Se Leões e Cordeiros fosse filmado
no Brasil, talvez pudesse ser um filme do Arnaldo
Jabor de hoje (esse dos comentários
políticos na tevê), um filme da reconciliação entre
o passado militante e o
presente "esclarecido": aquele discurso do velho intelectual de
esquerda que sabe-se acomodado, mas que ainda assim não resiste em dizer
a todo mundo, como se fosse uma verdade secreta à qual só ele tem
acesso,
que o
"povo brasileiro" (ou americano, no caso do Redford) é
assim-e-assado, denunciando tudo-isso-que-está-aí, com os dois
pés fincados na
obviedade e na certeza de que ninguém filma melhor a elegância do
que aquele
que, um dia, já se meteu em filmes mais sujos e grossos só para
seguir o
comportamento do grupo de que fazia parte.
Os piores momentos de Leões e Cordeiros acontecem
sempre que Redford tenta disfarçar esta sua posição parcialíssima
e
forjar um grande painel da verdade totalizante. Uma jornalista liberal consegue
finalmente uma entrevista exclusiva com o senador playboy, republicano
em ascensão
no partido, e no momento em que ele lhe revela um novo plano de ataque às
forças de resistência afegãs, um corte nos joga no meio da
operação de guerra,
com dois bons soldados sendo submetidos ao perigo por conta de um erro de
estratégia. Um terceiro foco narrativo do filme mostrará o embate
entre um
velho professor de esquerda (papel de Redford, é claro) e um jovem
aluno seu, inteligente mas completamente irresponsável com seus próprios
talentos. Para arrebanhar mais este estudante para seu projeto de transformação
do
país (do qual ele próprio já está cansado demais
para levar adiante), o
professor traz à memória a figura de dois ex-alunos seus, tão
inteligentes
quanto este aqui, mas que decidiram de fato fazer algo pelo país. Alistaram-se
voluntariamente, foram para a guerra, e agora coincidentemente ocupam o segundo
foco narrativo do filme, definhando no deserto com ferimentos à bala enquanto
quatro pessoas teorizam a guerra do outro lado do mundo. Três situações
dramáticas
ligadas entre si, acontecendo simultaneamente, e assim Leões e Cordeiros nos quer dizer que a + b + c = América
atual. Fim
da lição.
Mas há um momento
em que o cinismo é abandonado em nome de alguma sinceridade de pensamento. É quando
termina todo o esforço de análise política verborrágica digna de um quadro do
Jornal da Globo (Jabor não fora mencionado por piada, simplesmente), e Redford
decide, enfim, dar nome e rosto aos bois que, até agora, apenas carinhosamente
insinuava. Os três personagens adultos recebem do filme planos sempre contemporizadores,
sempre bastante articulados, se movendo e se exibindo enquanto dominadores de
uma retórica infalível (mesmo que a jornalista de Meryl Streep reconheça suas
fraquezas enquanto apoiadora automática de uma guerra que agora combate, seu mea culpa é pura consciência e firmeza
de princípios), todos muito à vontade no teatro de verdades que armam. Aos três
personagens jovens, no entanto, Leões e
Cordeiros oferecerá planos sempre bastante enrijecidos, sufocantes,
imobilizadores. A própria condição em que os dois soldados nos são apresentados
deixa isto claro: numa seqüência estão de pé diante da classe de aula cuspindo
uma teoria torta sobre a guerra, na seguinte já estão paralisados por ferimentos
em pleno campo de batalha. Leões e
Cordeiros está atirando contra um alvo específico, e ele certamente não é a
própria consciência "democrática" de Redford, nem muito menos o
salvo-conduto que o filme dá ao senador republicano pró-guerra ("afinal,
todos nós erramos, políticos, jornalistas, professores universitários
ex-ativistas").
É um plano específico,
realmente impactante e poderoso, do rosto do jovem relapso que Redford passou
o filme inteiro tentando catequizar, sem sucesso. De volta à casa, tudo parecia
continuar como antes, jogos de videogame, cerveja com os colegas de quarto,
vagabundagem. Mas uma reportagem na tevê sobre a tal missão fracassada
no Afeganistão
finalmente desperta algo no menino. Felizmente, Leões e Cordeiros não dos esfrega na cara uma transformação
espiritual, nem mostra o mesmo menino assinando seu alistamento logo a seguir. É
a imagem do estarrecimento, do não-saber, de um sujeito em franca dúvida
sobre
os rumos que seu país está tomando e a maneira como ele deve agir
sobre isso. Não
é o espaço para elegância do corte nem o refinamento dos travellings laterais:
um close simples, frontal, longo à beira da inquietação,
do rosto de um menino
em abismo. Ali o filme assume que, à cultura a que pertence, só resta
lavar as mãos. O trabalho de Redford
(e de Jabor, em versão menos classuda) termina quando termina o estoque
retórico, e resta a eles apontar o dedo: cabe a vocês, ó geração
anos 2000,
resolver aquilo sobre o qual nós só conseguimos produzir discursos
de efeito.
Há hoje, nos
Estados Unidos, um grupo de artistas que consegue, de fato, lidar com a política
sem esse ranço retórico envelhecido, e cuja atividade consegue ser mais efetiva
na provocação de discussões no país do que qualquer filme americano recente
tenha conseguido. São os comediantes, apresentadores dos talk shows mais populares por lá. Seguindo os temas-chave propostos
por Leões e Cordeiros (e com a grata
ajuda do YouTube), se o leitor quiser assistir uma parte da mídia americana liberal
se confrontando com sua própria incompetência e peleguismo na era Bush, veja o
vídeo da participação de Jon Stewart no programa "Crossfire", da CNN,
quando das eleições presidenciais americanas de 2004. Já para ver um liberal
consciente de seu papel de confrontador do stablishment conservador e que não se acovarda em agir dentro do próprio ninho das cobras,
veja o vídeo em duas partes do comediante Stephen Colbert se apresentando no Jantar dos
Correspondentes da Casa Branca de 2006, para uma platéia que incluia o
presidente Bush e sua senhora. Por fim, para ver o ideal de uma política que se
dedica a pensar os traumas da América percebendo as inconstâncias e coerências
dos dois lados do partidarismo, assista o trecho de abertura do primeiro programa de David
Letterman logo após os atentados de 11 de setembro.
Três comediantes,
cada um não precisando de mais de 10 minutos para serem muito mais efetivos
em
sua atuação política do que Robert Redford em duas horas
de plano e contraplano.
E ainda assim, ali naquele último close do rapaz estarrecido diante da
tevê, Leões e Cordeiros acaba traindo
sua própria
natureza e dizendo que é sim possível entender o cinema não
como um depositário
de melancólicas rabugices, mas como o espaço para a imagem da dúvida,
do
desconhecimento, da lacuna que insiste em não se preencher – e
que exatamente
por isso nos causa tanta impressão.
Rodrigo de Oliveira
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