de vendê-lo 
                          em leilão virtual para sanar todas suas dívidas. 
                          Acordei feliz do tempo bem utilizado. Mais à 
                          noite, Desejo e Reparação, de Joe 
                          Wright. Não li o livro, que nossos cadetes Raphael 
                          e Leo consideram uma obra-prima total. Tendo sido o 
                          primeiro filme de Wright, confesso que me surpreendi 
                          pela beleza de construção de certos planos, 
                          certamente ostentatórios, mas de alguma forma 
                          construindo um tom geral pela música e pela montagem 
                          precisa que me deixaram bastante impressionado. Mas 
                          a primeira parte acaba, inicia-se uma segunda que narrativamente 
                          mete os pés pelas mãos, e a direção 
                          – ainda que mantenha um virtuosismo entre curioso e 
                          masturbatório (na cena da chegada dos soldados 
                          à praia há um plano seqüência 
                          tour de force que, apesar de feito pra enfeitar, 
                          me cativou) – fica incapaz de dar uma homogeneidade 
                          ao todo, despedaçando o filme em estrutura narrativa, 
                          temporal, visual e, pior de tudo, qualitativa. Há 
                          em Joe Wright, no entanto, um sentido de construção 
                          da cena, de ritmo interno de seqüência e 
                          plano que não são tão comuns no 
                          cinema. Em se tratando de alguém que está 
                          em seu segundo longa, é uma carreira a acompanhar 
                          e saber se ele superou esse complexo de esteta genial 
                          que afeta tanta gente que tem uma visão ambiciosa 
                          de cinema. Esperamos futuro melhor a ele do que o de 
                          Darren Aronofsky, pelo menos. Esperemos por seu próximo 
                          filme (anotação mental para ver Orgulho 
                          e Preconceito). Armênia, de Robert 
                          Guédiguian, é uma viagem sem espaço 
                          para se perder. E, como em toda viagem, quem passa apenas 
                          pelos lugares já demarcados não consegue 
                          criar nenhum gosto autêntico pela coisa. Guédiguian 
                          já teve a época em que se movimentava 
                          por um universo restrito de temas, lugares e atores 
                          (bom, aqui os atores continuam), mas como sabia fazer 
                          aquilo tudo muito bem, seus filmes – especialmente À 
                          Vida... À Morte, Marius e Jeanette e 
                          A Cidade Está Tranqüila – eram certeiros 
                          no encanto, no calor e na exuberância de mundo 
                          criado. Em Armênia, a mecânica do roteiro 
                          é simplória e evidente, os caminhos são 
                          todos previsíveis e a função é 
                          meramente didática. Talvez ele tenha retirado 
                          sua inspiração de Um Filme Falado, 
                          mas tudo que Manoel de Oliveira consegue retirar de 
                          filosófico, histórico e artístico 
                          para além da literalidade didática que 
                          exibe, falta no filme de Guédiguian. Triste de 
                          ver. O curioso do dia é que o filme considerado 
                          complemento – com o inexplicável título 
                          de Jia Zhang Vai para Casa (alguém achou 
                          que "Jia Zhang" é algo como "Marco Aurélio" 
                          ou "Maria de Fátima"?) – foi o melhor do dia. 
                          Ainda que modesto no fôlego e no escopo, o documentário 
                          de Damien Ounouri é um generoso retrato do cinema 
                          de Jia, de sua ligação com o espaço 
                          de onde veio (a cidade de Fenyang na província 
                          de Shanxi), do trabalho com o grupo envolvido na feitura 
                          de seus filmes – atores, fotógrafo, montador, 
                          produtor –, da forma independente de se fazer cinema 
                          na China (onde existe censura oficial antes e depois 
                          da filmagem) e permite acima de tudo mostrar o quão 
                          autoconsciente Jia Zhang Ke é de suas escolhas 
                          e como elas dizem respeito diretamente ao devir histórico 
                          da China nos últimos 40 anos, totalmente pensado, 
                          nada intuitivo. Além de ser genial ver alguém 
                          com cara de moleque, blusa azul marinho da Adidas, andando 
                          como jovem, ser um dos realizadores contemporâneos 
                          mais importantes do mundo. Ao contrário do que 
                          uns e outros professam de forma displicente, o cinema 
                          de autor se renova progressivamente, e é fantástico 
                          ver diretores com uma punhada de obras-primas – como 
                          Jia ou Apichatpong Weerasethakul – feitas antes de completar 
                          40 anos. (RG) 
                           
                          Terça-feira, 2 de outubro de 2007 
                          Festival chegando ao fim, o cansaço já 
                          se instala, uma visão de conjunto começa 
                          a se apresentar, mas se ainda é prematuro fazer 
                          o balanço artístico de tudo que foi visto, 
                          é possível todavia fazer um balanço 
                          da organização, e o saldo, mesmo para 
                          nós que adoramos reclamar, é bastante 
                          positivo. Pouquíssimos atrasos, exceto os já 
                          constantes, insuportáveis, inexplicáveis, 
                          da Première Brasil. É até mesmo 
                          como se o Festival tivesse orgulho em exibir essa característica 
                          tão carioca do atraso protocolar. Mas, como na 
                          sala de aula, até 15 minutos é charme... 
                          Já depois... Mas, afora os atrasos das sessões 
                          de gala, o festival transcorreu sem muitas exaltações, 
                          sem cancelamentos de última hora, e se houve 
                          confusão nas entradas com passaportes e credenciais 
                          em algumas sessões lotadas, foi mais por um desejo 
                          de resolver tudo da melhor maneira do que qualquer outra 
                          coisa. O importante dessa vez é que se atendeu 
                          a padrões mais claros. Do lado das credenciais 
                          e passaportes, a única reclamação 
                          séria foi a proibição, de uma hora 
                          para outra, da retirada de ingressos para o mesmo dia, 
                          o que é absurdo, já que ingressos não 
                          podem ser retirados diretamente nas bilheterias. Acaba 
                          que, se alguém tem uma agenda complicada, terá 
                          que arriscar a sorte no dia anterior se quiser garantir 
                          seus ingressos, ou ficar esperando a não-lotação 
                          da sala para entrar. Chega até a ser ridículo 
                          que um credenciado ou alguém que comprou passaporte 
                          não possa retirar ingressos para o mesmo dia, 
                          e, pelo menos à distância, não parece 
                          algo terrivelmente difícil de ser implementado. 
                          Mas saindo do logístico e voltando aos filmes, 
                          ontem foi a chance para revisão de Paranoid 
                          Park, que, diz-se, só quem viu no Festival 
                          do Rio vai ter visto em película, uma vez que 
                          o filme deve ser exibido comercialmente numa cópia 
                          digital (o problema nem é o digital em si – Eduardo 
                          Valente nos contou que o filme passou assim em Cannes 
                          – mas que o digital utilizado nas salas do circuito 
                          exibidor é esse horror chamado Rain, uma exibição 
                          digital de baixíssima qualidade e fidelidade). 
