HAIRSPRAY – EM BUSCA DA FAMA
Adam Shankman, Hairspray, EUA, 2007

Logo na primeira seqüência de Hairspray, aquela que já nos introduz ao primeiro número musical do filme, vemos a gordinha Tracy Turnblad cantar bom dia à cidade em que vive, e a acompanhamos da cama até o banheiro (onde se apronta com maquiagem e muito laquê), e depois no caminho pela rua até a escola, por onde segue nos apresentando tudo aquilo que mais lhe encanta na Baltimore de 1962. Longe os símbolos da vida pacata e simplória que sua própria aparência parece informar, o que a gordinha nos aponta são bêbados caídos em bares, peruas fumando compulsivamente, ratazanas enormes comendo migalhas na calçada em plena luz do dia e, lá no meio, a aparição especial de John Waters. Sua figura não é, evidentemente, uma assinatura: Waters não parece ter nenhum problema em viver hoje como a sombra de uma postura marginal que se tornou insustentável, e da qual ele não é mais que a memória viva e devidamente domada.

Uma refilmagem de seu Hairspray original, de 1988, realizada nestes anos 2007 por um diretor que não tem no currículo nenhum filme acima da linha do medíocre, não poderia se utilizar deste ex-ícone underground como mais que isso mesmo, uma imagem que guarda apenas alguma semelhança com o objeto original – que até pode contar com a presença deste objeto original, mas que tem consciência de que nunca o será, verdadeiramente. Não à toa, a pequena aparição de Waters é no papel do exibicionista do bairro, que se veste num sobretudo pesado só para, quando em frente a uma mulher, abri-lo e revelar suas partes íntimas à senhora assustada. De tudo aquilo de que Waters pôde preencher o cinema, ao longo de sua carreira, o que Adam Shankman quer (e precisa) para seu próprio filme é esta disposição ao descaramento, à falta de vergonha – uma disposição, enfim, ao exibicionismo.

Esta é uma sensação que se espalha por todo Hairspray, e que se casa muito bem com o musical peito-aberto que Shankman quer encenar aqui. Há um franco espírito de "façamos tudo pela platéia", e ele não acompanha apenas os números de canto e dança (aí bastante fundados no espetáculo da Broadway adaptado do filme de Waters, quatro anos atrás, e na experiência de Shankman como coreógrafo). É algo na própria formação do elenco, na maneira como cada ator parece entregue ao despudor. O mais obviamente dedicado a isto é John Travolta, mas se a idéia de um homem interpretando a mãe igualmente gordinha de Tracy é mantida (no filme de 1988, o travesti Divine, nos palcos o ator gay Harvey Fierstein), o tom é completamente outro. Seu desafio auto-imposto – e largamente vencido – não é o de transformar a figura do macho hollywoodiano ideal numa senhora de seios fartos, mas o de conseguir interpretar uma mãe devota e uma esposa apaixonada. O humor já está garantido por sua caracterização em látex e batom: o barato parece ser conseguir trocar um olhar com Christopher Walken (seu marido na trama) e jogar, no limite da inverossimilhança, com a possibilidade de convencer o espectador que nem toda a maquiagem e canastrice esconde que há um amor verdadeiro ali, entre eles dois.

Mas é no quociente político de Hairspray que se revela verdadeiramente este impulso desavergonhado. O mote original da segregação racial é levado a sério por Shankman, sem nunca parecer solene, muito pelo contrário. A ambientação da trama em 1962 se transforma num curioso passe-livre para uma série de considerações sobre a cultura negra e sua relação com a cultura branca que, encenada nos dias de hoje, certamente sofreria algum tipo de patrulhamento. É com algum prazer que os personagens repetem, à exaustão, a palavra "negro", termo de uso impensável na sociedade midiática americana atual. Foi preciso arranjar um filme de época para que se pudesse escapar do politicamente correto "afro-americano", sobretudo porque Shankman sabe que essa denominação que separa as pessoas por sua ascendência ignora o fato de que, para a cultura dos Estados Unidos, a importância dos negros é a de um americano-americano, construtores legítimos das bases de tudo isso em que o filme se funda.

Assim, mesmo quando disfarça que está encenando apenas um pequeno e localizado conto moral, Hairspray vai forjar uma série de imagens "históricas", alguns atrevimentos narrativos que só são possíveis a quem se dispôs, desde o começo, a mostrar tudo o que tivesse a chance. Não são simples comentários políticos, mas a própria materialização destes marcos sociais. Quando a gordinha branca é mandada pela primeira vez para o castigo, na escola, chega à sala onde estão todos os alunos punidos e lá encontra apenas negros. Lá, com um aparelho de som ligado e uma animação que faz parecer que estão num baile qualquer, todos eles dançam, ensaiam novos passos, curtem músicas recém-lançadas, como se ali fosse um pequeno laboratório pulsante da cultura negra, ao qual os brancos (como Tracy e seus amigos) precisam recorrer rápido se quiserem se contaminar do que há de melhor no cenário artístico do país. Mais à frente, no meio do estardalhaço que se faz para o grande número musical final, quando todos os personagens se reúnem no The Corny Collins Show, acontece um beijo interracial na frente das câmeras do falso programa de dança. Nada de mais, não fosse aquele o primeiro beijo interracial da história da televisão americana – mas como o negócio é exibir, é jogar com o espectador, o apresentador do programa justifica o acontecimento histórico com um simples "ah, eu adoro a tevê ao vivo!".

A constante tentativa de olhar com leveza para toda a seriedade de que está naturalmente investido é o que torna estas colocações todas de Hairspray tão pouco sisudas e, ao mesmo tempo, tão passíveis de seus exageros e diversões. Num outro filme qualquer, talvez a encarnação de Tracy Turnblad como uma espécie de Shrek de saias pudesse parecer despropositada, mas é a gordinha incansável e sempre risonha que congrega não só os negros, mas também obesos, esquisitos, e todo o tipo de gente que não se encaixe no padrão branco-magro-e-lindo que domina a cena americana da época. Por vias tortas, Hairspray acaba defendendo o mesmo partido que John Waters, por tanto tempo, se dedicou a filmar. Mas os outsiders de Adam Shankman não se reúnem apenas para marcar ainda mais sua diferença do resto das pessoas. O mandamento ainda é o do despudor, o de mostrar-se ao mundo (belíssima a seqüência em que Tracy consegue retirar sua mãe de casa, depois de anos escondida por não apresentar mais o manequim 38 da juventude). A ele, ao mundo, este grupo de jovens cheio de jogo de cintura não pode oferecer mais que um irresistível desejo de felicidade. E tanto melhor que Shankman não deixe este desejo ser espalhado aos quatro cantos pelos números musicais que irrompem no meio da rua sem que se tenha conquistado o direito de olhar a vida com um pouco de (bom) cinismo.

Rodrigo de Oliveira

 

 






Do confinamento cultural na sala de castigo à chegada ao mundo, às ruas: a integração entre negros e brancos só se efetiva pela exibição, pelo espetáculo oferecido ao público