SANTOS E DEMÔNIOS
Dito Montiel, A Guide to Recognizing your Saints, EUA, 2006


Olhos nos olhos, a mãe instaura o conflito entre o narrador e a pessoa, entre diretor e personagem, entre seu filho atual e seu filho do passado.

Duas cenas são definidoras de Santos e Demônios. E não apenas como sinédoque, mas também como operação de metalinguagem. A primeira é a da aparição de Dito Montiel, o personagem (Robert Downey Jr.). Ali, fica fechado o ciclo de apresentação metalingüística do filmeque terá seu espelho de geração na aparição de Dito Jovem (Shia LaBeouf) a olhar para a câmera e a dizer: “Neste filme eu abandonarei a todos”. A segunda é a do filho e da mãe (Dianne Wiest) sentados em uma escada, com ela a tentar reconciliar o escritor com seu pai (Chazz Palminteri). Lá, docemente, ela lança uma pergunta que leva toda a estrutura do filme a sofrer um abalo: “Como você pode amar tanto seu pai em seu livro e não conseguir amá-lo agora?”. Ora, todo o ciclo de apresentação do passado operado no filme é apresentado como uma narração memorialista de Dito, que seu texto em uma sessão de livraria.

A isso se soma um outro recurso simbólico, o deslocamento do estilo naturalista do filme para um misto de denúncia da narração e de algo que poderíamos chamar de “metametalinguagem”. Isso se manifesta sobretudo nos momentos em que a câmera se detém nos rostos dos jovens da vizinhança de Dito e eles lançam sobre quem os observa, nós, um conjunto de olhares e frases, depoimentos. Eles ali são os objetos da narração metalingüística de Dito Montiel, o autor/diretor.

Mas tomemos novamente a fala da mãe. Nela está inscrito um descompasso determinante entre presente e passado. Mais que isso, entre quatro tempos: passado real, presente real, passado narrado e presente narrado. A combinatória entre esses tempos é o que produz a complexidade dramática do filme de Montiel. Isso porque mais interessado em estabelecer uma lógica de causa e efeito, o cineasta-escritor parece querer operar uma multiplicação das identidades afetivas de sua história. Montiel quer que seu personagem (que, afinal, mais metalinguagem ainda, é ele mesmo) redescubra o amor do/pelo pai, mas é um amor que ele insuspeitava em seu próprio passado. É como se sua memória, heraclítica, o traísse: contaminado por um presente que o coloca a milhões de anos-luz de seu passado, ele poderá conhecer o mesmo por intermédio de sua memória. Mas não de uma memória pura e simplesmente, que o faz reexperienciar o tempo vivido, mas uma memória intermediada esteticamente. O passado de Dito, então, são dois: aquelereal”, que ele viveu, mas do qual não se lembra, e aquele narrado, de que ele se lembra por ter inventado como boa literatura (quase melo)dramática.

Mas a mãe lhe pergunta como pode haver esse descompasso. E lhe pergunta como personagem e, nãocomo escapar, como crítica também. Afinal, ali, dá-se uma correção nos rumos lógicos do filme. Vêm à tona, ali, então, os outros dois tempos, o presentereal” e o presente narrado. O primeiro é o grande enigma. que temos acesso a ele por meio de uma tensão, aquela entre Downey Jr. e as operações estéticas da filmagem e do roteiro. Mas de que serviria esse presente e o fato de ele serreal”? Pelo mesmo motivo pelo qual essa “realidade” aparece e aparecerá aqui sempre entre aspas: porque não se trata em momento algum de uma alusão a uma dimensão real da vida, mas de uma construção lógica do próprio filme, é ele quem impõe um Dito real e um ficcional. Mas esse Ditoreal” (irresistível e poderosíssimo jogo de palavras em português) é justamente o olho do filme, o olho que observa tudo sem se contaminar tanto por nada, aquele capaz de produzir uma narração como a que produziu. Retornarei a ele. O segundo é o presente narrado. Este é o núcleo principal do filme e a porta de entrada para o primeiro.

Embora a maior parte da metragem da história seja apresentada na juventude do escritor, é claro que esse filme não é sobre o cotidiano de jovens do Queens latino nos anos 1980. É, em vez disso, um filme sobre um homem obrigado a retornar a si mesmo, a um ele que ele talvez não queira mais ser.

