PIAF - UM HINO AO AMOR
Olivier Dahan, La Môme, França/Reino Unido, 2007

A Edith Piaf a que temos acesso, através de seus discos e canções, é uma artista que trabalhou sempre na chave do arrebatamento. Esta impressão de grandeza, de uma intérprete maior-que-a-vida, não deixa de ser confirmada por Um Hino ao Amor. O que talvez exista aqui, e que nos desvie desta imagem que fazemos de Piaf a partir exclusivamente da arte que ela produziu, é uma composição constante entre o arrebatamento efetivo e a extrema fragilidade a partir da qual ele foi construído. Assim, a imagem inicial do filme de Olivier Dahan, que mostra um dos últimos shows de Piaf, exibe a cantora em franca decadência, e ela é muito menos moral (o pulso da artista que depende do contato do público para realizar seu trabalho no mundo está presente em toda a seqüência) que física. Este truque narrativo, bastante comum nos filmes biográficos, não é carregado de uma idéia de iconoclastia, onde se começa a escrutinar um artista/personalidade a partir de sua ruína apenas para que o sucesso de sua carreira se mostre mais espetacular quando chegar a hora de encená-lo. Ao contrário, é com a própria natureza icônica de Piaf que Um Hino ao Amor quer lidar, nunca por sua destruição, mas sobre aquilo que a construiu, que possibilitou que uma mulher tão debilitada entrasse para a história como a própria imagem da força.

Assim, a Piaf de Olivier Dahan e Marion Cotillard (é um desses casos de co-autoria entre diretor e atriz, sem dúvida) nunca é propriamente uma personagem. Acompanhamos seus dramas, o desejo biográfico estrito é evidente, há a criação de conseqüências entre um acontecimento trágico aqui e uma superação acolá, um desfile de coadjuvantes que embarcam na trama com objetivos narrativos bastante específicos, mas ainda assim o que de Piaf teremos nunca será mais que exatamente sua fisicalidade. Um Hino ao Amor é menos um filme destinado à memória doce daqueles que viveram ou puderam acompanhar a carreira da cantora enquanto ela acontecia do que uma tentativa de restituir a figura de Piaf às platéias posteriores, as que nunca tiveram a oportunidade de aliar a voz dos discos à pessoa a quem ela pertencia. Não existem no filme, por exemplo, flashbacks que partam de uma lembrança específica de Piaf. A estrutura que bagunça passado e presente através de uma montagem não-linear não se deve, em nenhum momento, a algo que Dahan queira atribuir às memórias da cantora. Por isso a impossibilidade do flashback em primeira pessoa: a mente de Piaf é um espaço em que nossa presença é vedada, e tudo o que ela pode nos oferecer é seu corpo.

Daí o tour-de-force a que Cotillard se submete, e a decisão de Dahan em transformar a história de Piaf numa trajetória de definhamento. Tanto quanto o melodrama, a que Um Hino ao Amor certamente se devota, parecem valer aqui as estratégias do novo cinema popular de ação francês, do qual Dahan é um participante bissexto (dirigiu Rios Vermelhos 2 – Anjos do Apocalipse), mas de cuja geração ele certamente toma partido. Seguindo uma idéia de essencialização da ação, emprestada dos cineastas da Hong Kong dos anos 80, este cinema francês de agora se dedica, antes de qualquer outra coisa, ao acontecimento. Filmar ação é registrar atos, e articulá-los de tal maneira (câmeras múltiplas, cortes dinâmicos) que toda inverossimilhança de que estão naturalmente revestidos não consiga nunca derrubar a ilusão de que o que vemos ali é um fato. Que se trate de uma biografia, onde tudo o que vemos supostamente aconteceu um dia (mesmo que muito seja ocultado ou ignorado), só torna Um Hino ao Amor ainda mais empenhado neste sentido.

Dahan responde a esta entrega física com um mesmo corpo-a-corpo entre Cotillard e a câmera, acompanhando solenidade com solenidade (os shows de Piaf são filmados como se fossem missas religiosas), mas também não negando sujeira quando é nela que a protagonista se encontra (as seqüências em que Piaf, ainda criança, anda pela rua atrás do pai, um contorcionista fracassado, ou sua infância no prostíbulo em que foi criada pela avó). Nem mesmo o virtuosismo de um longo e intricado plano-seqüência parece deslocado, uma vez que a decisão de fidelidade às manifestações de Piaf já fora tomada muito antes. No momento em que a cantora descobre que uma tragédia acabara de acontecer, e esta descoberta envolve a transformação radical de um espírito de felicidade numa tristeza irremediável, tudo acontecendo em pouquíssimos minutos, Dahan nos dá a entender que um corte, que o tempo perdido entre o desligar e o religar da câmera, poderiam nos fazer perder alguma reação de Piaf, um choro, uma mão trêmula, um grito desesperado, e isso significaria ignorar a única maneira a que este ícone se dispôs ao filme. Não é pouca coisa conseguir reverter uma situação que poderia parecer exploradora no registro mais digno que se possa fazer de uma mulher à beira do abismo.

Quando finalmente chegamos ao leito de morte de Edith Piaf, já temos uma idéia bastante sólida de sua trajetória de vida, daquilo que a formou, de todas as passagens que a tornaram aquela imagem que agora, finalmente, temos estabelecida em nosso imaginário. E, no entanto, pela primeira vez testemunhamos um trecho de sua memória íntima, imagens de sua própria cabeça as quais, até então, não tínhamos acessado. São dois pequenos momentos de sua vida, nunca mencionados no meio da avalanche de informações que o filme nos oferecera anteriormente e que, no entanto, transtornam completamente toda a impressão que o filme, com suas provas factuais e registros dos acontecimentos, nos fez crer ser verdadeira. Estivemos o tempo inteiro lidando com a exterioridade de Piaf, e bastam alguns minutos em seu interior para que uma outra mulher nos seja revelada. Mas, neste momento, a cantora morre e o filme acaba. Resta a apoteose final, momento mais que esperado e obviamente antecipado, mas que a habilidade de Dahan novamente consegue resgatar da cafonice e injetá-la de muita integridade. É o momento em que Piaf canta, pela primeira vez, "Non, Je Ne Regrette Rien", música-resumo de sua vida, como ela mesmo afirma. E mais importante do que o "eu não me arrependo de nada" que canta com uma certeza emocionante, o que parece dizer respeito à Um Hino ao Amor são os versos que inventariam todo um passado de coisas boas e ruins para dizer que é disso, da soma do visível e do invisível, que se constitui a pessoa que Piaf é. Olivier Dahan e Marion Cotillard souberam lidar com esta visualidade de maneira realmente admirável. Mas o maior valor de Um Hino ao Amor talvez seja este reconhecimento de que não se fez soma nenhuma ali, de que há um mundo de intimidades que o filme não se atreveu a remexer, porque a Piaf invisível, a que fala em primeira pessoa, a que tem um olhar próprio sobre sua história, a que tem acessos memoriais no leito de morte, esta segue sendo inalcançável para o diretor, para a atriz e para nós. E é tão melhor que assim o seja.

Rodrigo de Oliveira

 

 





Marion Cotillard como Edith Piaf: a encarnação puramente corporal, diante da impossibilidade de qualquer metafísica