Olhos nos
olhos, a mãe
instaura o conflito entre
o narrador e a pessoa, entre
diretor e personagem,
entre seu
filho atual
e seu filho
do passado.
Duas cenas são
definidoras de Santos e Demônios. E não apenas
como sinédoque,
mas também
como operação
de metalinguagem. A primeira
é a da aparição de Dito
Montiel, o personagem
(Robert Downey Jr.). Ali,
fica fechado o ciclo de
apresentação metalingüística do filme
– que terá seu espelho
de geração na aparição
de Dito Jovem
(Shia LaBeouf) a olhar
para a câmera
e a dizer: “Neste filme
eu abandonarei a todos”.
A segunda é a do filho
e da mãe (Dianne
Wiest) sentados em uma escada,
com ela
a tentar reconciliar
o escritor com
seu pai
(Chazz Palminteri). Lá, docemente,
ela lança
uma pergunta que
leva toda
a estrutura do filme
a sofrer um
abalo: “Como
você pode amar tanto
seu pai
em seu
livro e não
conseguir amá-lo agora?”.
Ora, todo
o ciclo de apresentação
do passado operado
no filme é apresentado
como uma narração
memorialista de Dito,
que lê
seu texto
em uma sessão
de livraria.
A isso se soma
um outro
recurso simbólico, o deslocamento
do estilo naturalista do
filme para
um misto
de denúncia da narração
e de algo que
poderíamos chamar de “metametalinguagem”.
Isso se manifesta sobretudo nos
momentos em
que a câmera
se detém nos rostos
dos jovens da vizinhança
de Dito e eles
lançam sobre quem
os observa, nós, um
conjunto de olhares
e frases, depoimentos.
Eles ali
são os objetos
da narração metalingüística
de Dito Montiel,
o autor/diretor.
Mas tomemos novamente
a fala da mãe.
Nela está inscrito um descompasso
determinante entre
presente e passado.
Mais que
isso, entre
quatro tempos:
passado real,
presente real,
passado narrado e presente
narrado. A combinatória entre
esses tempos
é o que produz a complexidade
dramática do filme
de Montiel. Isso
porque mais
interessado em estabelecer
uma lógica de causa
e efeito, o cineasta-escritor
parece querer operar
uma multiplicação das identidades
afetivas de sua história.
Montiel quer
que seu
personagem (que,
afinal, mais
metalinguagem ainda,
é ele mesmo)
redescubra o amor do/pelo pai, mas
é um amor
que ele
insuspeitava em
seu próprio
passado. É como
se sua memória,
heraclítica, o traísse: contaminado por
um presente
que o coloca a milhões
de anos-luz de seu passado,
ele só
poderá conhecer o mesmo
por intermédio
de sua memória.
Mas não
de uma memória pura
e simplesmente, que o faz
reexperienciar o tempo
vivido, mas
uma memória intermediada esteticamente. O passado
de Dito, então,
são dois:
aquele “real”,
que ele
viveu, mas do qual
não se lembra, e aquele
narrado, de que ele
se lembra por ter
inventado como boa literatura
(quase melo)dramática.
Mas a mãe
lhe pergunta
como pode haver
esse descompasso.
E lhe pergunta
como personagem
e, não há como
escapar, como
crítica também.
Afinal, ali,
dá-se uma correção nos
rumos lógicos
do filme. Vêm à tona,
ali, então,
os outros dois
tempos, o presente
“real” e o presente
narrado. O primeiro é o grande
enigma. Já
que temos acesso
a ele por
meio de uma tensão,
aquela entre Downey
Jr. e as operações estéticas
da filmagem e do roteiro.
Mas de que
serviria esse presente
e o fato de ele
ser “real”?
Pelo mesmo
motivo pelo
qual essa “realidade”
aparece e aparecerá aqui
sempre entre
aspas: porque
não se trata
em momento
algum de uma alusão
a uma dimensão real
da vida, mas
de uma construção lógica
do próprio filme,
é ele quem
impõe um Dito
real e um
ficcional. Mas esse Dito
“real” (irresistível
e poderosíssimo jogo de
palavras em
português) é justamente
o olho do filme,
o olho que
observa tudo sem
se contaminar tanto
por nada,
aquele capaz
de produzir uma narração
como a que
produziu. Retornarei a ele.
O segundo é o presente
narrado. Este é o núcleo
principal do filme
e a porta de entrada
para o primeiro.
Embora a maior
parte da metragem
da história seja apresentada
na juventude do escritor,
é claro que
esse filme
não é sobre
o cotidiano de jovens
do Queens latino nos
anos 1980. É, em
vez disso, um
filme sobre
um homem
obrigado a retornar
a si mesmo,
a um ele
que ele
talvez não
queira mais ser.
Não à toa,
Montiel (o diretor, tratemo-lo
pelo sobrenome)
conduz sua “parábola
do filho pródigo”
lentamente para
o reencontro entre
o filho e o pai,
a relação partida
que desencadeou todo
o conflito que
sustenta o filme.
E o faz para logo
depois mudar
tudo: há uma ruptura
poderosa justamente
no final da história.
Não é a reconciliação com
o pai, com
a origem, a maior
questão de Dito.
