JOGO DE CENA
Eduardo Coutinho, Jogo de Cena, Brasil, 2007

É relativamente fácil apontar no cinema de Eduardo Coutinho uma tendência ao emolduramento da fala. Habitualmente, seus filmes são centrados em dois mecanismos, a saber, uma regra geral e uma redução desta regra à dimensão de armadilha: de uma mecânica de dimensionamento geográfico, a operação do filme sempre se dobra para dar lugar a um objetivo primordial de captura de discursos singulares. É assim, por exemplo, com o princípio geral de Babilônia 2000: subir o morro para perguntar sobre a virada do milênio se torna pretexto para afirmar a(s) singularidade(s) dos personagens tomados a partir do microcosmo desenhado pela idéia-guia.

Igualmente, o um-prédio-276-conjugados-500-moradores-37-depoimentos de Edifício Master se curva à rede de polifonia criada pelas vozes comprimidas pelo sistema de coleta de Coutinho. Acontecerá sempre, e sempre de maneira peculiar, a cada filme. A partir das histórias de transcendência religiosa de Santo Forte, singularizam-se pessoas dotadas de religiosidade; a partir de histórias de vida operária de Peões, singularizam-se falantes dotados de personalidade própria apesar da suposta categoria a que pertencem.

Ou seja, de certa forma, há sempre uma presença da estrutura como elemento forte do filme. Por mais que a estrutura seja algo de que se fuja, da qual se promova um afastamento rumo à “desobediência à estrutura”. Em um momento ou outro, entretanto, essa estrutura soará mais pronunciada. O caso em que isso é mais patente é justamente aquele em que ela é de certa forma invisível, O Fim e o Princípio. Nele, princípio (regra) e fim (finalidade) se confundem em um jogo de palavras voltado para emoldurar os discursos (sobretudo aqueles sobre o fim, a morte, e sobre o fim... da vida) originários das conversas oriundas da lupa uma-cidadezinha-do-Nordeste-e-entrevistas-sem-pesquisa-prévia.

Jogo de Cena é (mais) um filme singular de Coutinho. Mas traz uma singularidade absolutamente especial: desta vez ele traz para o – não resistamos ao trocadilho – centro do palco aquilo que Coutinho sempre escamoteou, aquilo que sempre foi dado como subjacente, exatamente a estrutura. No filme, se há um personagem digno de nota – por mais que o habitual garimpo dramatúrgico do diretor traga para as luzes narrativas efetivamente especiais –, esse personagem é uma abstração de narratividade, uma contraposição metalingüística entre aquilo que é contado e a situação em que é contado.

Os personagens de Coutinho – e essa associação não vem apenas porque eles estão “realisticamente” em seus filmes, mas porque são sempre efetivamente construídos pelo diretor – estão constantemente preocupados com a estética de suas narrações. Daí, em certo sentido, Jogo de Cena ser o filme dos filmes de Coutinho. Jogo de Cena é sobre todos os seus filmes.

Assim, o filme vai desenhando e apresentando diante dos olhos sua própria estrutura. Mais que isso, esse desenho ocupa todos os espaços da metragem. Mas em vez de apresentar as linhas de uma planta baixa – como se fosse um making of –, ele mostra o ar entre as paredes, a pura relação entre os elementos. E é nesses elementos que reside a “regra do jogo” que Coutinho sempre estabelece.

A regra, então, como já notoriamente apresentada: vemos mulheres “comuns” a contarem suas histórias; e vemos também atrizes, a reproduzirem essas narrações. Algumas dessas atrizes são famosas, rostos conhecidos do público brasileiro; algumas outras são absolutamente desconhecidas. E o “ar entre as paredes” está justamente na indistinção entre as operações de exposição. Porque é de exposição que se trata. Quando um senhor canta “My Way” em Edifício Master, ele está se dando esteticamente tanto quanto a atriz Andréia Beltrão. Alguma diferença microscópica possível – sim, porque macroscopicamente, as diferenças são óbvias. Uma atriz “profissional” terá uma relação com a técnica de interpretação diferente de uma pessoa de outra profissão – estará na ordem da reflexividade (o quanto de metalinguagem estará contida na atitude narrativa, o quanto se deposita um investimento de regularidade no que se fala).

Mas o que importa aqui nem são tanto as técnicas, é a redução ao sistema. É o choque entre as narrações, a impossibilidade de distinção entre os corpos narrativos, o que chama mais atenção. Nem tanto pelo falseamento, por uma brincadeira de Coutinho para nos enganar impedindo-nos de descobrir quem é atriz e quem não é. Isso até acontece. Mas, mais radical e profundo que isso, o que ocorre ali é a constatação de que, de perto, todas as narrações são normais, ou seja, possuem normas operacionais, retóricas, elementos típicos.

