Um homem surge
apressado em um táxi, pelas
ruas de uma cidade indiana,
imerso no tráfego caótico
tradicionalmente associado a elas. É Bill Murray, com sua tradicional
cara de... Bill Murray; com seus notórios trejeitos
clown de... Bill Murray; com seu já padrão ar entre blasé e crítico de... Bill Murray. O único traço que talvez
faça destoar do estilo habitual
do ator-personagem é que, ali, perplexo e impotente
diante do atraso que está
impresso em seu rosto e
na velocidade do veículo, ele apresenta um descontrole
sobre o mundo que habitualmente seus personagens não apresentam.
Ao chegar à estação de trem, ele corre rumo à plataforma, vendo a composição que se
afasta. Dispara e o vemos a correr em um plano de
perfil, cravado seu rosto no
extremo esquerdo, o olhar fixado no direito, a ver algo que está
fora, justamente o vagão que parte. Súbito, alguém o alcança. E começa a ultrapassá-lo. E o faz lentamente, ao som de uma canção alegre.
É Adrien Brody, de terno, bolsas de viagem nas mãos, a correr, também para alcançar o trem. Dali, veremos um plano belíssimo:
o homem que corre,
em câmera
lenta – e como pode ser bonito uma pessoa a correr em câmera lenta numa
tela de cinema! –, de perfil, como de perfil também
se vê o final do expresso. Cada movimento
é infinitamente real, porque apenas
movimento, mas infinitamente fictício, porque soa coreografado, espetacular, esquemático, observado com microscópio. Ele alcançará o trem, em triunfo.
Depois, virará, olhará para o “concorrente” parado na estação e lançará um olhar ambíguo, um misto de
sensação de vitória e derrota.
Parece uma private
joke de elenco: presente em todos os
filmes de Wes Anderson e protagonista de sua última
obra, A Vida Marinha com Steve
Zissou,
Bill Murray não terá, salvo por outra pequena
aparição, lugar neste filme. Ator badalado
em Hollywood e raramente associado
à comédia, Brody parece, na cena, tomar o seu lugar.
Parece um momento
em que é saudada
sua entrada
na “trupe” de Anderson, que habitualmente coloca em papéis-chave um grupo habitual (1): Owen Wilson e Jason Schwartzman, os outros dois irmãos protagonistas de Darjeeling, são centrais em outros de seus trabalhos.
Igualmente Angélica Huston, assim como Murray.
Mas mais forte do que o riso de “vitória” de Brody
talvez seja a dimensão de desconforto do mesmo ato. Ora, Murray, em Zissou,
fazia o papel do pai, que é habitualmente o centro das atenções da obra de Anderson. Também assumiu uma dimensão paterna
em Rushmore, e algo muito semelhante a um marido-pai em Os Excêntricos Tenenbaums.
Aqui, em Viagem a
Darjeeling,
não há pai. Ele está morto e sepultado. Há pouco. O que resta dele
é uma lembrança, um fantasma, um assunto,
que guiará a viagem dos irmãos rumo à...
mãe.
De certa forma, então, Darjeeling
é a versão de Anderson para Totem e
Tabu, o mito criado
por Freud para dar conta do nascimento da civilização tanto quanto do nascimento do sujeito. Aqui também
os filhos matam o pai (não literalmente, claro) e devoram os seus restos
(igualmente de maneira metafórica, claro, embora, como mostrarei, esse devorar será
redesenhado). Na forma não apenas das malas e dos pertences – ou bens, já que uma
espécie de herança está sempre em questão, por mais bem sucedidos que pareçam ser os irmãos – que cada um mantém junto a si, mas também
na forma da disputa por memórias. Não à toa, Peter, o irmão vivido
justamente por Brody,
é aquele que reivindica
a posição de favorito do pai, consolidando a piada da seqüência de abertura.
