O Sobrevivente revela-se,
antes de mais nada, um legítimo avatar do cinema de
Werner Herzog. Espécie de remake de seu próprio
documentário, O Pequeno Dieter Precisa Voar,
de 1997, o filme denota em toda sua elaboração o empenho
do cineasta em apurar seu universo a cada filme. O
Sobrevivente é movido pelo seu desejo de voltar àquela
história, contá-la melhor, com mais detalhes e maior
imersão na experiência de Dieter Dengler. Mais perigo,
mais selva, mais adrenalina. E, para tal, o que era
depoimento de Dieter, visitas a locações, ou narração
deliberativa de Herzog no primeiro filme, torna-se
aqui pura narrativa cinematográfica: ao mesmo tempo
flerte com o gênero e construção de mundo.
Tudo se passa como num bom filme de aventura (ou num grande drama de sobrevivência
além dos limites). Mas algo parece estar fora de lugar. Há psicologia de menos,
verde demais. E a trama resume-se a uma eterna tensão do presente que não conhece
seu depois. Pois se a sobrevivência na natureza é uma constante luta para permanecer
vivo, são as ações e reações do corpo que condensam o empenho animal em resistir às
ameaças de morte. Assim sendo, Herzog fixa-se prioritariamente em gestos, em
movimentos, e nunca permite a seus personagens momentos de distensão.
As impressionantes
gruas que acompanham Dieter logo que seu avião cai dão a dimensão
de um ambiente
vasto do qual não se conhece as beiras, um
espaço que
termina por fechar-se
sobre si. A
decupagem
quase-clássica da maioria das cenas nos instala, por sua vez, num terreno
em
que os arredores podem vir a ser conhecidos,
mas estarão
permanentemente
assolados pelo fora-de-campo. Os personagens encontram-se verdadeiramente encarceirados
pelo seu entorno, como se, a cada plano, a natureza inteira os cercasse e encurralasse.
É dela que pode surgir o inimigo, e é ela que encarna o risco da morte.
Contudo, não é o corpo como entidade física ou como transfiguração de um “espírito
mundano” que interessa ao cineasta. A câmera de Herzog pouco se mostra atraída
pelas vibrações da carne, ou por sua imanência num dado espaço.
O
corpo
humano
em O Sobrevivente é, na verdade, o catalisador privilegiado do processo
de identificação espectador-personagem, o elemento que sofrerá – e, por conseguinte,
denotará – todo o progresso da ação do filme. (Por isso é necessário
exibir
passo-a-passo a sabatina de castigos físicos que Dieter sofre logo que é capturado
pelos vietcongues, por exemplo.) O corpo de Christian Bale acumula em si os traços
de tudo que lhe acontece. A
alteração
física do ator (emagrecimento, barba crescente...) marca a transformação
deste
homem
sobre
o
qual
quase
nada sabemos, transformação que se dará pelo aprendizado da resistência
e pelo
desenvolvimento
de
uma engenhosidade mirabolante numa situação extrema.
Podemos dizer, portanto, que o verdadeiro drama herzoguiano manifesta-se no nível
da psique, na confrontação das elaborações mentais do homem com a força bruta
existente na natureza. (Duane, o companheiro de cativeiro, não apresenta a mesma
resistência de Dieter e enlouquece
paulatinamente.)
E é precisamente
isso
que
permite
o
cineasta
flertar
com
o gênero e fazer de seu relato um gráfico de apreensão ininterrupta.
Impulsos
físicos e mentais encontram-se conjugados nas ações empreendidas pelo personagem.
Em determinado momento, não sabemos mais o que em Dieter é sofisticação estratégica
e o que é instinto básico de sobrevivência; tudo parece fundir-se no trabalho
permanente de seu corpo para resistir um pouco mais. Só um pouco mais.
Esta intrincada (e discreta) fusão perceptiva presente em O Sobrevivente faz
dele um filme profundamente monocórdio, em que tudo fecha-se em torno da mesma
obsessão: a forma com que Dieter foi capaz de suportar tamanha provação.
As imagens de O Sobrevivente são como a resposta da imaginação de Herzog
ao relato de Dieter em O Pequeno Dieter Precisa Voar. O fascínio que a
fala deste criava no outro filme e a magnetização afetiva que a narrativa
heróica
de si mesmo provocava transfiguram-se no rosto expressivo de Bale e
na obstinada postura de enfrentamento do personagem. Toda a fixação maníaca de
Dieter
com
o
vôo sai de cena e é como se assistíssemos apenas o pôr-em-obra de seu esforço
de sobrevivência. Através
de
sua
encenação,
Herzog
procura
restituir
cada
pequena
batalha para melhor entender a guerra inteira.
Tatiana
Monassa
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