                          Em 35mm, o filme continua divino. Sobre Floresta 
                          dos Lamentos, filme do qual gostei mas não 
                          entrei na onda de efusividade que meus colegas tiveram, 
                          li e concordei com esse pedaço de texto escrito 
                          por Stéphane Delorme nos Cahiers du Cinéma 
                          627, edição julho-agosto última: 
                          "Depois da cena de chuva, a dupla de desgarrados pára 
                          diversas vezes, diante de uma tumba, diante de uma Grande 
                          Árvore, diante do céu, enfim, estases 
                          mudas em que a transcendência vem esmagar o pequeno 
                          homem. O que aconteceu? Kawase começou por provocar 
                          o sublime, por suscitá-lo (a chuva, magnífica), 
                          mas termina por representá-lo, através 
                          de lugares-comuns da iconografia religiosa. Quando o 
                          espiritual se avança não-mascarado, a 
                          tentação é grande de colocar a 
                          inspiração a meio pau. Passando da estética 
                          ao religioso, a arte se rende à propaganda." 
                          ("Halte au sublime", pp. 78-9) Confesso que tive sensações 
                          semelhantes, acima de tudo com o final da Grande Árvore 
                          referida e sobretudo com a cena final, que dá 
                          direito até a uma caixinha de música como 
                          prova de fofura em demasia. Que Kawase é uma 
                          grande diretora me parece indiscutível, mas em 
                          Floresta dos Lamentos também me parece 
                          que o imersivo atinge seu ponto morto, sua maneira límpida 
                          e sublime de não mais precisar encontrar uma 
                          forma cinematográfica, porque ela já existe 
                          toda feita de antemão (o que, aliás, também 
                          pode-se dizer do filme de Reygadas, que, no entanto, 
                          trabalha sempre com uma matéria-prima que, de 
                          filme a filme, exige soluções formais 
                          diferentes). Além de Paranoid Park, só 
                          vi outro filme, mas que filme: I'm Not There, 
                          de Todd Haynes. Inteiramente absurdado pelas imagens, 
                          pela montagem e, ainda que o filme tenha me perdido 
                          em alguns momentos porque eu não sabia direito 
                          o que fazer de certas situações, não 
                          consigo parar de pensar nele, no fôlego que ele 
                          tem para tratar as "muitas vidas" de Bob Dylan, aproveitando 
                          a realidade em seu lado iluminado e seu lado negro, 
                          fazendo de Dylan o eterno outro da sociedade, negro, 
                          mulher, menestrel, vagabundo, fora-da-lei, resistente, 
                          like a rolling stone, sem criar os limos da estabilidade, 
                          deslizando sobre todas as cristalizações 
                          de comportamento, sociedade, etc. Dylan é o não-reconciliado 
                          do sistema, aquele que luta para que não coloquem 
                          palavras em sua boca, que não seja usado como 
                          símbolo de qualquer coisa, tenha seguidores, 
                          etc. Em velocidade absoluta de personagem e andamento 
                          (que decresce uma meia-hora antes do final, mas é 
                          só um detalhe), I'm Not There é 
                          uma experiência de liberdade no que ela tem de 
                          mais apaixonante e ao mesmo tempo de auto-destrutivo 
                          (o necessário correlato). Não é 
                          um filme sobre rock, é um filme rock. Todd Haynes, 
                          entre punk e arte conceitual, mais uma vez se reafirma 
                          – para quem ainda não teve o cuidado de enxergar 
                          – como um dos maiores realizadores contemporâneos. 
                          Que orgulho de, mesmo no escuro, ter escolhido a foto 
                          de capa da edição! (RG) 
                           
                          Segunda-feira, 1 de outubro de 2007 
                          Festival tem dessas coisas. No mesmo dia que escrevemos 
                          texto sobre Inland Empire, David Lynch falando 
                          de fragmentação, abstração, poder da emoção na ausência 
                          do sentido narrativo, assistimos à versão restaurada 
                          de A Idade da Terra, de Glauber Rocha. E aí surge 
                          aquele efeito mencionado no editorial desse mês, da 
                          distância histórica que afasta e da exibição simultânea 
                          no festival que aproxima coisas heterogêneas de formas 
                          ainda não aproximadas. São idéias que surgem, mais do 
                          que por efeito de curadoria (ainda que esta possa provocá-las), 
                          por fruto do simples acaso produzido pelo deambular 
                          de sala em sala e deixar a mente flutuar de um filme 
                          a outro, ocasionando por vezes curto-circuitos criativos. 
                          Em A Idade da Terra e em Inland Empire, 
                          nada a aproximar em contexto, preocupação conteudística, 
                          efeitos expressivos, a não ser, claro, o mais importante, 
                          a confiança na imagem para criar um mundo aberrante 
                          e excessivo, em que o sentimento de ameaça e mal-estar, 
                          sem ter um objeto específico, incide de forma difusa 
                          sobre o espectador, sufocando-o aos poucos. Em ambos 
                          os filmes, duração monumental que cria um portentoso 
                          manifesto de um radical cinema de instalação. Visto 
                          mais cedo, Uma Velha Amante, de Catherine Breillat, 
                          não me emocionou especialmente. A fluidez e o encantamento 
                          das relações e dos desejos dos personagens dos melhores 
                          filmes de Breillat (e isso pra mim significa acima de 
                          tudo Uma Adolescente de Verdade, mas também Sexo 
                          É uma Comédia e Anatomia do Inferno) traduz-se 
                          muito mal para outra época e outros costumes, e o falar-se 
                          de costumes (Michael Lonsdale, sempre ótimo) acaba saindo 
                          melhor do que o mostrar-se. 
                          Soterrada pelos cenários e figurinos de época, Breillat 
                          não conseguiu construir o despojamento de corpos que 
                          dá singularidade a seu melhor trabalho. Ainda sobra 
                          um tempinho para falar de uma das maiores perturbações 
                          do Festival do Rio, Paranoid Park de Gus Van 
                          Sant, visto no sábado. O princípio talvez seja o mesmo 
                          de Elefante – evocar o cinema de gênero para 
                          não entregar a recompensa, olhar para seus personagens 
                          como anjos caídos, vai-e-vens de cronologia, retrato 
                          de juventude construído à revelia da intriga principal, 
                          etc. –, mas os procedimentos são inteiramente diferentes, 
                          reservando à câmera lenta e ao foco um papel que é de 
                          deixar estupefato, construindo um universo de delicadeza 
                          e fechamento sobre si, mas ao mesmo tempo fazendo ele 
                          ruir a partir de um dado de realidade (a avassaladora 
                          segundidade peirciana que ataca ali onde não se espera) 
                          que obriga a contemplar um outro mundo, o mundo que 
                          existe fora do universo protegido da casa, da escola, 
                          da lanchonete, como diz Alex a sua colega excessivamente 
                          curiosa. Curioso esquema esse que preenche Elefante 
                          e Paranoid Park – e, em certa medida, também 
                          Last Days 
                          –, esse sentimento de uma juventude inteiramente destituída 
                          de vínculo forte com a idéia de sociedade (não à toa 
                          Paranoid Park coloca diálogos como esses jovens 
                          recebem as notícias da guerra no Iraque), que, pela 
                          relação com a morte, adquire um outro estatuto, incodificável: 
                          em Elefante a idéia de que aquilo é tão inimaginável 
                          que não pode estar acontecendo, em Paranoid Park 
                          a extrema casualidade do acidente que faz com que tudo 
                          não passe de um detalhe preciosista do destino. Um detalhe 
                          que, no entanto, não consegue ser esquecido. Uma inocência 
                          de interioridade absoluta que não é mais possível. Esse 
                          desnível operado entre uma vida fechada sobre si (respaldada 
                          pela câmera lenta e pelo foco) e essa realidade assassina, 
                          implacável, impossível, que não pode aparecer como nada 
                          além de um detalhe, faz a fruição de Paranoid Park 
                          adquirir uma dureza bressoniana, tão bela 
                          quanto o contraste entre a beleza desses adolescentes 
                          angelicais e o horror intolerável da morte que teima 
                          em pairar sobre esse mundo, obrigando o crescimento. 