Igualmente não por acaso parece
ser a opção pela inversão de plano que se
dá ainda na primeira seqüência:
enquanto Murray e Brody disputam o lugar no trem na primeira seqüência,
o movimento é da esquerda para a direita, um eixo tradicionalmente,
ocidentalmente (e não parece ser de todo desimportante
usar este termo aqui),
associado à lógica do avanço: escrevemos
da esquerda para a direita, logo associamos esse sentido
a idas. O contrário, em geral,
ao sentido contrário,
à volta. Não deixa de
ser interessante, então, que, ao se livrar do oponente, Peter seja visto correndo da direita para a esquerda, digamos, no sentido do contrário, “rumo ao passado”. Racionalmente, sabemos que há uma imposição prática ali para a filmagem:
é porque é o lado imposto
pela plataforma
e pelo sentido
em que se
desloca o trem. Mas ainda assim fica a tentação desse “a calhar” de sentido (que depois
será revisitado e revisto quando
os irmãos repetirem a perseguição ao trem).
Pois bem, em quase toda a metragem de Viagem a
Darjeeling, veremos uma operação estética
repetida por toda a
obra de Anderson e que é determinante na seqüência descrita mais acima:
sua filmagem é guiada pela ortogonalidade. Tudo que está
diante dos olhos é apresentado ou no plano da câmera ou voltado
90º para ele. Não há quase diagonais
em seu mundo – a exceção são alguns momentos
em que ou o trem ou os personagens se afastam da câmera em um desvio,
tomando “outra direção”, assim como a
trama, o que não deixa de ter seu significado.
Já se havia visto o uso desse recurso, por exemplo,
em Zissou,
sobretudo nos momentos em que ele apresenta
revelado o esqueleto da navegação como cenário, como corte transversal de perfil, cada cômodo
como um ambiente a ser explorado
pela câmera.
Mas o que chama a
atenção aqui é
esse olhar totalizador.
Ele sempre
se aproxima dos objetos como se
eles tivessem apenas duas dimensões, ou como se
para conquistar a terceira dimensão
eles tivessem que ou se mover para o fundo ou usar a quarta, o tempo.
A disputa por um lugar no
trem e o uso dessa “regra dos 90º” – segundo a qual veremos, por exemplo,
muitos planos
de “rosto olhando para a câmera”, embora eles não olhem para o espectador – apontam para uma operação central
de Anderson: a montagem de um universo
de regras internas, ligado ao plano do realismo apenas
por um conjunto de referências, mas consideravelmente autônomo em sua lógica,
feita de construções sobretudo estéticas.
E isso fica ainda mais claro quando
finalmente se dá o encontro dos três irmãos:
Francis, rosto desfigurado e coberto de ataduras, propõe/impõe aos dois outros uma “viagem iniciática”. Mas antes de
tudo o que ele propõe
é um jogo, um mergulho em um conjunto artificial
de regras de ação. Demarcada
pela resposta
a um estranho
“Vocês poderiam concordar com isso [essas regras]?”, a aventura do filme é antes de tudo um mergulho
de figuras de pura dramaturgia
em um sistema de puro mise-en-scène.
Do encontro entre eles, o que se verá é uma espécie de discussão de
relação. Clínica, quase metodológica, quase como se
Francis fosse o alter ego de
Anderson, dando a seus dois companheiros de viagem, em cartões
plastificados, os passos de sua jornada
rumo “à luz”, à “espiritualidade”. A iluminação alaranjada
e dourada, quente, que marca quase tudo no
filme – e que se posiciona em oposição
ao cinza azulado, frio, da filmagem de Paris no curta-metragem que precede
à apresentação do longa, construído o “cenário anterior”
à aventura – ajudará a compor esse jogo entre os
dois elementos
mais centrais
do filme, posicionados ambos em uma
antítese, a ascese espiritual
e o mergulho no sofrimento. Igualmente,
ouviremos na trilha sonora
alguns rocks que feições
juvenis e nostálgicas – o tema mais apresentado, This Time Tomorrow,
com o The Kinks, não deixará de trazer uma ambiance nostálgica e, ao mesmo tempo,
iniciática, até pela certa cara de Beatles
que muitas bandas dos 60/70 apresentam. Mas há sobretudo muita música
“hindu”. Ouvidos treinados ajudarão a fazer reconhecer, entretanto, que mais do
que música
indiana, o que se ouve é música de cinema indiano,
música de filmes, sobretudo obras musicais/cinematográficas do mestre Satyajit Ray. É pelo plano da apreensão estética
de sua lousa que Anderson cria seu mundo.
