LEÕES E CORDEIROS
Robert Redford, Lions for Lambs, EUA, 2007

Se Leões e Cordeiros fosse filmado no Brasil, talvez pudesse ser um filme do Arnaldo Jabor de hoje (esse dos comentários políticos na tevê), um filme da reconciliação entre o passado militante e o presente "esclarecido": aquele discurso do velho intelectual de esquerda que sabe-se acomodado, mas que ainda assim não resiste em dizer a todo mundo, como se fosse uma verdade secreta à qual só ele tem acesso, que o "povo brasileiro" (ou americano, no caso do Redford) é assim-e-assado, denunciando tudo-isso-que-está-aí, com os dois pés fincados na obviedade e na certeza de que ninguém filma melhor a elegância do que aquele que, um dia, já se meteu em filmes mais sujos e grossos só para seguir o comportamento do grupo de que fazia parte.

Os piores momentos de Leões e Cordeiros acontecem sempre que Redford tenta disfarçar esta sua posição parcialíssima e forjar um grande painel da verdade totalizante. Uma jornalista liberal consegue finalmente uma entrevista exclusiva com o senador playboy, republicano em ascensão no partido, e no momento em que ele lhe revela um novo plano de ataque às forças de resistência afegãs, um corte nos joga no meio da operação de guerra, com dois bons soldados sendo submetidos ao perigo por conta de um erro de estratégia. Um terceiro foco narrativo do filme mostrará o embate entre um velho professor de esquerda (papel de Redford, é claro) e um jovem aluno seu, inteligente mas completamente irresponsável com seus próprios talentos. Para arrebanhar mais este estudante para seu projeto de transformação do país (do qual ele próprio já está cansado demais para levar adiante), o professor traz à memória a figura de dois ex-alunos seus, tão inteligentes quanto este aqui, mas que decidiram de fato fazer algo pelo país. Alistaram-se voluntariamente, foram para a guerra, e agora coincidentemente ocupam o segundo foco narrativo do filme, definhando no deserto com ferimentos à bala enquanto quatro pessoas teorizam a guerra do outro lado do mundo. Três situações dramáticas ligadas entre si, acontecendo simultaneamente, e assim Leões e Cordeiros nos quer dizer que a + b + c = América atual. Fim da lição.

Mas há um momento em que o cinismo é abandonado em nome de alguma sinceridade de pensamento. É quando termina todo o esforço de análise política verborrágica digna de um quadro do Jornal da Globo (Jabor não fora mencionado por piada, simplesmente), e Redford decide, enfim, dar nome e rosto aos bois que, até agora, apenas carinhosamente insinuava. Os três personagens adultos recebem do filme planos sempre contemporizadores, sempre bastante articulados, se movendo e se exibindo enquanto dominadores de uma retórica infalível (mesmo que a jornalista de Meryl Streep reconheça suas fraquezas enquanto apoiadora automática de uma guerra que agora combate, seu mea culpa é pura consciência e firmeza de princípios), todos muito à vontade no teatro de verdades que armam. Aos três personagens jovens, no entanto, Leões e Cordeiros oferecerá planos sempre bastante enrijecidos, sufocantes, imobilizadores. A própria condição em que os dois soldados nos são apresentados deixa isto claro: numa seqüência estão de pé diante da classe de aula cuspindo uma teoria torta sobre a guerra, na seguinte já estão paralisados por ferimentos em pleno campo de batalha. Leões e Cordeiros está atirando contra um alvo específico, e ele certamente não é a própria consciência "democrática" de Redford, nem muito menos o salvo-conduto que o filme dá ao senador republicano pró-guerra ("afinal, todos nós erramos, políticos, jornalistas, professores universitários ex-ativistas").

É um plano específico, realmente impactante e poderoso, do rosto do jovem relapso que Redford passou o filme inteiro tentando catequizar, sem sucesso. De volta à casa, tudo parecia continuar como antes, jogos de videogame, cerveja com os colegas de quarto, vagabundagem. Mas uma reportagem na tevê sobre a tal missão fracassada no Afeganistão finalmente desperta algo no menino. Felizmente, Leões e Cordeiros não dos esfrega na cara uma transformação espiritual, nem mostra o mesmo menino assinando seu alistamento logo a seguir. É a imagem do estarrecimento, do não-saber, de um sujeito em franca dúvida sobre os rumos que seu país está tomando e a maneira como ele deve agir sobre isso. Não é o espaço para elegância do corte nem o refinamento dos travellings laterais: um close simples, frontal, longo à beira da inquietação, do rosto de um menino em abismo. Ali o filme assume que, à cultura a que pertence, só resta lavar as mãos. O trabalho de Redford (e de Jabor, em versão menos classuda) termina quando termina o estoque retórico, e resta a eles apontar o dedo: cabe a vocês, ó geração anos 2000, resolver aquilo sobre o qual nós só conseguimos produzir discursos de efeito.

Há hoje, nos Estados Unidos, um grupo de artistas que consegue, de fato, lidar com a política sem esse ranço retórico envelhecido, e cuja atividade consegue ser mais efetiva na provocação de discussões no país do que qualquer filme americano recente tenha conseguido. São os comediantes, apresentadores dos talk shows mais populares por lá. Seguindo os temas-chave propostos por Leões e Cordeiros (e com a grata ajuda do YouTube), se o leitor quiser assistir uma parte da mídia americana liberal se confrontando com sua própria incompetência e peleguismo na era Bush, veja o vídeo da participação de Jon Stewart no programa "Crossfire", da CNN, quando das eleições presidenciais americanas de 2004. Já para ver um liberal consciente de seu papel de confrontador do stablishment conservador e que não se acovarda em agir dentro do próprio ninho das cobras, veja o vídeo em duas partes do comediante Stephen Colbert se apresentando no Jantar dos Correspondentes da Casa Branca de 2006, para uma platéia que incluia o presidente Bush e sua senhora. Por fim, para ver o ideal de uma política que se dedica a pensar os traumas da América percebendo as inconstâncias e coerências dos dois lados do partidarismo, assista o trecho de abertura do primeiro programa de David Letterman logo após os atentados de 11 de setembro.

Três comediantes, cada um não precisando de mais de 10 minutos para serem muito mais efetivos em sua atuação política do que Robert Redford em duas horas de plano e contraplano. E ainda assim, ali naquele último close do rapaz estarrecido diante da tevê, Leões e Cordeiros acaba traindo sua própria natureza e dizendo que é sim possível entender o cinema não como um depositário de melancólicas rabugices, mas como o espaço para a imagem da dúvida, do desconhecimento, da lacuna que insiste em não se preencher
e que exatamente por isso nos causa tanta impressão.

Rodrigo de Oliveira

 

 






O jovem estudante de Leões e Cordeiros: a imagem da perplexidade contemporânea escondida sob a agenda
retórica de uma política caduca.