                          (RG)  
                           
                          Segunda-feira, 1 de outubro de 2007 
                          Saí do cinema “de cena” de Uma Velha Amante 
                          para entrar na encenação-experiência de O Homem Provisório, 
                          da Casa Laboratório para as Artes do Teatro. Os figurinos, 
                          os apetrechos colados aos personagens, as cabeças cortadas 
                          que eles levavam pra cá e pra lá, tudo o que se podia 
                          ver (e por vezes mesmo sentir o cheiro) em movimento 
                          agressivo e incessante, convergiam para contar a história 
                          de Teobaldo, o célebre personagem de Guimarães Rosa. 
                          A fisicalidade da peça elimina qualquer idéia de organização 
                          de elementos num palco e de estudo de falas e posturas. 
                          As “imagens” criadas são praticamente todas provisórias 
                          ao extremo, concorrentes e instáveis. Os personagens 
                          gritam, correm, chocam-se uns aos outros e contra o 
                          chão. Os sons e a violência dos corpos são muitas vezes 
                          aterradores. Entre uma e outra camada do sertão de cortinas 
                          de pano com a vegetação nela impressa, jogos de luz 
                          e sombra criam as virtualidades de tudo aquilo que assola 
                          Teobaldo – e que se materializa brutalmente em seguida. 
                          O espetáculo provoca a imersão pela intensidade e pela 
                          habilidade em desdobrar mundos e cenas a partir de ações 
                          que se dão num vazio aparente. Curioso contraponto a 
                          Cochochi, de Laura Amélia Guzmán e Isabel Cárdenas, 
                          visto logo em seguida. No filme de equipe mínima e atores 
                          que interpretam a si mesmos, a paisagem mexicana está 
                          lá o tempo todo. Rochedos, cachoeiras, florestas, pastos. 
                          Os personagens, imersos nesta natureza, só sabem funcionar 
                          a partir dela – e a câmera reforça a todo instante este 
                          pertencimento. Mas, apesar disto – e da imagem capturar 
                          os meninos protagonistas sempre de muito perto, acompanhando 
                          seus movimentos, avançando junto a eles pelo espaço 
                          – impõe-se uma certa frieza nas situações. Os acontecimentos 
                          são esvaziados de intensidade para terem sua dramaticidade 
                          sublinhada em tempos alongados e de não-ação. Neste 
                          processo, boa parte da emoção da narrativa dos dois 
                          irmãos que perdem o cavalo do avô se dissipa e quase 
                          sempre ficamos apenas com as imagens o exercício cinematográfico, 
                          este sim de bastante interesse. (TM) 
                            
                          Sábado, 29 de setembro de 2007 
                          O que esperar de Gus Van Sant após Elefante? 
                          Esta era uma pergunta que traduzia uma interrogação 
                          absoluta e escondia uma expectativa altamente positiva, 
                          mas envolta com o receio da decepção. 
                          E eis que ele realiza Last Days. O questionamento 
                          se repete, desta vez com força ainda maior. Mas 
                          à medida que Paranoid Park se desenrola 
                          na tela, todas as perguntas, expectativas e apreensões 
                          se dissipam. Somos atirados no tempo particular do filme, 
                          com sua narrativa "lânguida". E qual 
                          não é a surpresa ao percebermos que esta 
                          distensão temporal responde a uma dilatação 
                          e repetição labiríntica dos acontecimentos... 
                          O trabalho (ou seria a pesquisa?) de Van Sant com o 
                          tempo-espaço, da qual Gerry é o 
                          emblemático início, parece não 
                          ter limites. A experiência do cinema em relação 
                          ao mundo fraturou-se irremediavelmente. Ali, naquele 
                          encontro fatídico com o deserto, onde a câmera 
                          permitiu que os personagens perdessem a orientação 
                          espacial a ponto de enlouquecerem, seu cinema "descobre" 
                          que há fatos do mundo que a organização 
                          de uma narrativa mais "clássica" simplesmente 
                          não pode abarcar. É como se diante de 
                          cada acontecimento extremo – precisamente aqueles que 
                          colocam em risco a vida – precisássemos reinventar 
                          o universo. Voltar e pensar tudo de novo. Em Paranoid 
                          Park, o que era pulverização de pontos 
                          de vista em Elefante e impossibilidade de ordenar 
                          a vivência em Last Days, torna-se as idas 
                          e vindas de uma consciência assolada por uma culpa 
                          paranóica. O trauma no curso das coisas precisa 
                          ser expurgado. E, para Alex, o esforço mental 
                          não basta, pois a imagem da tragédia é 
                          pregnante – e definitivamente após a fotografia 
                          mostrada pelo oficial de polícia – e contamina 
                          todas as outras imagens de sua vida cotidiana: a câmera 
                          lenta espraia-se pelo filme, fixa olhares e prolonga 
                          hesitações, receios, impossibilidades 
                          de movimento. A escrita trará então para 
                          o garoto uma espécie de catarse. Mas Alex não 
                          tem grande desenvoltura com a expressão através 
                          das palavras no papel, como ele mesmo diz; sua escrita 
                          irá, pois, se dar de forma não-linear, 
                          seguindo o curso do pensamento, avançando e voltando 
                          de acordo com os caprichos da memória. O filme, 
                          que nasce colado ao personagem, torna-se seu fluxo mais 
                          interno – não mais o puro movimento de corpos 
                          de Elefante, não mais o indevassável 
                          de uma vivência particular demais de Last Days. 
