Se
os créditos de Nunca É Tarde
Para Amar nos apresentam a uma espécie de clipe-total
de um canal
de documentários à Discovery, indo das imagens de animais selvagens copulando,
plantas germinando, gente de todo tipo fazendo todo tipo de coisa, até chegar
a
seqüências de pessoas sendo submetidas à cirurgia plástica, médicos desenhando
com caneta sobre corpos flácidos, gordura sendo sugada; e, mais ainda, se para
dar sentido a toda essa enxurrada de signos surge uma improvável Tracey Ullman,
encarnando a própria Mãe Natureza, é porque Amy Heckerling sabe que as dores
e
as delícias de seu filme se fundam numa questão de biologia pura.
Heckerling dirigiu duas das obras-primas sobre a juventude
americana das últimas décadas do século passado, Picardias Estudantis nos anos 80 e As Patricinhas de Beverly Hills nos anos 90. No filme de 1982 os
personagens ainda viviam a ressaca pós-hippie e a iminência pré-yuppie, expressa,
sobretudo, no surfista interpretado por Sean Penn, enquanto o filme de 1995 carregava
a inocência fútil deste intervalo da História (o período entre a queda do Muro
e as Torres Gêmeas, seguindo uma idéia de Phillip Roth).
O que tornava tão preciso e tão justo o olhar de Heckerling sobre estas
gerações distintas entre si era exatamente isto: a própria existência de uma
geração compreendida como tal, onde a experiência da juventude era acompanhada
por uma série de características que lhe pertenciam particularmente e que só poderiam
ser vividas por quem tivesse aquela idade e participasse conjuntamente de todas
as transformações típicas daquele momento. Não à toa, ambos os filmes dependiam
do horizonte da vida adulta para poder mergulhar ainda mais verticalmente no
fim da adolescência, onde sempre encontrávamos os personagens
ou à beira do amadurecimento forçado (a gravidez de Jennifer Jason Leigh em Picardias) ou confrontados com a necessidade
de expandir sua compreensão da vida (a tensão constante entre o escapismo de
Alicia Silverstone e a busca de profundidade de Paul Rudd, divertidamente expressa
na briga envolvendo as músicas do Radiohead em Patricinhas).
Assim, que Nunca É Tarde Para Amar comece
já com esta lição evolutiva dada pela Mãe Natureza,
inconformada com a subversão da ordem natural da vida pelos constantes avanços
da ciência médica e da biotecnologia, é uma espécie de lava-mãos de Heckerling.
Se a juventude, tal como ela a encontrou 20 anos antes, talvez ainda se faça
presente,
o
que desapareceu foram os jovens de fato. Impossibilitada de fazer um terceiro
filme
sobre uma
geração pós-adolescente, agora a dos anos 2000, simplesmente porque
esta geração não existe, o trabalho que antes era o de registro da pulsação de
um grupo específico de pessoas passa agora a ser uma espécie de painel
melancólico das manifestações precoces ou tardias de um espírito perdido na roda
da transformação biológicas e comportamentais do mundo.
Nada parece estar no lugar que deveria. De um lado temos a filha de 10 anos de
idade que se veste e porta como uma adulta. Do outro, a mãe
quarentona que não se conforma com a perda da juventude, e por isso não só abusa
das operações plásticas e tratamentos estéticos de toda a sorte como
também tenta reviver sua adolescência no contato com a filha (não raro, veremos
situações em que é a filha que parece criar e cuidar da mãe, e não o
contrário). A possibilidade de um relacionamento com um homem muito mais novo
só aumentará esta sensação de suspensão temporal da mãe. Suspensão essa já operada
no programa de tevê do qual ela é a criadora, típico sitcom americano em que o ambiente do high school é povoado de adolescentes
interpretados por atores com o dobro da idade de seus papéis. Nem mesmo os Ramones
sobreviveram à plastificação: se seguem irritando os ouvidos mais
sensíveis, agora aparecem travestidos de trilha sonora para um jogo de videogame
infantil, onde “I Wanna Be Sedated” se transforma num ruído que não guarda quase
lembrança nenhuma do que seja a música original.
Este tipo de observação sobre os novos parâmetros de relação das pessoas com
seu próprio corpo e mentalidade aparece em Nunca É Tarde Para Amar sempre num tom entre a conformação e a
acidez do comentário social, e Heckerling sabe equilibrar muito bem
estas duas porções. Mas há uma trama ali a ser levada adiante, e ela não
depende
apenas de comentários, mas de narrativa mesmo, e aí o filme se complica profundamente.
A própria idéia de que a grande questão em jogo é a possibilidade de um namoro
entre pessoas com grande diferença de idade é frágil, não se sustenta – e a diretora
sabe bem disso. Sempre que dedicada às
picuinhas habituais neste tipo de relação, que envolve poder, posição social
e
uma série de personagens coadjuvantes cuja única função é bagunçar o coreto da
trama com falsas ameaças à paz dos protagonistas, Nunca É Tarde Para Amar derrapa feio.
Aquele elo perdido entre a infância e a vida adulta não está localizado no namoro
entre Rosie e Adam (ainda que Paul Rudd faça uma
verdadeira ginástica interpretativa para justificar a importância que a
filiação à comédia romântica atribui a seu personagem). Incapaz de observar o
fim de um recorte geracional sem buscar alguma outra dinâmica comportamental
que
venha eventualmente ocupar seu lugar, Heckerling demora muito, mas finalmente
nos
informa, lá pelas seqüências finais, que Nunca É Tarde
Para Amar pretende mesmo é promover a reconciliação entre estes dois grupos
de pessoas que seguiram existindo mesmo depois que o jovem, tal
como o conhecíamos, morreu. Izzie, a filhinha que não quer mais brincar de Barbie
e que já negocia, aos 10 anos, uma idade máxima para poder transar pela primeira
vez, e Rosie, a mãe 30 anos mais velha mas que, ainda assim, se vê às voltas
com as dúvidas em relação às suas próprias transas. É um novo tipo de
interação, que todas as obrigações narrativas do filme impedem Heckerling de
observar mais atentamente. Mas, ainda assim, está lá este novo estatuto da juventude.
Ele não envolve cirurgias plásticas ou sorrisos conservador em
formol, mas tão simplesmente a disposição, ingênua e ao mesmo tempo revigorante,
em mergulhar de cabeça nas questões que a vida nos apresenta, sem se importar
no quão idiotas isso nos fará parecer. Sorte nossa que haverá sempre alguém como
Heckerling disposta a transformar este ridículo num retrato
repleto de carinho.
Rodrigo de Oliveira
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