Pouco tempo antes de Podecrer! ser
lançado nos cinemas, surgiu na internet uma série de
videozinhos caseiros, produzidos no set do filme, ao
que tudo indica pelos próprios atores. São trechos
curtos em que os mesmos se exibem para uma câmera
digital fazendo
palhaçadas, rindo um do outro, imitando gente famosa (o melhor deles, com Marcelo
Adnet e Silvio Guindane se fazendo passar por José Wilker e Lírio Ferreira).
Não há nada ali que indique qualquer jogada de marketing ou peça promocional
bem planejada – até porque não são poucas as grosserias e saias-justas em que
os atores se metem. Fossem pessoas desconhecidas, estes videozinhos talvez passassem
despercebidos no mar de lixo "pessoal" do YouTube.
O processo não parece ter sido diferente de qualquer outro desses tantos "flagrantes
da vida real": um amigo tem um celular com câmera, registra os outros amigos
fazendo idiotices engraçadas, num misto de espontaneidade e
ingenuidade únicas, e então deixa o material disponível ao mundo. Isso que se
coloca na frente dessa câmera de celular não é muito diferente daquilo que a
personagem de Maria Flor (a cineasta do grupo) tenta capturar com sua camereta
Super-8, e nada disso também é diferente daquilo que Arthur Fontes quer trazer
para Podecrer!. Nem a encenação, nem
a vontade de "realidade", nem muito menos a eternização do banal, o que há de
absurdamente diverso entre estas imagens é justamente o dispositivo de
registro.
E nisso Podecrer! é certamente o mais
bem-sucedido produto da cepa Conspiração Filmes e seus derivados. Entende
o cacoete publicitário não como mania do realizador, ou como
preguiça de se pensar dentro dos limites do cinema como arte específica, ou mesmo
como maneira de trazer ao cinema "revoluções" que ele certamente nunca pediu
para si (sobretudo porque elas já aconteceram algumas décadas antes). Fontes
sabe que o olhar publicitário é um dispositivo como qualquer outro, uma
fôrma que condiciona tão absolutamente aquilo sobre o qual decide se debruçar
que,
se organizado de maneira inteligente, pode até permitir alguma vida ali dentro – limitada, é verdade,
mas não menos viva por isso. A publicidade tinha tudo
para ser, em relação ao cinema brasileiro contemporâneo, aquilo que a câmera
na
mão foi para o Cinema Novo, ou o maneirismo para a geração dos anos 80. O botão
de start para uma série de outras
experiências, mas nunca o destino de uma cinematografia. Deu no que deu: Gêmeas, O Homem do Ano e Redentor.
Voltemos aos princípios: mais que um produto, é preciso
vender uma idéia, um modo de vida que conquiste o potencial consumidor/espectador
para uma longa lista de compras, e não para o imediatismo
do lançamento do último verão. Podecrer! é a
ponta de um assustador iceberg recente que tenta resgatar os 80 como a
década da inocência perdida, do "como era gostoso o nosso glitter", um revival permanente de bandas de rock merecidamente
terminadas e tosqueiras puxadas do populacho televisivo. Se comunga dessa mesma
onda, Arthur Fontes também sabe melhor se posicionar nela.
Não interessa tomar partido dos dejetos, mas estar lá no momento em que a coisa
acontece pela primeira vez. A banda de escola formada em Podecrer! não é a reverberação do Rock Brasil que estava estourando
nas rádios, mas sim uma partícipe do movimento, nascendo junto de todas as outras.
Suas dúvidas e indagações, embrulhadas nesse falso frescor que o dispositivo
publicitário empresta à cena, soam sempre muito mais bem resolvidas que as da
banda que se formava em Cazuza – O Tempo
Não Pára, por exemplo, onde todo o peso do tributo à memória não conseguia
esconder a completa moralização do registro.
É mais que um prato cheio para a direção de arte, e mais que uma desculpa para
o fotógrafo granular a imagem tentando emular a sujeira de
uma década. Mais que a reprodução, o real interesse de Podecrer! é o exercício de museologia. Está lá nos créditos finais,
onde cada um dos objetos típicos dos anos 80 vão sendo apresentados junto a uma
legenda esperta, mas desde antes, na aparição nunca discreta destes mesmos objetos
durante as cenas, provocando sempre um "nossa, lembra disso!?" do espectador
saudosista. Há um esforço evidente em lidar com indícios, com aquilo "que esteve
lá", que participou, de alguma maneira, desse espírito que agora se quer vender.
Boa parte do sucesso dessa empreitada se deve à turma de atores, todos eles bastante
entregues ao bem-viver, ao curtir espontâneo e desmedido
dessa juventude específica. Todos eles bastante parecidos com aqueles videozinhos
no YouTube, onde aparecem vestidos da geração anos 2000 que de fato
são, o que, bem verdade, só joga contra toda a armação oitentista de Podecrer!. Os dramas são os mesmos, os
caminhos tomados por cada um idem, talvez mude-se uma gíria aqui e outra ali,
mas em essência não há nada que Arthur Fontes perceba no grupo de jovens do filme
que não pudesse ser atribuído a qualquer moleque de agora. Sobra mesmo essa vontade
de museu, quase fetichista, uma coleção completa como nunca antes, mas ainda
assim
bastante
frágil.
Fragilidade que está na própria base de Podecrer!. Porque era possível fazer este
grande filme-galeria de uma época, e levar às últimas conseqüências a
reconstrução "com provas" desse momento específico do país, não fosse a
obrigação da importância narrativa, com a qual Fontes se embaralha completamente.
Se a urgência publicitária, os 30 segundos que se tem
disponíveis para vender uma idéia, funcionam muito bem com toda a pilha de esquetes
que o filme elenca (precisamos apenas de quatro adolescentes, um punhado de cogumelos,
um laboratório escolar de química e o som de "Os
Alquimistas Estão Chegando" do Jorge Bem para termos a noção bastante clara do
que o filme entende por "loucos anos 80"), essa mesma estratégia não fará mais
do que constranger ao ridículo toda dramaticidade de que Podecrer! eventualmente terá que se revestir. Uma gravidez indesejada,
a desilusão amorosa, o clima soturno de uma clínica de aborto, o
exílio da mãe e o desespero do pai, tudo isso passa pela narrativa como se apenas
estivessem sendo cumpridas regras de um script ao qual não se dá muita
importância.
E que o filme termine com um pequeno clipe do tipo "que fim
levou?", explicando a trajetória adulta de cada um daqueles jovens que se apresentaram
até ali, não deixa de soar bastante incongruente. Para além do que cada um pudesse
contribuir para essa peça de propaganda em longa-metragem, com suas idiossincrasias
juvenis e seus arroubos tragicômicos, em nenhum momento Podecrer! nos sinalizara que se importava
realmente com o que aconteceria a estes personagens uma vez que eles abandonassem
o
posto de testemunhas da História e passassem a ser, vinte anos depois, consumidores
nostálgicos de Paquitas cover e Silvinho Blau-Blau pelas boates cafonas
da cidade. Importante era saber como reagiriam aqueles meninos e meninas dentro
do circo de época
armado para suas aventuras. Divertidos e espontâneos, mas também plastificados,
industrializados, recriados em laboratório, e facilmente
descartáveis: isso pelo menos Arthur Fontes nunca escondeu que faria. Se compramos
ou não, aí vai da cabeça de cada cliente.
Rodrigo de Oliveira
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