                          A impressionante expansão do cinema de Gus Van 
                          Sant é pra mim motivo de maravilhamento absoluto 
                          e inegável assombro. (TM) 
                           
                          Sexta-feira, 28 de setembro de 2007 
                           Fim de primeira semana, começo de segunda 
                          semana de festival. Saldo até agora sensacional, 
                          e ainda que o meio de percurso não seja o melhor 
                          caminho para um diagnóstico, ele cria a oportunidade 
                          para um primeiro olhar. Ainda mais porque os destaques 
                          se separam, ou costumam se separar entre primeira e 
                          segunda semana. Primeira: Oliveira 1, Hong Sang-Soo, 
                          Naomi Kawase, Carlos Reygadas (restabelecido como um 
                          dos decisivos), Claude Chabrol, Todd Haynes, Apichatpong 
                          Weerasethakul, o combo O Estado do Mundo. Segunda: 
                          Gus Van Sant, Oliveira 2, Jacques Rivette, David Lynch, 
                          Abel Ferrara, o bem faladíssimo Lady Chatterley 
                          de Pascale Ferran, o romeno vencedor de Cannes (e, ao 
                          menos para mim, ver os que não consegui na primeira 
                          semana: I'm Not There e Floresta dos Lamentos, 
                          tidos como obras-primas pela maioria da revista que 
                          viu). Até agora, parcial da contabilidade, o 
                          cinema de imersão sensorial/conceitual, que vinha 
                          carregando uma dianteira folgada nos últimos 
                          anos (Mal dos Trópicos, Elefante, 
                          Last Days, O Intruso, Juventude em 
                          Marcha, Café Lumière, Síndromes 
                          e um Século), passa a reconviver normalmente 
                          com um cinema de dispositivo ou de operações 
                          lógicas sobre a narrativa (Haynes, esperamos 
                          que Lynch) ou mesmo com o triunfo da confiança 
                          de ainda extrair de uma estrutura narrativa "comum" 
                          um interesse singular (Mulher na Praia de Hong 
                          Sang-Soo, ainda que a estrutura de espelhamento ofereça 
                          ao menos um olhar já mais auto-consciente em 
                          relação à narração). 
                          Muito por questão de panorama, mesmo, acho que 
                          vale a pena voltar ao filme de Hong Sang-Soo, porque, 
                          excetuando Almodóvar, nenhum dos grandes contemporâneos 
                          parece evoluir sua estética no sentido de uma 
                          elaboração de história. Num momento 
                          de crise da ficção – mesmo cineastas badalados 
                          no circuito cult mais convencional, como os Dardenne, 
                          carregam seu filme no realismo da instabilidade da câmera 
                          e no realismo de tiques de seus atores, pois a história 
                          por si mesmo vem sendo cada vez mais banal –, vale a 
                          pena chamar atenção para o terreno do 
                          íntimo que Hong evoca filme a filme, pois, se 
                          na escala natural de nossas vidas parece já haver 
                          um esgotamento da surpresa no contar-se das histórias, 
                          o microscópio de Hong Sang-Soo reinventa um novo 
                          terreno para futuros ficcionadores que esperam fazer 
                          algo no futuro além de chover no molhado: filmar 
                          o sexo, o caminhar, o beber, apegar-se ao cotidiano 
                          e ao desejo na relação homem-mulher (no 
                          caso de Hong, já que nenhum de seus casais até 
                          hoje foi homossexual), pela minúcia de construção, 
                          ainda pode provocar grandes perturbações 
                          no terreno hoje relativamente estável que é 
                          o cinema que se carrega pela narração, 
                          ou, para usar o termo (mais preciso) dos anglófonos, 
                          pelo storytelling. (RG) 
                           
                          Quinta-feira, 27 de setembro de 2007 
                           Chato o dia de festival em que só se vê, 
                          passando de uma sala à outra, filmes entre morno 
                          e interessante. Ontem, quarta-feira, foi assim, bem 
                          oposto a uma terça-feira mágica, com direito 
                          a uma sessão de Mulher na Praia com a 
                          platéia totalmente ganha e vibrando com o filme. 
                          A quarta garantia algumas expectativas fortes. Primeiro, 
                          Antiga Alegria, filme que vinha sendo respaldado 
                          dos dois lados do Atlântico. O filme tem lá 
                          seus encantos na maneira como trabalha a relação 
                          entre os personagens, um pouco entre o desconforto e 
                          uma certa simpatia desafetada. Mas, como é freqüentemente 
                          o caso nos filmes independentes americanos, existe sempre 
                          uma espécie de mesquinharia autopiedosa, aqui 
                          em modo melancólico, mas sempre centrada na idéia 
                          do ego, na dimensão das proporções 
                          de vivência mais à mão. E o filme 
                          só deixa tudo mais complicado quando leva seus 
                          personagens à selva, sem entretanto jamais abandonar 
                          seus amparos antropomórficos em nome da desrazão 
                          da selva. Resultado: ao contrário de Apichatpong 
                          Weerasethakul ou Claire Denis (e, me contam Júnior 
                          e Tati, também o novo filme da Naomi Kawase), 
                          a floresta em Antiga Alegria não tem real 
                          força, a câmera sendo incapaz de atingir 
                          um grau de fabulação em relação 
                          àquilo que exibe, sem nenhum poder de instalação. 
                          Para usar uma problemática que está na 
                          minha cabeça há uns bons meses, a diferença 
                          entre o narrar e o mostrar, o filme parece o tempo inteiro 
                          chamar atenção para a necessidade da mostração, 
                          de criar momentos de indeterminação, mas 
                          jamais abandona seus próprios amparos narrativos, 
                          direcionando o olhar o tempo inteiro e jamais dando 
                          um limiar de liberdade ao espectador para experimentar. 
                          É uma pena, pois vendo o filme pensamos muito 
                          em Gerry do Gus Van Sant ou em Blissfully 
                          Yours de Apichatpoing Weerasethakul. E, naturalmente, 
                          Antiga Alegria não suporta a comparação, 
                          pois o tempo nele jamais chega a ser qualitativo. Em 
                          seguida, Techiné novo, As Testemunhas, sobre 
                          o aparecimento da AIDS ali entre 1984 e 1985. O filme 
                          vai bem na primeira parte, em que se atém aos 
                          dramas de seus personagens, o default de Techiné, 
                          nenhum brilho especial. Mas na segunda metade, ao tentar 
                          inscrever os dados históricos da recepção 
                          da doença por parte de especialistas e da sociedade, 
                          e ainda assim tentar manter os dramas pessoas dos personagens 
                          que vinha construindo, o filme mete os pés pelas 
                          mãos e no final deixa um objeto visual bem aquém 
                          do que se espera desse realizador que, se não 
                          tem geralmente vôos tão altos, ao menos 
                          costuma nos entregar obras precisas e vigorosas. Em 
                          seguida, Andarilho de Cao Guimarães. Reproduzo 
                          o que postei na comunidade orkutiana de nossos opostos 
                          complementares, os cinéticos: "quanto a Andarilho, 
                          admiro aquilo tudo, porém bastante friamente, 
                          sem um real engajamento, sem encontrar um nexo que junte 
                          ritmicamente as duas principais operações 
                          do filme (performance dos andarilhos/planos para estabelecer 
                          o ritmo da vida de estrada), achando aquela beleza toda 
                          meio fetichista e pouco orgânica. Mas de fato 
                          alguns planos, em especial o último, são 
                          arrebatadores. Mas nada tão perfeito, orgânico, 
                          preciso quanto man.road.river (que acho que passou 
                          pela cabeça de todo mundo que conhece esse filme 
                          ao ver Andarilho)". O cinema do Cao Guimarães 
                          em geral me deixa assim, e confesso que ainda não 
                          tenho um julgamento final sobre seus filmes – que bom! 
