OS PORRALOKINHAS
Lui Farias, Brasil, 2007

Com suas corredeiras e cobras venenosas, escaladas e quedas-livres, Os Porralokinhas parece querer devolver o cinema brasileiro de aventura a seu lugar de origem e de direito, a floresta, a mata fechada, lá onde já estivemos em tantos filmes dos Trapalhões e do próprio Tio Maneco, que é resgatado aqui. E o quanto se pode dizer desta disposição de Lui Farias se colocarmos ao lado dela o bordão mais repetido ao longo da trama, um sempre deslocado "quem é de Copacabana tira tudo de letra!". O bordão se justifica na personagem da muambeira do bairro carioca que acaba se metendo na aventura amazônica sem querer, mas ainda assim sua recorrência nunca deixa de soar como a vitória da cidade sobre o ambiente natural, da diversão fabricada sobre a diversão espontânea e, no fim, como a conclusão da impossibilidade desse cinema que Os Porralokinhas aparentemente quer recuperar, mas que, muito conscientemente, reconhece não caber mais dentro de suas ambições.

Lui Farias interpretara o menino Beto em As Aventuras com Tio Maneco, filme de 1971 dirigido por Flávio Migliaccio e produzido por seu pai, Roberto Farias, início de um longo trajeto do personagem amalucado pelo cinema e pela televisão. A idéia de um retorno afetivo ao passado é explícita, e não por acaso aquele mesmo Beto agora é o pai de duas crianças que insistem toda noite por histórias de ninar que narrem as aventuras da figura mítica em que se transformou o Maneco. Em pequenos trechos do filme antigo inseridos na nova trama, Maneco e seus três sobrinhos parecem realmente figuras de um outro planeta cinematográfico, um lugar sem as obrigações do politicamente correto, sem juízes como Siro Darlan para importuná-los, onde um sujeito de meia-idade pode tranqüilamente expor a vida de crianças a riscos incríveis e no fim do dia ainda ganhar um sorriso de todos eles, enquanto comem a carne da onça que acabaram de caçar (o couro do animal esticado num graveto, e a carcaça dela exposta no meio do quadro, uma imagem inviável num filme infantil de hoje, e que Os Porralokinhas, bastante atrevido, insere entre suas próprias imagens).

Começando pelo próprio título, Os Porralokinhas parece querer se alimentar desta mesma inconseqüência que movia o filme dos anos 70, e não será com surpresa que veremos, por exemplo, numa de suas primeiras imagens o close de um revólver na mão do vilão da história (isto no mundo em que as pistolas dos policiais de E.T. foram digitalmente substituídas por walkie-talkies), ou ainda trocadilhos feitos com o nome da mulher do vilão, Guerda, chamada "sem querer" de Josta, para gargalhada geral. Mesmo as aventuras propriamente ditas parecem um tanto arriscadas demais, os atores-mirins pulando de lá para cá, discutindo à beira de precipícios, percorrendo rios caudalosos em botes infláveis, dando a impressão de que o tempo gasto com as autorizações na justiça para conseguir submeter as crianças a todo esse périplo de emoções certamente foi maior que o tempo gasto produzindo os efeitos especiais mal-ajambrados do filme. Não faltarão índios, cristais encantados, vilões mutantes, maldições, coincidências reveladoras, o pacote todo.

Mas tudo isso poderia muito bem passar de uma invenção, como o próprio Tio Maneco. No momento em que encontramos os novos parceirinhos de aventura do personagem, ele foi providencialmente recortado de uma foto, a única que poderia provar sua existência. Sua imagem foi apagada, sua realidade é posta em dúvida, e por mais que tenha sua memória honrada em Os Porralokinhas, Lui Farias reconhece que a presença de Maneco neste cinema brasileiro de que seu filme faz parte (produto da Globo Filmes, veículo para jovens atores populares da televisão, base de testes para experimentos ainda rudimentares com CGI e efeitos diversos, concorrência para outros filmes estrelados por apresentadoras loiras), enfim, essa presença não pode ser mais que uma lenda mesmo. Flávio Migliaccio é reduzido a um coadjuvante de luxo, sem dispor de um único momento para apresentar de fato seu personagem às novas platéias, e o filme é entregue nas mãos de Heloisa Périssé, executando o mesmo tipinho carioca esperto que repete há anos em diversos papéis na Globo, tido como "garantia maior" de simpatia pelas platéias que um velho de barba que ninguém com menos de 40 anos reconhece.

Estas são experiências já domadas demais, e não se precisa ir muito longe para "brincar de floresta" (por coincidência, o mesmo shopping em que vi o filme tinha como atração em sua praça principal um cenário "radical" desses para crianças, cheio de serragem no chão e uma meia dúzia de cordas e cipós onde os pequenos poderiam se empoleirar à vontade). Os Porralokinhas ainda está muito distante, por exemplo, de Tainá 2
A Aventura Continua, sucessor direto desse cinema de aventura representado pelo Maneco original. Tudo é feito com uma pressa incrível, sem cuidado especial com a construção de personagens ou a articulação de uma linguagem específica para a ação (e não apenas na sucessão de planos gerais que simplesmente nos mostram o que está acontecendo, sem que a câmera nunca ouse interagir com isso). Mais distância ainda há de Castelo Rá-Tim-BumO Filme, melhor filme infantil da retomada, sobretudo por Farias tentar submeter os efeitos especiais à história quase como uma obrigação para a atração do espectador mirim, e nunca como parte da própria natureza da narrativa que se apresenta ali. E, por tudo isso, é com uma consciência quase resignada que Os Porralokinhas terminará nos dizendo que tudo o que vimos até ali não passava de um sonho. E pensar numa produção popular de gênero que consiga ao mesmo tempo reatar relações com o passado e ainda pensar suas próprias bases dentro do novo cenário que se apresenta talvez ainda seja exatamente isso, um sonho.

Rodrigo de Oliveira

 

 






Tio Maneco em Os Porralokinhas: memória afetiva a ser
recuperada, mas coadjuvante de luxo num cinema
que não o comporta mais.