Coutinho mesmo entra no jogo. De repente, pegamo-lo trabalhando como... ator. Em determinado momento de uma história que sabemos ser narrada por uma atriz, vemo-lo fazer a mesma pergunta feita na entrevista “real”. Vemo-lo, então, fazer-se objeto do principal objeto de seus filmes, a pura relação. Ele precisa dar a deixa, precisa fazer com que a situação de fala seja ela mesma uma situação, ou seja, tenha seus elementos constituintes presentes.

Não à toa, por exemplo, o retorno da personagem real – a reumatologista separada da filha por sua severidade e ela também filha de um pai severo – para cantar soa tão emblemático. Colocado no final da montagem, o momento nem por isso é um puro clímax emocional – é sabido, por exemplo, que Coutinho retirou o cantor de “My Way” do final de Master para não produzir um efeito emocional dessa monta, embora a ordem cronológica dos depoimentos o determinasse. Em vez disso, a cena é mais uma “denúncia” do investimento dos, digamos, “atores sociais” na narratividade. O uso do termo “ator" aqui é obviamente central.

A metáfora do teatro tem sido questionada há algum tempo. Um dos motivos é uma suposta ingenuidade na separação entre “ação sincera” e “ação dotada de estratégia”. No que diz respeito ao que acontece no cinema de Coutinho e particularmente na maneira como ele se aproxima de seus entrevistados (com a câmera e com a fala), faz pouca diferença se dizer que não há atores ou que só existem atores. O que importa é o reconhecimento da pura ação das exibições e seus resultados na relação. As pessoas que falam com ele fazem com que suas falas fiquem, com que elas se tornem entidades constituintes de um fenômeno relacional, elas criam uma, digamos, “reputação estética”.

E é nesse sentido que a cena do retorno para cantar – assim como o momento em que, depois de uma apresentação verossímil ouvimos um “Foi assim que ela contou” ou como na história pessoal de Andréia Beltrão – se torna um momento estruturante: ali estão todos os personagens de Coutinho desde sempre. Ali está uma espécie de DNA da “apresentação de si”. A personagem – que no filme tem seu contraponto “profissional” em Marília Pêra – diz que queria cantar porque não queria que sua história ficasse registrada como trágica. Ela se preocupa, então, com sua biografia, com a síntese. A fala, ali, deixa de ser gerúndio e passa a ser infinitivo. De “falando” vira “falar”. De ação em ação vira ação solidificada.

Jogo de Cena, então, é um sistema de sistematização. É o grande filme de Coutinho sobre ele mesmo. Claro, há uma ótima discussão possível sobre a arte cênica e outra discussão sobre a mulher. Mas ambas são parte de uma outra, maior e mais poderosa que elas, que está contida na montagem do filme: quando edita um trecho e corta para colocar a fala de outra mulher dizendo a mesma coisa ou quando decide colocar mais de uma história envolvendo sonhos ou mais de uma envolvendo homens que partem ou perdas de filhos, Coutinho se revela totalmente, desmonta seu próprio jogo de cena: ele se reduz e a todos os seus personagens a uma mesma substância. A singularidade desestruturante de todos os seus filmes dá uma volta sobre si mesma sem se renegar – não se pode dizer de forma nenhuma que o filme seja um desmentido da singularização, até porque ele mesmo traz narrativas singulares: essa desestruturação, por meio da presentificação da estrutura mostra afinal o que está em jogo no cinema coutiniano, o momento do parto da palavra, em que ela deixa o recôndito da gestação mental e ganha o mundo.

Não à toa, talvez, o chorar seja tão relevante no filme. A incapacidade de Andréia Beltrão e Fernanda Torres para segurar o choro diz muito sobre isso. Afinal, ao nascer, o bebê chora. É que, ali, Coutinho centra seu olhar no processo de geração da palavra, algo invisível até então em seu cinema, porque funcionava com acessório das belas crianças que eram as histórias que ouvia. O filme, aliás povoado de maternidades – mães que perdem filhos, que se afastam de filhas, que ficam grávidas, que estabelecem relações maternais – intensifica o olhar sobre o fenômeno da narratividade a ponto de emoldurar não mais o conteúdo das palavras. E nem a forma. Mas sua natividade. Sua atividade.

Alexandre Werneck