                          – mas definitivamente o gut feeling em relação 
                          à obra inexiste. Mas tanto os filmes e a carreira 
                          são muito instigantes. Em seguida, Estômago, 
                          primeiro longa-metragem de Marcus Jorge. Novamente da 
                          comunidade da Revista Cinética: "Apesar do filme 
                          não ser, confesso que discutir Estômago 
                          é um treco meio apaixonante. O filme tem 
                          uma entrega comercialona cativante, porque de fato faz 
                          tudo para oferecer ao espectador um espetáculo 
                          nos moldes meio popular-cult que ele está acostumado, 
                          e nisso funciona bem em vários momentos. Em especial 
                          o trabalho da música e o joão miguel, 
                          realmente soberbo. Estruturalmente, no entanto, é 
                          uma bagunça só. A sanfoninha presente-passado 
                          funciona mais ou menos só até a metade 
                          do filme, e quando vai chegando no clímax o ridículo-charmoso 
                          vira ridículo-constrangedor, pela previsibilidade 
                          e pelas péssimas soluções visuais 
                          e narrativas encontradas (não entro em detalhes 
                          pra não entregar o final)". Fiz mais um comentário 
                          no que diz respeito à condição 
                          do personagem final, jeca que paga de serviçal 
                          mas ao fim tece suas vinganças sangrentas. Quem 
                          quiser pode fazer as especulações ideológicas 
                          que quiser, mas acho que o filme não atribui 
                          a isso nada além de uma solução 
                          narrativa charmosa e "surpreendente". O interessante 
                          do filme é a relativa fluidez e o caráter 
                          um tanto evasivo (ou seja, é um filme totalmente 
                          autoconsciente de ser uma bobagem), que talvez até 
                          garantam uma boa performance de bilheteria. Mas, em 
                          se tratando de comédia, tem um número 
                          bem alto de situações frustradas e/ou 
                          fáceis para que se eleve como algo acima do status 
                          de curiosidade. Resta que o dia acaba e continuamos 
                          pensando nas maravilhas do cinema de Hong Sang-Soo, 
                          então a fotinho do dia vai ser dedicada a ele, 
                          com o final delicioso, libertador, de Mulher na Praia... 
                          (RG) 
                           
                          Quarta-feira, 26 de setembro de 2007 
                          Muitos filmes por dia, cotações, debates, argumentações. 
                          Não, não se trata da vivência de um festival de cinema, 
                          mas de uma experiência pré-festival. As atividades finais 
                          do comitê de seleção internacional do Festival Internacional 
                          de Curtas do Rio de Janeiro, o Curta Cinema, do qual 
                          fiz parte, me consumiram os primeiros três dias de Festival 
                          do Rio. Como consolo, além de um amplo panorama do que 
                          está sendo realizado em audiovisual no mundo, a antevisão 
                          de que teremos uma bela amostra de curtas-metragens 
                          estrangeiros durante o festival, que ocorrerá de 25 
                          de outubro a 4 de novembro. A lista final encontra-se 
                          aqui. 
                          Passado este período de intensa garimpagem e descobertas, 
                          mergulho finalmente no Festival do Rio e me deparo com 
                          Homens na Terra, de Ariane Michel. A aposta pessoal 
                          no filme, advinda da pesquisa no site 
                          dedicado a ele, se confirma na projeção. Obra de estranheza 
                          extrema dentro de um festival de cinema, com seu tempo 
                          contemplativo ao limite e sua narrativa quase impenetrável, 
                          Homens na Terra me instiga profundamente e me 
                          faz querer conhecer outras obras de Michel. Artista 
                          plástica e vídeo-artista, a diretora confirma, em entrevista 
                          sobre o filme, o que se vê na tela: um verdadeiro estudo 
                          sobre a construção do olhar, interessado 
                          sobretudo na opacidade da vida animal. Mais no texto 
                          que escreverei sobre o filme. Em termos de apostas coletivas, 
                          ontem foi o dia de estar face-a-face com o aguardado 
                          I’m Not There, de Todd Haynes, em cabine de imprensa. 
                          Na tela, a obra atinge a expectativa e a ultrapassa, 
                          como em todo grande filme. I’m Not There é o 
                          monumento que esperávamos e é mais: é fluxo de imagens 
                          e sons impossíveis de serem previstos. Arrebatamento 
                          dos sentidos, profusão de emoções. O filme de Todd Haynes 
                          é uma obra em auto-ebulição, uma avalanche e um quebra-cabeça 
                          cinematográfico, que provoca a um só tempo maravilhamento 
                          e dificuldade crítica. Na saída do cinema, a sensação 
                          de ter vivido mais do que o possível em duas horas (sensação, 
                          aliás, partilhada pela experiência efusiva do filme 
                          de Naomi Kawase, Floresta dos Lamentos) e a certeza 
                          de que ainda falaremos muito sobre ele. (TM) 
                           
                          Quarta-feira, 26 de setembro de 2007  
                          Filmes em episódios feitos por vários 
                          diretores de vários países... eles estão 
                          na moda no circuito internacional de festivais, eles 
                          são a condensação do "world 
                          cinema". O principal representante do fenômeno 
                          em 2007 é O Estado do Mundo, ao qual assisti 
                          ontem. O filme tem um aspecto interessante de se assemelhar, 
                          na era das câmeras digitais portáteis, 
                          ao desejo de Lumière de espalhar seus cinegrafistas 
                          pelos quatro cantos do planeta e compor registros sobre 
                          as coisas mais variadas, desde monumentos históricos 
                          até passagens de transeuntes, uma enciclopédia 
                          do mundo em movimento. Os episódios bons vêm 
                          de quem já prevíamos. Vicente Ferraz pagou 
                          mico internacional. O tal do Ayisha Abraham? Fez um 
                          diário com ares miserabilistas e enfadonhos. 
                          Wang Bing? Conceitualmente interessante, mas um filme 
                          fácil no fundo, um teatrinho brechtiano que amontoa 
                          num mesmo espaço a China contemporânea 
                          e seu passado maoísta. Fórmula simplista 
                          demais para um diretor de quem eu esperava tanto... 
                          Mas restam lá algumas imagens fortes, de textura 
                          e luz bastante expressivas em meio à assustadora 
                          paisagem industrial. Apichatpong? Um belo filme ritualista 
                          e vitalista, uma correnteza ora serena, ora turbulenta. 
                          Pedro Costa? Jogou em casa e fez um filme bem forte, 
                          com a mesma identidade estética de Juventude 
                          em Marcha, ambientado naquela terra imaginária 
                          esquisita, idílica e poética, como um 
                          universo pictural que precisamos prolongar mentalmente 
                          a partir do quadro exuberante que o artista nos oferece. 