No momento em
que se tem o espaço
do ajuste de contas
catártico entre pai
e filho, o progenitor
remete seu rebento
para outro
reencontro, aquele
com Antonio (Eric Roberts
na versão adulta),
que está na prisão.
O rapaz (Channing Tatum) era o amigo
mais delinqüente,
descontrolado e incontrolável de Dito.
Era também
uma espécie de filho
para o pai
de Dito. Muitas vezes
veremos no passado o papai
tratá-lo de maneira mais
afetuosa do que
trata o próprio
Dito. Várias vezes
nos perguntaremos se o
rapaz não
é, afinal, filho
bastardo daquele homem.
Antonio, entretanto, é
muito mais
que isso.
Ele é a personificação
de todo o passado
do protagonista, o passado
que ele
quer esquecer,
que ele
varreu para baixo
do tapete de uma memória
mitificada. Não à toa,
a memória narrada de Dito
fará com que
Antonio se volte para a câmera
e diga: “Eu sou um
monte de merda”. Não
é tanto Antonio quem
fala ali,
mas a memória
narrativa, estilizada,
de Dito.
Dito
em dois
tempos, filtrados por
Montiel: o jovem,
idealizado, e o adulto,
idealizador.
Daí, na verdade, ser catártico mesmo
o reencontro com
Laurie (Rosario Dawson na versão
adulta). É ela
quem jogará na cara
de Dito (e, no fundo,
de Montiel) que
seu passado
lhe pertence
e que não
se pode deixar de se reconhecer
nele. Nesse sentido, a
opção por
Rosario no papel é admirável:
dona daquele que
talvez seja o sorriso
mais belo
e cativante do cinema
contemporâneo, a moça
tem sido inteligentemente
utilizada por diretores
para produzir um
conflito visual
digno de nota.
Sua expressão
sempre passa
positividade, por mais
que a situação
em que
esteja seja depressiva. Montiel
radicaliza esse elemento
e faz da expressão dela
espelho da história
que a personagem
viveu e não nega.
Se Downey Jr. magistralmente não
é Shia LaBeouf,
Rosario é totalmente Melonie Diaz (a Laurie jovem).
Não por
acaso, então,
o passado do filme
é construído como
um passado
de cartilha. Parece que
estamos assistindo a Os Bons Companheiros (de Scorsese) ou a Desafio no Bronx (de De
Niro) ou
até, com
alguma boa (má?) vontade,
a Os Incompreendidos (De Truffaut). Não, não
estou dizendo que esses
filmes sejam “de cartilha”
(embora o de De
Niro até seja um
pouco). Mas
todos eles
apresentam uma maneira
mais ou
menos consagrada de se
filmar a juventude
em um
passado “de época”.
Mais nos
americanos,
vemos uma maneira
de tratar a trilha
sonora, de fazer
as ruas dialogarem com
os personagens, de criar
conflitos de momento
que se transformam em
metáforas de conflitos
de longo prazo,
uma certa mitificação das
relações de poder
na juventude etc.
O passado estilizado
pela maneira
de se filmar a época
e a juventude.
Montiel, então,
filma um passado,
como disse, estilizado
(estilizado de naturalista, inclusive,
já que
recorre a recursos como
a câmera na mão,
o depoimento etc) e depois
o revisita. E o revisita inclusive
na filmagem. Compare-se, por
exemplo, a aparição
de Dito adulto
com o “protocolo
de intenções” de Dito
jovem. Compare-se a imagem
de Rosario Dowson
na janela com
a de Melonie Diaz
no mesmo lugar.
E é esse constante
jogo de idealização que
vai criando o drama do
filme. O
conflito de Santos e Demônios se dá, afinal, entre
as várias camadas desse
registro. O mundo
de Montiel não
é uma cultura, uma ambiência
de rapazes latinos
imersos em
uma socialização complicada que
os conduz para uma biografia
medíocre. Mais
que isso,
é sobre o conhecimento
prévio dessa mediocridade.
Mas sobre
um conhecimento
prévio que
só se obtém... a posteriori.
Por isso,
cada personagem
do passado de Dito
sabe um pouco
como será sua
história. Cada
um deles se move um
bocado sem
medo, sem
se preocupar muito
com suas
biografias.
E por isso
também, o golpe
de misericórdia de Montiel
contra Dito:
a ida ao encontro
de Antonio. É para isso
que serve o tal
presente “real”,
aquele que
se distancia e não se afeta
nem pela
estrutura nem
pela emoção.
Seria fácil para
o cineasta fazer
Downey Jr. entrar
em uma sala
e ir abraçar um
homem que
não vemos, não
mostrar, afinal,
o homem adulto
em que
o rapaz enorme
que víamos se tornou. Mas
ele quer
lhe dar
um rosto,
ele quer
fazer dele um
personagem de seu
(de Dito) presente
“real”. Afinal,
ele quer
fazer um
“guia para
se reconhecer seus
santos” – o termo
“santo” aparece no sentido
da identidade espiritual
de cada um,
daquele que, finalmente,
cada um
é no céu. E, assim
como Dito,
Antonio é, finalmente,
muito mais
do que uma forma
mítica, muito mais
do que uma narração.
Alexandre Werneck
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