Francisco
de Goya descerra uma de suas pinturas, um de seus retratos
de nobreza: a observação do mundo
e da pintura é chave no filme.
Imagens de apresentação de
trabalhos do pintor espanhol são recorrentes ao longo
de Sombras de Goya. Em vários momentos, o vemos
a descerrar uma pintura, revelando aos outros seu trabalho.
Igualmente, em várias cenas, vemos os personagens a
olharem, por vezes perplexos, por vezes maravilhados,
para seus quadros. De fato, a abertura da película é uma
síntese de toda sua mecânica justamente por operar
uma “análise” da obra de Goya. Ali, Lorenzo (Javier
Bardem) revelará sua fidelidade central antes mesmo
que o problema de fidelidade do filme seja colocado.
Sim, porque a oposição colocada ali não é apenas a
de um homem e seus interesses pessoais e estéticos
diante do totalitarismo e menos ainda uma cena didática
sobre a mecânica da inquisição. Há um descerramento
na obra de Goya que faz coçar a orelha do padre.
Sombras de Goya é todo construído em torno da passagem da utopia
transcendental para a utopia histórica, com a utopia biográfica pressionada
entre ambas. Alonzo é o padre que “descobrirá” que o poder total de Deus
não é total e que a utopia transcendente não é a única possível e que existe
uma utopia política possível. Inés (Natalie Portman) é a mulher cuja biografia é atropelada
não pela utopia da transcendência, mas pelo conflito entre aquelas duas
utopias. No meio de tudo, o pintor (Stellan Skarsgård) surge como alguém
distanciado das utopias, ligado apenas a um “estado de bem-estar”. De fato, é um
filme sobre estados, sobre a possibilidade de acomodação em uma condição
na qual se deposite fé.
Por isso, é interessante pensar que Milos Forman tenha se centrado em uma série
de viradas de roteiro. Curiosamente, Sombras de Goya percorre um caminho
de aventura em seu drama. Alonzo é um personagem (o homem da igreja, crente na
transcendência, mas sedento de vida), transforma-se em outro (o homem da política,
crente no homem e corrompido pelo poder), depois é obrigado pelas circunstâncias
a se transformar novamente (em homem da verdade, crente senão em se manter o
mesmo depois de tantas transformações). Inés é uma personagem, transforma-se
em outra pelas circunstâncias e depois vemo-la duplicada – triplicada até, se
considerarmos o sistema montado por ela; pela filha real, crescida; e pela filha “imaginária”,
bebê, que toma forma na menininha achada na taverna. Francisco de Goya é transformado
igualmente, mas justamente pelas transformações de ambos. Sua mudança é de ordem
moral e lógica, não é identitária. Por mais que seu personagem mude, ficando
surdo, isso não significa mais do que passar a andar com um cômico tradutor de
linguagem dos sinais a seu lado; afinal, Goya era mesmo surdo antes, recusando-se
a ouvir o que lhe diziam. E nem é tampouco política sua transformação.
Alonzo em dois tempos de suas utopias: a de homem
da transcendência sedento
pela vida e como homem das idéias punido pela igreja.
Mas o mundo em torno desses personagens vai mudando. E justamente o mundo documentado
por Goya com tanta precisão, como apontava Alonzo na primeira cena. Com precisão
e com “mão de artista”, aquele que transforma o mundo, interpretando-o. Por várias
vezes, vemos no filme também as pessoas não se reconhecerem nos retratos produzidos
pelo pintor. Alonzo mesmo diz que não se encontraria na rua se tivesse que procurar
por “aquele homem”. Também a rainha não se satisfaz com o realismo do registro.
Somam-se essas vezes justamente a primeira cena em que os padres se recusam a
ver no mundo o mundo de Goya. Ele interfere demais sobre o mundo. E por isso
faz do mundo algo mais real. É um jogo complexo o do reconhecimento traçado por
Forman em torno do pintor.