                          E tem a Chantal Akerman... esta proporcionou a grande 
                          experiência do filme. Ela captou alguns momentos 
                          do anoitecer em Xangai, lugar de arranha-céus 
                          e saturação de signos visuais e sonoros. 
                          As poucas pessoas que aparecem no filme são efemeridades, 
                          às vezes são somente vultos fugidios em 
                          contra-luz. No fim, sobram apenas as imagens, elas são 
                          as únicas coisas com poder de permanência 
                          nesse lugar. De tão onipresentes, essas imagens 
                          nem recebem mais o olhar das pessoas (é o contrário 
                          que ameaça acontecer). Um mundo de anônimos 
                          vigiado por imagens, e por fim um mundo só de 
                          imagens e sons. Tem a música no fundo, hits pop 
                          em idiomas diversos. No longuíssimo plano final, 
                          Akerman traça um arco de Lumière à 
                          vídeo-instalação, à imagem-ambiência, 
                          passando, claro, por Andy Warhol. (LCOJr) 
                           
                          Terça-feira, 25 de setembro de 2007 
                          Já dá para dizer que temos um bom 
                          Festival do Rio. Em quatro dias, revi pela segunda vez 
                          um belo filme (O Sol) e pela quarta vez uma obra-prima 
                          de outro mundo (Síndromes e um Século); 
                          tivemos um Christopher Guest bacana, o bonito De 
                          Volta à Normandia de Nicolas Philibert, Chabrol 
                          sensacional em Uma Mulher Dividida em Dois... 
                          E ontem, com Floresta dos Lamentos, Naomi Kawase 
                          ofereceu uma rara experiência estético-existencial, 
                          novamente tendo a vida e a morte como forças 
                          motrizes em seu cinema e complementares na vida (meu 
                          texto sobre o filme já está no ar). Nenhum 
                          festival que tem Floresta dos Lamentos pode passar 
                          em branco, isso eu garanto. Como aliás já 
                          havia sido marcante a exibição de Shara 
                          em 2003, também de Kawase. Este novo filme 
                          é ainda mais intenso, por incrível que 
                          pareça (aos que não viram, passa de novo 
                          no sábado). Mas como festival não é 
                          feito só de filme bom, às 23:45 lá 
                          fui eu pra uma dessas furadas inofensivas tão 
                          características dessa época do ano devotada 
                          ao cinema. O filme se chama A Felicidade dos Sakai, 
                          dirigo por Mipa Oh (isso mesmo). Se na primeira meia-hora 
                          parecia aquele típico filminho todo-errado-porém-simpático, 
                          depois o todo errado predomina sobre o resto. Não 
                          vou negar que o filme até possui sua fração 
                          de simpatia... Mas quando deixa de ser uma comédia 
                          familiar filtrada pelo olhar de um adolescente tímido 
                          e passa a ser um drama sem pé nem cabeça, 
                          fica difícil acompanhar a onda do filme. Os micro 
                          encantos que poderiam existir acabam se esvaziando, 
                          ao passo que nosso saco se enche. Destaque para a menininha 
                          da família Sakai, um respiro de vida e graça. 
                          (LCOJr)  
                           
                          Segunda-feira, 24 de setembro de 2007 
                          Domingo foi um desses costumeiros dias em festivais 
                          que se vai programado, certinho, e outras circunstâncias 
                          obrigam a refazer a programação. A de 
                          ontem foi o atraso para o primeiro Chabrol, o que me 
                          forçou a recolocá-lo na sessão 
                          da noite e, assim, deixar para uma outra oportunidade 
                          a visita ao Estação Ipanema para ver o 
                          filme dirigido pela Sandrine Bonnaire (e o japonês 
                          que vinha em seqüência como brinde). O brinde 
                          da meia-noite acabou sendo coreano, um filme boboquinha 
                          bem intencionado sobre o qual escreve-se uma pílula 
                          e está bem. O centro do dia, como não 
                          poderia deixar de ser, foi Síndromes e um 
                          Século, filme que se transformou numa espécie 
                          de ritual pra mim. Visto em enormes condições 
                          de cansaço na Mostra de São Paulo, depois 
                          revisto em vídeo, visto novamente em cabine de 
                          imprensa e enfim revisto pela última vez em película 
                          até sabe-se lá quando, o filme de Apichatpong 
                          Weerasethakul é desses que têm com o não-saber 
                          uma relação fundamental. O não-saber 
                          em pelo menos dois estados: a) sai-se muito burro da 
                          primeira visão do filme, pela estrutura, pela 
                          construção, pela incerteza quanto a como 
                          atribuir significado a tal ou tal cena ou seqüência; 
                          por vezes, mesmo, dificuldade em compreender o que o 
                          diretor quer com isso; b) não-saber próprio 
                          do diretor, que faz questão, como diz Manoel 
                          de Oliveira, de criar "uma saturação de 
                          signos magníficos que se banham na luz de sua 
                          ausência de explicação". A base 
                          do trabalho cinematográfico de Apichatpong Weerasethakul 
                          situa-se radicalmente entre o narrar e o mostrar. Mas 
                          para ele isso não é um dilema nem se desenvolve 
                          elegendo um em detrimento do outro. Ele faz um pouco 
                          como David Lynch em filmes como Estrada Perdida ou 
                          Mulholland Drive: ele cria uma estrutura de base, 
                          tenuemente narrativa, suficientemente esburacada, para 
                          inscrever aquilo que ele quer, a vida que passa, o tempo 
                          que transcorre e a ocupação desse tempo 
                          por parte das pessoas. Há um prazer renoiriano 
                          (Jean e Pierre-Auguste) em observar a pujança 
                          da vida tal qual Weerasethakul nos mostra, são 
                          imagens que exercem um função afetiva, 
                          um deslumbre diante das diversidades não-sintetizáveis 
                          ou dialetizáveis do mundo. Brincando, falei pro 
                          co-editor Júnior: a única sinopse possível 
                          para esse filme é a frase aristotélica 
                          "O ser se dá de diferentes maneiras". Mas, ao 
                          invés apenas de uma coleção de 
                          momentos deleitáveis, esse jovem mestre tailandês 
                          reparte seu filme em dois (apesar de cada parte também 
                          ser divisível em partes menores, o que não 
                          se dava em Mal dos Trópicos de forma tão 
                          determinante) e aproveita a operação para 
                          criar diversas analogias: visuais (eclipse/cano que 
                          suga fumaça), de situação (orquídea 
                          selvagem/ovni de brinquedo fazendo os personagens olharem 
                          muito para cima), de tema (mulher curando uma perna 
                          menor com outra com areia ou prótese). Mas ele 
                          se furta a ser discursivo ou comparativo quanto a isso: 
                          dividir o filme entre um hospital no campo e um hospital 
                          na cidade não é prerrogativa para ser 
                          taxativo quanto à tecnologia ou à sabedoria 
                          tradicional. O filme exibe as duas, freqüentemente 
                          imbricadas uma na outra, mas não se alonga sobre 
                          o tema, ou não faz questão de colocar 
                          isso como ênfase especial do filme (apesar de 
                          ser o que o título sugere com mais força: 
                          síndromes e como a distância dos séculos 
                          responde a elas). Para Apichatpong Weerasethakul, existe 
                          um prazer enorme em fazer o filme sair daquilo que a 
                          gente chama de diegético (aquilo que diz respeito 
                          à consistência da ficção 
                          sendo apresentada, o "mundo" em que habitam os personagens 
                          do filme) e simplesmente fazer planos que flagram simplesmente 
                          as pessoas em momento de recreação. Isso 
                          se dá com mais força lá para o 
                          fim de cada uma das duas partes, a primeira aproveitando 
                          a música de um show numa tenda, inicialmente 
                          cortando para espaços que se supõem contíguos 
                          à música sendo executada, e em seguida 
                          cortando para qualquer espaço, até chegar 
                          novamente ao hospital. A segunda utiliza a musiquinha 
                          da ginástica em praça pública (que 
                          também era o final da primeira parte de Mal 
                          dos Trópicos) para obter efeitos semelhantes. 
