O SOBREVIVENTE
Werner Herzog, Rescue Dawn, EUA, 2006

O Sobrevivente revela-se, antes de mais nada, um legítimo avatar do cinema de Werner Herzog. Espécie de remake de seu próprio documentário, O Pequeno Dieter Precisa Voar, de 1997, o filme denota em toda sua elaboração o empenho do cineasta em apurar seu universo a cada filme. O Sobrevivente é movido pelo seu desejo de voltar àquela história, contá-la melhor, com mais detalhes e maior imersão na experiência de Dieter Dengler. Mais perigo, mais selva, mais adrenalina. E, para tal, o que era depoimento de Dieter, visitas a locações, ou narração deliberativa de Herzog no primeiro filme, torna-se aqui pura narrativa cinematográfica: ao mesmo tempo flerte com o gênero e construção de mundo.

Tudo se passa como num bom filme de aventura (ou num grande drama de sobrevivência além dos limites). Mas algo parece estar fora de lugar. Há psicologia de menos, verde demais. E a trama resume-se a uma eterna tensão do presente que não conhece seu depois. Pois se a sobrevivência na natureza é uma constante luta para permanecer vivo, são as ações e reações do corpo que condensam o empenho animal em resistir às ameaças de morte. Assim sendo, Herzog fixa-se prioritariamente em gestos, em movimentos, e nunca permite a seus personagens momentos de distensão.

As impressionantes gruas que acompanham Dieter logo que seu avião cai dão a dimensão de um ambiente vasto do qual não se conhece as beiras, um espaço que termina por fechar-se sobre si. A decupagem quase-clássica da maioria das cenas nos instala, por sua vez, num terreno em que os arredores podem vir a ser conhecidos, mas estarão permanentemente assolados pelo fora-de-campo. Os personagens encontram-se verdadeiramente encarceirados pelo seu entorno, como se, a cada plano, a natureza inteira os cercasse e encurralasse. É dela que pode surgir o inimigo, e é ela que encarna o risco da morte.

Contudo, não é o corpo como entidade física ou como transfiguração de um “espírito mundano” que interessa ao cineasta. A câmera de Herzog pouco se mostra atraída pelas vibrações da carne, ou por sua imanência num dado espaço. O corpo humano em O Sobrevivente é, na verdade, o catalisador privilegiado do processo de identificação espectador-personagem, o elemento que sofrerá – e, por conseguinte, denotará – todo o progresso da ação do filme. (Por isso é necessário exibir passo-a-passo a sabatina de castigos físicos que Dieter sofre logo que é capturado pelos vietcongues, por exemplo.) O corpo de Christian Bale acumula em si os traços de tudo que lhe acontece. A alteração física do ator (emagrecimento, barba crescente...) marca a transformação deste homem sobre o qual quase nada sabemos, transformação que se dará pelo aprendizado da resistência e pelo desenvolvimento de uma engenhosidade mirabolante numa situação extrema.

Podemos dizer, portanto, que o verdadeiro drama herzoguiano manifesta-se no nível da psique, na confrontação das elaborações mentais do homem com a força bruta existente na natureza. (Duane, o companheiro de cativeiro, não apresenta a mesma resistência de Dieter e enlouquece paulatinamente.) E é precisamente isso que permite o cineasta flertar com o gênero e fazer de seu relato um gráfico de apreensão ininterrupta. Impulsos físicos e mentais encontram-se conjugados nas ações empreendidas pelo personagem. Em determinado momento, não sabemos mais o que em Dieter é sofisticação estratégica e o que é instinto básico de sobrevivência; tudo parece fundir-se no trabalho permanente de seu corpo para resistir um pouco mais. Só um pouco mais.

Esta intrincada (e discreta) fusão perceptiva presente em O Sobrevivente faz dele um filme profundamente monocórdio, em que tudo fecha-se em torno da mesma obsessão: a forma com que Dieter foi capaz de suportar tamanha provação. As imagens de O Sobrevivente são como a resposta da imaginação de Herzog ao relato de Dieter em O Pequeno Dieter Precisa Voar. O fascínio que a fala deste criava no outro filme e a magnetização afetiva que a narrativa heróica de si mesmo provocava transfiguram-se no rosto expressivo de Bale e na obstinada postura de enfrentamento do personagem. Toda a fixação maníaca de Dieter com o vôo sai de cena e é como se assistíssemos apenas o pôr-em-obra de seu esforço de sobrevivência. Através de sua encenação, Herzog procura restituir cada pequena batalha para melhor entender a guerra inteira.

Tatiana Monassa

 

 





Para Dieter e Duane, prisioneiros dentro da cela e dentro da selva, os vietcongues representam a ameaça humana em consonância com a ameaça natural.