Com suas corredeiras e cobras
venenosas, escaladas e quedas-livres, Os
Porralokinhas parece querer devolver o cinema brasileiro de aventura a seu
lugar de origem e de direito, a floresta, a mata fechada, lá onde já estivemos
em tantos filmes dos Trapalhões e do próprio Tio Maneco, que é resgatado aqui. E
o quanto se pode dizer desta disposição de Lui Farias se colocarmos ao lado
dela o bordão mais repetido ao longo da trama, um sempre deslocado "quem é de
Copacabana tira tudo de letra!". O bordão se justifica na personagem da
muambeira do bairro carioca que acaba se metendo na aventura amazônica sem
querer, mas ainda assim sua recorrência nunca deixa de soar como a vitória da
cidade sobre o ambiente natural, da diversão fabricada sobre a diversão espontânea
e, no fim, como a conclusão da impossibilidade desse cinema que Os Porralokinhas aparentemente quer
recuperar, mas que, muito conscientemente, reconhece não caber mais dentro de
suas ambições.
Lui Farias interpretara o
menino Beto em As Aventuras com Tio
Maneco, filme de 1971 dirigido por Flávio Migliaccio e produzido por
seu
pai, Roberto Farias, início de um longo trajeto do personagem amalucado
pelo
cinema e pela televisão. A idéia de um retorno afetivo ao passado é explícita,
e não por acaso aquele mesmo Beto agora é o pai de duas crianças
que insistem
toda noite por histórias de ninar que narrem as aventuras da figura mítica
em que se transformou o Maneco. Em pequenos trechos do filme antigo inseridos
na
nova trama, Maneco e seus três sobrinhos parecem realmente figuras de um
outro planeta
cinematográfico, um lugar sem as obrigações do politicamente
correto, sem juízes
como Siro Darlan para importuná-los, onde um sujeito de meia-idade pode
tranqüilamente expor a vida de crianças a riscos incríveis
e no
fim do dia
ainda ganhar um sorriso de todos eles, enquanto comem a carne da onça
que
acabaram de caçar (o couro do animal esticado num graveto, e a carcaça
dela
exposta no meio do quadro, uma imagem inviável num filme infantil de hoje,
e que Os Porralokinhas, bastante atrevido,
insere entre suas próprias imagens).
Começando pelo próprio título, Os Porralokinhas parece querer se
alimentar desta mesma inconseqüência que movia o filme dos anos 70, e não será
com surpresa que veremos, por exemplo, numa de suas primeiras imagens o close de um revólver na mão do vilão da história (isto no mundo em que as
pistolas dos policiais de E.T. foram
digitalmente substituídas por walkie-talkies), ou ainda trocadilhos feitos com
o nome da mulher do vilão, Guerda, chamada "sem querer" de Josta, para
gargalhada geral. Mesmo as aventuras propriamente ditas parecem um tanto
arriscadas demais, os atores-mirins pulando de lá para cá, discutindo à beira
de precipícios, percorrendo rios caudalosos em botes infláveis, dando a
impressão de que o tempo gasto com as autorizações na justiça para conseguir
submeter as crianças a todo esse périplo de emoções certamente foi maior que o
tempo gasto produzindo os efeitos especiais mal-ajambrados do filme. Não faltarão
índios, cristais encantados, vilões mutantes, maldições, coincidências reveladoras,
o pacote todo.
Mas tudo isso poderia muito
bem passar de uma invenção, como o próprio Tio Maneco. No momento em que
encontramos os novos parceirinhos de aventura do personagem, ele foi
providencialmente recortado de uma foto, a única que poderia provar sua existência.
Sua imagem foi apagada, sua realidade é posta em dúvida, e por mais que tenha
sua memória honrada em Os Porralokinhas,
Lui Farias reconhece que a presença de Maneco neste cinema brasileiro de que
seu filme faz parte (produto da Globo Filmes, veículo para jovens atores populares da
televisão, base de testes para experimentos ainda rudimentares com CGI e
efeitos diversos, concorrência para outros filmes estrelados por apresentadoras
loiras), enfim, essa presença não pode ser mais que uma lenda mesmo. Flávio
Migliaccio é reduzido a um coadjuvante de luxo, sem dispor de um único momento para
apresentar de fato seu personagem às novas platéias, e o filme é entregue nas mãos
de Heloisa Périssé, executando o mesmo tipinho carioca esperto que repete há
anos em diversos papéis na Globo, tido como "garantia maior" de simpatia pelas platéias que um velho de barba que ninguém com menos de 40 anos reconhece.
Estas são experiências já
domadas demais, e não se precisa ir muito longe para "brincar de
floresta" (por
coincidência, o mesmo shopping em que vi o filme tinha como atração
em sua
praça principal um cenário "radical" desses para crianças,
cheio de serragem no
chão e uma meia dúzia de cordas e cipós onde os pequenos
poderiam se
empoleirar à vontade). Os Porralokinhas ainda
está muito distante, por exemplo, de Tainá
2 – A
Aventura Continua, sucessor direto desse cinema de aventura representado
pelo
Maneco original. Tudo é feito com uma pressa incrível, sem cuidado
especial com
a construção de personagens ou a articulação de uma
linguagem específica para a
ação (e não apenas na sucessão de planos
gerais
que simplesmente nos mostram o que
está acontecendo, sem que a câmera nunca ouse interagir com isso).
Mais distância
ainda há de Castelo Rá-Tim-Bum – O
Filme,
melhor filme infantil da retomada, sobretudo por Farias
tentar submeter os efeitos especiais à história quase como uma
obrigação
para a atração do espectador mirim, e nunca como parte da própria
natureza da
narrativa que se apresenta ali. E, por tudo isso, é com uma consciência
quase resignada
que Os Porralokinhas terminará nos
dizendo
que tudo o que vimos até ali não passava de um sonho. E pensar
numa produção
popular de gênero que consiga ao mesmo tempo reatar relações
com o passado e
ainda pensar suas próprias bases dentro do novo cenário que se
apresenta talvez
ainda seja exatamente isso, um sonho.
Rodrigo de Oliveira
|