                          A pergunta principal de Joe Weerasethakul em Síndromes 
                          e um Século é: como fabular o universo, 
                          espaço e habitantes, de dois hospitais? As muitas 
                          histórias sendo contadas, merecendo ou não 
                          flashbacks, chamam atenção para como o 
                          relato é decisivo no cinema desse realizador. 
                          Ele varia os registros, pergunta-se o tempo inteiro 
                          sobre a necessidade das ficções em todos 
                          seus registros: mito, fábula, relato confessional, 
                          história vivida, caso inventado, ou simplesmente 
                          ausência de história, o simples mostrar-se 
                          da imagem acontecendo à revelia de qualquer discurso. 
                          E isso faz de Apichatpong Weerasethakul um cineasta 
                          único e fundamental no cinema que se produz hoje. 
                          Por isso a profusão de estrelas no quadro da 
                          revista e essa disposição, considerada 
                          loucura por muitos, de revê-lo quantas vezes for 
                          possível num festival. Fazer o quê? O filme 
                          compensa... (RG) 
                            
                          Domingo, 23 de setembro de 2007 
                          Depois de um dia magro em número de filmes 
                          na sexta-feira (mas um dia em que se vê A Prova 
                          de Morte jamais pode ser magro em experiência 
                          cinematográfica), sábado compensador com 
                          cinco longas-metragens. Comecemos com o primeiro, Silenciosa 
                          Luz, que faz Carlos Reygadas voltar ao rol dos diretores 
                          obrigatórios de se ver. Pode-se não gostar, 
                          e é verdade que ele tem com a forma cinematográfica 
                          uma relação solene e nobre que por vezes 
                          fica meio forçada, um ímpeto de fazer 
                          de cada plano uma obra-prima em si mesma que acaba por 
                          pesar um pouco o conjunto. Mas Reygadas é um 
                          soberbo filmador, tem um talento singular na criação 
                          de imagens e na instalação de uma estranheza 
                          que o olhar externo (dele mesmo, da câmera, sem 
                          dúvida) provoca. Seu primeiro longa, Japón, 
                          problematizava esse estranhamento). De alguma forma, 
                          ele ainda não conseguiu sair dele, o que faz 
                          de sua estética ainda algo um pouco travado. 
                          Mas quando acerta, acerta em cheio. Uma experiência, 
                          e se pudéssemos falar isso de todo filme que 
                          vemos em festival, o mundo seria bem melhor... Em seguida, 
                          De Volta à Normandia, de Nicolas Philibert, 
                          filme bonito em sua estreiteza de laços com o 
                          passado, com as pessoas e com o imaginário que 
                          o cinema desempenha em pessoas pouco habituadas com 
                          ele (o filme é um retorno às locações 
                          e às pessoas que trabalharam no filme Eu, 
                          Pierre Rivière..., de René Allio, 
                          1975, do qual Philibert foi assistente). Bom filme, 
                          sólido, um tanto morno por vários momentos, 
                          final comovente. Em seguida, mesma sala, ainda documentários, 
                          dessa vez José Lins do Rêgo e O Engenho 
                          de Zé Lins, de Vladimir Carvalho. O veterano 
                          Vladimir parece ter assumido definitivamente o papel 
                          de aposentado idiossincrático, fazendo filmes 
                          que claramente não têm coesão ou 
                          desenvolvimento estilístico, temático 
                          ou rítmico, mas que ainda assim contêm 
                          coisas interessantes de se ver. O filme é assim, 
                          e apresenta piadas de Ariano Suassuna quando acha que 
                          deve, movido por uma curiosidade pessoal que não 
                          é tão grande para dar um charme particular 
                          ao filme, nem tão aguda para criar uma visão 
                          sobre o universo retratado. Resta a denúncia 
                          do estado da memória brasileira com sua literatura 
                          e, sobretudo, com o imaginário da época 
                          de engenho, hoje em ruínas. Depois, Botafogo 
                          para Centro e A Casa de Alice, de Chico Teixeira, 
                          antecipado por um curta-metragem falcatrua chamado Picolé, 
                          Pintinho e Pipa, filme anteriormente exibido em 
                          outros festivais com outra duração e final, 
                          mas que para se manter nos padrões de minutagem 
                          do Festival cortou na cara dura toda a resolução 
                          da trama, criando um objeto audiovisual sem pé 
                          nem cabeça, selecionado visivelmente pela bondade 
                          social dos organizadores (pois mesmo o que permaneceu 
                          após o trabalho de açougueiro na remontagem 
                          não passa de escolar). De A Casa de Alice 
                          nada muito a dizer além de que trata-se do 
                          Cronicamente Inviável para mulheres histéricas. 
                          O filme é de uma previsibilidade atroz na construção 
                          de um mundinho cão de classe média baixa 
                          paulistana, um pouco à maneira de Contra Todos 
                          de Roberto Moreira, só que sem favela. Dramaticamente 
                          pobre, o filme segue a lógica da análise 
                          combinatória de personagens e do "vai dar merda" 
                          muito comum nesses filmes-painel metidos a marotos e 
                          críticos. O diferencial do filme é o sentido 
                          de despojamento provocado pela câmera de Mauro 
                          Pinheiro e pela filmagem dos corpos em espaços 
                          exíguos, mas quem tem Crash na cabeça 
                          não chega a O Pântano. A noite terminou 
                          em chave doce com a estréia de Ainda Orangotangos 
                          de Gustavo Spolidoro. Não escreverei mais 
                          extensamente sobre o filme porque quando vi pela primeira 
                          vez o diretor era organizador de festival e eu era jurado 
                          e colega diário de papos & comes & bebes, 
                          então não me sinto muito à vontade. 