Não à toa, Montiel (o diretor, tratemo-lo pelo sobrenome) conduz suaparábola do filho pródigolentamente para o reencontro entre o filho e o pai, a relação partida que desencadeou todo o conflito que sustenta o filme. E o faz para logo depois mudar tudo: há uma ruptura poderosa justamente no final da história. Não é a reconciliação com o pai, com a origem, a maior questão de Dito. No momento em que se tem o espaço do ajuste de contas catártico entre pai e filho, o progenitor remete seu rebento para outro reencontro, aquele com Antonio (Eric Roberts na versão adulta), que está na prisão. O rapaz (Channing Tatum) era o amigo mais delinqüente, descontrolado e incontrolável de Dito. Era também uma espécie de filho para o pai de Dito. Muitas vezes veremos no passado o papai tratá-lo de maneira mais afetuosa do que trata o próprio Dito. Várias vezes nos perguntaremos se o rapaz não é, afinal, filho bastardo daquele homem. Antonio, entretanto, é muito mais que isso. Ele é a personificação de todo o passado do protagonista, o passado que ele quer esquecer, que ele varreu para baixo do tapete de uma memória mitificada. Não à toa, a memória narrada de Dito fará com que Antonio se volte para a câmera e diga: “Eu sou um monte de merda”. Não é tanto Antonio quem fala ali, mas a memória narrativa, estilizada, de Dito.



Dito em dois tempos, filtrados por Montiel: o jovem, idealizado, e o adulto, idealizador.

Daí, na verdade, ser catártico mesmo o reencontro com Laurie (Rosario Dawson na versão adulta). É ela quem jogará na cara de Dito (e, no fundo, de Montiel) que seu passado lhe pertence e que não se pode deixar de se reconhecer nele. Nesse sentido, a opção por Rosario no papel é admirável: dona daquele que talvez seja o sorriso mais belo e cativante do cinema contemporâneo, a moça tem sido inteligentemente utilizada por diretores para produzir um conflito visual digno de nota. Sua expressão sempre passa positividade, por mais que a situação em que esteja seja depressiva. Montiel radicaliza esse elemento e faz da expressão dela espelho da história que a personagem viveu e não nega. Se Downey Jr. magistralmente não é Shia LaBeouf, Rosario é totalmente Melonie Diaz (a Laurie jovem).

Não por acaso, então, o passado do filme é construído como um passado de cartilha. Parece que estamos assistindo a Os Bons Companheiros (de Scorsese) ou a Desafio no Bronx (de De Niro) ou até, com alguma boa (má?) vontade, a Os Incompreendidos (De Truffaut). Não, não estou dizendo que esses filmes sejam “de cartilha” (embora o de De Niro até seja um pouco). Mas todos eles apresentam uma maneira mais ou menos consagrada de se filmar a juventude em um passado “de época”. Mais nos americanos, vemos uma maneira de tratar a trilha sonora, de fazer as ruas dialogarem com os personagens, de criar conflitos de momento que se transformam em metáforas de conflitos de longo prazo, uma certa mitificação das relações de poder na juventude etc.


O passado estilizado pela maneira de se filmar a época e a juventude.

Montiel, então, filma um passado, como disse, estilizado (estilizado de naturalista, inclusive, que recorre a recursos como a câmera na mão, o depoimento etc) e depois o revisita. E o revisita inclusive na filmagem. Compare-se, por exemplo, a aparição de Dito adulto com o “protocolo de intenções” de Dito jovem. Compare-se a imagem de Rosario Dowson na janela com a de Melonie Diaz no mesmo lugar.

E é esse constante jogo de idealização que vai criando o drama do filme. O conflito de Santos e Demônios se dá, afinal, entre as várias camadas desse registro. O mundo de Montiel não é uma cultura, uma ambiência de rapazes latinos imersos em uma socialização complicada que os conduz para uma biografia medíocre. Mais que isso, é sobre o conhecimento prévio dessa mediocridade. Mas sobre um conhecimento prévio que se obtém... a posteriori. Por isso, cada personagem do passado de Dito sabe um pouco como será sua história. Cada um deles se move um bocado sem medo, sem se preocupar muito com suas biografias.

E por isso também, o golpe de misericórdia de Montiel contra Dito: a ida ao encontro de Antonio. É para isso que serve o tal presentereal”, aquele que se distancia e não se afeta nem pela estrutura nem pela emoção. Seria fácil para o cineasta fazer Downey Jr. entrar em uma sala e ir abraçar um homem que não vemos, não mostrar, afinal, o homem adulto em que o rapaz enorme que víamos se tornou. Mas ele quer lhe dar um rosto, ele quer fazer dele um personagem de seu (de Dito) presentereal”. Afinal, ele quer fazer umguia para se reconhecer seus santos” – o termosanto” aparece no sentido da identidade espiritual de cada um, daquele que, finalmente, cada um é no céu. E, assim como Dito, Antonio é, finalmente, muito mais do que uma forma mítica, muito mais do que uma narração.

Alexandre Werneck