PODECRER!
Arthur Fontes, Brasil, 2007

Pouco tempo antes de Podecrer! ser lançado nos cinemas, surgiu na internet uma série de videozinhos caseiros, produzidos no set do filme, ao que tudo indica pelos próprios atores. São trechos curtos em que os mesmos se exibem para uma câmera digital fazendo palhaçadas, rindo um do outro, imitando gente famosa (o melhor deles, com Marcelo Adnet e Silvio Guindane se fazendo passar por José Wilker e Lírio Ferreira). Não há nada ali que indique qualquer jogada de marketing ou peça promocional bem planejada – até porque não são poucas as grosserias e saias-justas em que os atores se metem. Fossem pessoas desconhecidas, estes videozinhos talvez passassem despercebidos no mar de lixo "pessoal" do YouTube. O processo não parece ter sido diferente de qualquer outro desses tantos "flagrantes da vida real": um amigo tem um celular com câmera, registra os outros amigos fazendo idiotices engraçadas, num misto de espontaneidade e ingenuidade únicas, e então deixa o material disponível ao mundo. Isso que se coloca na frente dessa câmera de celular não é muito diferente daquilo que a personagem de Maria Flor (a cineasta do grupo) tenta capturar com sua camereta Super-8, e nada disso também é diferente daquilo que Arthur Fontes quer trazer para Podecrer!. Nem a encenação, nem a vontade de "realidade", nem muito menos a eternização do banal, o que há de absurdamente diverso entre estas imagens é justamente o dispositivo de registro.

E nisso Podecrer! é certamente o mais bem-sucedido produto da cepa Conspiração Filmes e seus derivados. Entende o cacoete publicitário não como mania do realizador, ou como preguiça de se pensar dentro dos limites do cinema como arte específica, ou mesmo como maneira de trazer ao cinema "revoluções" que ele certamente nunca pediu para si (sobretudo porque elas já aconteceram algumas décadas antes). Fontes sabe que o olhar publicitário é um dispositivo como qualquer outro, uma fôrma que condiciona tão absolutamente aquilo sobre o qual decide se debruçar que, se organizado de maneira inteligente, pode até permitir alguma vida ali dentro – limitada, é verdade, mas não menos viva por isso. A publicidade tinha tudo para ser, em relação ao cinema brasileiro contemporâneo, aquilo que a câmera na mão foi para o Cinema Novo, ou o maneirismo para a geração dos anos 80. O botão de start para uma série de outras experiências, mas nunca o destino de uma cinematografia. Deu no que deu: Gêmeas, O Homem do Ano e Redentor.

Voltemos aos princípios: mais que um produto, é preciso vender uma idéia, um modo de vida que conquiste o potencial consumidor/espectador para uma longa lista de compras, e não para o imediatismo do lançamento do último verão. Podecrer! é a ponta de um assustador iceberg recente que tenta resgatar os 80 como a década da inocência perdida, do "como era gostoso o nosso glitter", um revival permanente de bandas de rock merecidamente terminadas e tosqueiras puxadas do populacho televisivo. Se comunga dessa mesma onda, Arthur Fontes também sabe melhor se posicionar nela. Não interessa tomar partido dos dejetos, mas estar lá no momento em que a coisa acontece pela primeira vez. A banda de escola formada em Podecrer! não é a reverberação do Rock Brasil que estava estourando nas rádios, mas sim uma partícipe do movimento, nascendo junto de todas as outras. Suas dúvidas e indagações, embrulhadas nesse falso frescor que o dispositivo publicitário empresta à cena, soam sempre muito mais bem resolvidas que as da banda que se formava em Cazuza – O Tempo Não Pára, por exemplo, onde todo o peso do tributo à memória não conseguia esconder a completa moralização do registro.

É mais que um prato cheio para a direção de arte, e mais que uma desculpa para o fotógrafo granular a imagem tentando emular a sujeira de uma década. Mais que a reprodução, o real interesse de Podecrer! é o exercício de museologia. Está lá nos créditos finais, onde cada um dos objetos típicos dos anos 80 vão sendo apresentados junto a uma legenda esperta, mas desde antes, na aparição nunca discreta destes mesmos objetos durante as cenas, provocando sempre um "nossa, lembra disso!?" do espectador saudosista. Há um esforço evidente em lidar com indícios, com aquilo "que esteve lá", que participou, de alguma maneira, desse espírito que agora se quer vender. Boa parte do sucesso dessa empreitada se deve à turma de atores, todos eles bastante entregues ao bem-viver, ao curtir espontâneo e desmedido dessa juventude específica. Todos eles bastante parecidos com aqueles videozinhos no YouTube, onde aparecem vestidos da geração anos 2000 que de fato são, o que, bem verdade, só joga contra toda a armação oitentista de Podecrer!. Os dramas são os mesmos, os caminhos tomados por cada um idem, talvez mude-se uma gíria aqui e outra ali, mas em essência não há nada que Arthur Fontes perceba no grupo de jovens do filme que não pudesse ser atribuído a qualquer moleque de agora. Sobra mesmo essa vontade de museu, quase fetichista, uma coleção completa como nunca antes, mas ainda assim bastante frágil.

Fragilidade que está na própria base de Podecrer!. Porque era possível fazer este grande filme-galeria de uma época, e levar às últimas conseqüências a reconstrução "com provas" desse momento específico do país, não fosse a obrigação da importância narrativa, com a qual Fontes se embaralha completamente. Se a urgência publicitária, os 30 segundos que se tem disponíveis para vender uma idéia, funcionam muito bem com toda a pilha de esquetes que o filme elenca (precisamos apenas de quatro adolescentes, um punhado de cogumelos, um laboratório escolar de química e o som de "Os Alquimistas Estão Chegando" do Jorge Bem para termos a noção bastante clara do que o filme entende por "loucos anos 80"), essa mesma estratégia não fará mais do que constranger ao ridículo toda dramaticidade de que Podecrer! eventualmente terá que se revestir. Uma gravidez indesejada, a desilusão amorosa, o clima soturno de uma clínica de aborto, o exílio da mãe e o desespero do pai, tudo isso passa pela narrativa como se apenas estivessem sendo cumpridas regras de um script ao qual não se dá muita importância.

E que o filme termine com um pequeno clipe do tipo "que fim levou?", explicando a trajetória adulta de cada um daqueles jovens que se apresentaram até ali, não deixa de soar bastante incongruente. Para além do que cada um pudesse contribuir para essa peça de propaganda em longa-metragem, com suas idiossincrasias juvenis e seus arroubos tragicômicos, em nenhum momento Podecrer! nos sinalizara que se importava realmente com o que aconteceria a estes personagens uma vez que eles abandonassem o posto de testemunhas da História e passassem a ser, vinte anos depois, consumidores nostálgicos de Paquitas cover e Silvinho Blau-Blau pelas boates cafonas da cidade. Importante era saber como reagiriam aqueles meninos e meninas dentro do circo de época armado para suas aventuras. Divertidos e espontâneos, mas também plastificados, industrializados, recriados em laboratório, e facilmente descartáveis: isso pelo menos Arthur Fontes nunca escondeu que faria. Se compramos ou não, aí vai da cabeça de cada cliente.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Os "alquimistas" de Podecrer!: exercício de museologia