                          Digo que, em sua irregularidade, gosto do clima, gosto 
                          de situações, me emociono em momentos, 
                          rio um bocado de vezes, e em outros momentos fico enfastiado 
                          porque certas situações claramente se 
                          prolongam mais do que deveriam. O filme faz esse ano, 
                          com Conceição, o par de filmes 
                          cujo espírito é mais importante do que 
                          o resultado final irregular, e que colocam o prazer 
                          de filmar à frente do perfeccionismo meio estéril 
                          que reina na maioria da produção brasileira. 
                          (RG) 
                           
                          Sábado, 22 de setembro de 2007 
                          Ontem foi um primeiro dia modesto. Apenas dois filmes: 
                          uma revisão de O Sol e um caminho com 
                          endereço certo, no caso do filme de Christopher 
                          Guest, autor de mockumentaries que costumo apreciar. 
                          Rever O Sol, de Sokurov, me fez admirar ainda 
                          mais o filme, cujo texto devo desde a Mostra de São 
                          Paulo do ano passado (sim, as piadas são fáceis... 
                          mas o sol há de reaparecer no horizonte em breve, 
                          é um belíssimo filme que merece uma crítica 
                          rapidamente). Quanto 
                          a For Your Consideration, de Christopher Guest, 
                          recomendo com tranqüilidade. Na comédia 
                          americana atual, poucos diretores conseguem incidir 
                          tão precisamente sobre, a um só tempo, 
                          as duas pontas do showbiz americano. For Your Consideration 
                          estabelece a ligação orgânica entre 
                          o tapete vermelho e o circuito underdog do comércio 
                          do espetáculo. Aquela história: celebridades 
                          concorrendo ao Oscar, para num momento seguinte serem 
                          flagradas vomitando no próprio pé ao sair 
                          de uma boate. Para além de um humor ácido 
                          em cima de provincianos fracassados e iludidos com a 
                          hipótese de um reconhecimento da indústria, 
                          o principal dos filmes de Guest são as qualidades 
                          de comédia do elenco. Ao contrário da 
                          turminha Stiller-Ferrell-Wilson, que não se aglutina 
                          em torno de um diretor com uma proposta X de cinema 
                          (e nada de mal nisso, que fique claro), o elenco de 
                          Guest constitui uma verdadeira trupe, e seu projeto 
                          possui uma unidade enfatizada de um filme a outro. São 
                          atores que se entregam àquele universo de uma 
                          forma que extrapola a sátira, e isso é 
                          um de seus traços distintivos. É uma comédia 
                          feita com mais verdade do que a maioria das comédias 
                          que vemos. Eugene Levy, John Michael Higgins, Harry 
                          Shearer, Catherine O'Hara (sem falar no próprio 
                          Guest): excelentes atores que vão até 
                          o fundo do poço com seus personagens, e não 
                          simplesmente atores consagrados que atuam do alto de 
                          um pedestal, enquanto figuras imaginárias (muito 
                          diferentes deles, no fundo) se afundam emancipadamente 
                          dos corpos que lhes servem de suporte. Os atores da 
                          trupe de Guest não têm vergonha dos personagens 
                          que encarnam. Pelo contrário, esgarçam 
                          a pele enquanto os representam. Como disse Kent Jones, 
                          na personagem de O'Hara em For Your Consideration 
                          vemos uma das mais assustadoras e engraçadas 
                          caricaturas da cultura da celebridade. Nenhum representante 
                          do cinema indie americano sabe tratar tão bem 
                          de personagens fracassados como Christopher Guest. (LCOJr) 
                           
                           Sexta-feira, 
                          21 de setembro de 2007 
                          Começo de Festival do Rio, as preocupações 
                          editoriais são sempre as 
                          mesmas: colocar a edição no ar, sempre 
                          em cima da hora e depois do que se previa, ir atrás 
                          do credenciamento, sempre em cima da hora (nesse ano, 
                          14h de sexta em Copacabana), já no meio da correria, 
                          mas em todo caso melhor do que em festivais anteriores. 
                          Afinal de contas, muitos se lembram das horas de espera 
                          até o começo da noite para a entrega das 
                          credenciais. Mas vamos ao que interessa que reclamação 
                          de crítico não dá camisa a ninguém. 
                          Ontem aconteceu finalmente a primeira exibição 
                          oficial na cidade de Tropa de Elite. Digo na 
                          cidade porque aparentemente Jundiaí estreou o 
                          filme dia 14 apenas para servir de justificativa para 
                          lançá-lo como candidato ao Oscar de filme 
                          estrangeiro. Não estive lá ontem mas estive 
                          na cabine de imprensa de quarta-feira, lotada, em que 
                          o clima geral, partilhado inclusive pela assessoria 
                          de imprensa, era de que todo mundo já tinha visto 
                          a versão pirata. O pessoal da segunda e da terceira 
                          fila (como nós da Contracampo, Eduardo Valente 
                          da Cinética e alguns outros somos conhecidos) 
                          até estranhou esse clima de confraternização 
                          semi-hipócrita, mesmo porque curiosamente nenhum 
                          de nós tinha visto (não pelo respeito 
                          ao demônio do copyright, mas porque alguns ainda 
                          acreditam na idéia de ver o filme depois que 
                          o diretor dá o assentimento final sobre sua obra). 
                          Ironicamente, o que foi apresentado à imprensa 
                          foi uma versão digital, ainda incompleta, faltando 
                          marcação de luz (alguns planos muito escuros) 
                          e um ou outro detalhe de acabamento. Não sei 
                          atender à pergunta que não quer calar, 
                          se há cenas a mais ou não, porque continuo 
                          sem ter visto a cópia pirata. Sei que Tropa de 
                          Elite é um filme perturbador, que desperta discussões 
                          sérias a ponto de atiçar os ânimos. 
                          Eu mesmo tive uma dessas no mesmo dia com meu amigo 
                          Ricardo Miranda, montador dos melhores filmes de Arthur 
                          Omar e de A Idade da Terra de Glauber Rocha, 
                          além de colega professor da Escola Darcy Ribeiro 
                          (e personagem de Conceição, filme 
                          de Daniel+4 [ou Guilherme+4, Samantha+4, etc.]). Mas 
                          a mais significativa foi ainda na ante-sala do Espaço 
                          2, com um bom grupo da Contracampo, o diretor e amigo 
                          Gustavo Acioly e o ex-contracampista Valente. De modo 
                          geral, muitas discordâncias de opinião 
                          e acima de tudo sobre os procedimentos de ponto de vista 
                          que o filme realiza. Para os que gostam (e eu me incluo 
                          tranqüilamente no time), o filme revela a sandice 
                          que é a realidade de ter uma equipe de guerra 
                          em atividade numa área urbana, o que reflete 
                          em parte a sandice da situação social 
                          e política do Rio. Para os que deploram, o filme 
                          glorifica o Bope e considera os personagens principais, 
                          em especial o protagonista interpretado por Wagner Moura, 
                          como herói positivo. Bom, os dados estão 
                          lançados, falaremos mais do filme na crítica 
                          (ou nas críticas, ainda não está 
                          decidido). E falaremos sobre cinema, todo dia, aqui 
                          no diário do Festival do Rio. (RG) 
                          
                          
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