Daí essa recorrência das cenas de apresentação e de observação de quadros ser
um elemento tão central. Mas elas compõem mais um sistema acessório ao jogo narrativo
do diretor. Não à toa, parece, a janela do filme é uma rara (em Forman), 1:1.85,
semelhante à de Um Estranho no Ninho (1975, um filme em que o jogo com
a insanidade também é caro), e, sua imagem, menos ampla do são habitualmente
as do diretor. E em se tratando de um filme de época e com pintura emaranhada
por toda sua estrutura, trata-se de um desenho de plano mais curioso ainda. Forman
utiliza muito o diálogo físico e posicional entre seus personagens. E ele aqui
está presente, mas compõe-se com a maneira como o primeiro plano está sempre
em oposição a um fundo que o observa ou que é por ele observado. Quando apresenta
o retrato a Alonzo, Goya se posta diante dele para ser visto pelo dono do quadro.
Compõe ali um mecanismo de espelhos: ele está ao lado (diante) de Alonzo na tela
e está diante (e ao lado) do Alonzo “real”. Mas o Alonzo real, sabemos desde
a primeira seqüência, ainda será revelado e é provavelmente muito mais próximo
da figura secular (e sem braços) registrada na pintura.
O mesmo acontecerá quando Alonzo for colocado diante do Santo Ofício, chapéu
de cone na cabeça. Ali, em primeiro plano, ele será visto não no centro de um
sistema de observações julgadoras, mas na frente de um conjunto de olhares que,
sabemos, estão no poder naquele momento, mas que acabam de recuperá-lo depois
de uma crise e que podem perdê-lo a qualquer momento. É outro jogo de espelhos:
Alonzo trocara de posição e agora quem trocou foram eles.
Não deixa de ser uma jogada curiosa pensar que o pintor mais determinante para
o filme de Forman não seja, afinal, Goya, mas Velásquez. É seu A Família de
Felipe IV ou Las Meninas (circa 1656), constatado como “grande obra” pelo
irmão de Napoleão Bonaparte, quem aparece como modelo para o sistema do diretor.
No quadro, como se sabe, Diego Velásquez registra a si mesmo a pintar algo que
está fora do quadro, olhando para ele, e que apareceria reproduzido em um espelho,
nas costas do pintor (seriam o rei e a rainha). O Goya de Forman se insere em
um jogo semelhante de posicionamentos: sempre envolvido nas imagens que produz
e sempre observando os efeitos dessas imagens, Goya tenta ser um Velásquez, eximido
porque inserido, mas sua consciência o trai. A virada epistemológica chave do
pensamento moderno, a transformação do homem em objeto para (produção de) sua
isenção, não dá certo com o personagem aqui.
Goya diante do quadro de Alonzo e “Las Meninas”,
de Velásquez: o mundo é partido
entre vários planos de observação a partir do ponto de vista do artista.
Para o bem da trama. O espelho que acaba por acompanhar os movimentos de Goya
produz inúmeras situações de revelação. Revelações que vão desconstruindo a própria
visão de mundo do personagem. Assim, fica justificado o próprio jogo de exageros
em torno de Inés/Alicia, sobretudo na mecânica das semelhanças e na transformação
da primeira de jovem crédula da burguesia espanhola em farrapo humano. É porque
se metamorfoseia de figura registrada em um dos regimes da obra de Goya, o dos
belos retratos da nobreza, para outro, o do povo sofrido solapado pelo mundo
dessa nobreza, que ela se torna um tormento para o pintor. Não à toa ela é construída
em um registro do quase incrível, do pictórico, com dentes teatrais e insanidade
performática. No fundo, as utopias representadas por Alonzo e Inés estão todas
nas mãos de Francisco. E é a impossibilidade de convivência entre elas o que
faz dele um personagem tão interessante em seu conflito. Quando reconhece na
mendiga a moça que outrora pintara e que era, ainda, o anjo de seus afrescos
de igreja, seu mundo se torna absurdo. Não é, então, só uma questão de pintar,
mas de a qual dos dois se confere maior realidade com seu poder de eternização.
No fundo, essa é a disputa da primeira cena: qual é a imagem que se quer manter
para sempre?
Em Forman, não há de fato essa opção: todas as duas estarão sempre lá, uma espelhada
na outra. E Goya não será senão a corporificação dramatizada dessa dualidade.
Alexandre Werneck
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