Assim, quando Francis, totalmente clichê,
diz que o templo que eles visitarão é “um dos lugares mais espirituais do mundo”, ele não está
senão jogando “Banco Imobiliário”,
dizendo aos irmãos que, em sua imaginação de puro personagem,
um ritual
é condição necessária
e suficiente para um objetivo:
para ele, é
possível alcançar a graça e a sublimação apenas
se seguindo um manual
de ações, indo-se a um lugar “espiritual”, promovendo um “reencontro”, “conversando” com os irmãos.
Eles três, aliás, são padrões:
Francis sofreu um acidente
e viveu uma experiência de morte, o que o, digamos, sensibilizou para a “finitude da vida”;
Peter é o homem cuja mulher é uma presença absoluta e que reluta em ser um homem modelo ao lado dela; Jack é o homem devorado por uma mulher poderosa
e que não consegue
se livrar dela, embora tenha considerável sucesso
com as mulheres. Os três tentam, a pedido de Francis, reconstituir a relação de família, abalada pelo passado, e colocada em stand
by desde o enterro do pai, um ano antes. Nenhum dos três quer estar ali. Mas todos têm
que estar. Por que?
Porque, curiosamente, todo artificialismo de Anderson não cria personagens planos.
Pelo contrário. É justamente porque
faz seus personagens
tão singulares
em termos,
digamos, literários, é que sua construção é tão verossímil. O
termo “bizarro” é constantemente associado
a sua fauna.
E recheados de idiossincrasias serão mesmo os três. E a mãe. E o pai era. E
as mulheres são. E
todos somos.
Ali, então, todos têm que seguir a viagem por duas
razões, ambas de mesmo peso: 1)
a regra do filme assim impõe;
2) a regra do laço familiar
assim impõe.
Paira em todo cinema de Anderson uma lógica a respeito da família. É aquela demarcada pela fala-chave de Tenenbaums: “Família não é uma
palavra; é uma sentence”.
O uso do termo aqui em inglês é claro: sentence
quererá dizer tanto “frase” quanto “sentença”. Estamos condenados à família. E, ao mesmo tempo,
uma família é uma sintaxe. E o
centro do universo cinematográfico de Anderson é essa dualidade. Seus filmes
criam relações sintáticas e simbólicas peculiares entre os
integrantes de famílias. Igualmente, eles sempre
partem de uma constatação, a de que a familiaridade é um fenômeno incontornável.
Sim, porque aquilo
que definirá uma familiaridade, em Anderson e fora dele, será uma noção de previsibilidade e de inevitabilidade de
uma relação. Uma relação de família é uma relação inevitável,
por mais que não seja
prática. Não se deixa de ser pai ou filho, por mais que não haja
ações paternais
ou filiais.
O que pode faltar a uma
relação familiar,
entretanto, é a harmonia. E essa falta é sempre o ponto de partida do cineasta. E é justamente o que o conduz à busca pela ascese neste filme. Ora, de certa maneira,
os personagens sempre
buscam a ascese nos filmes de Anderson. Essa utopia de paz interior,
que aqui toma a forma de um reencontro
espiritual consigo,
é, no final das contas, sempre a harmonia familiar.
E o elemento chave é
uma harmonia na diferença, na diferença que iguala
a todos. Por isso os
personagens do diretor são constantemente considerados esquisitões. São um bocado farinha
do mesmo saco. Mas mesmo igualmente diferentes,
guardam diferenças entre eles.
Esse olhar fez de
Anderson uma espécie de inseminador de uma onda de filmes em Hollywood,
onde que começa a quase se consolidar quase como um gênero,
o filme-de-família-disfuncional-que-se-ama-apesar-dos-conflitos-e-que-se-dá-ao-riso.
Depois de Os
Excêntricos Tenenbaums
(2001), ele mesmo já um turning
point no certo clichê
de família disfuncional aberto por Beleza Americana (1999) surgiram trabalhos como As Confissões de
Schmidt
(2002), de Alexander Payne; A
Lula e
a Baleia (2005), de Noah Baumbach, aliás pupilo
de Anderson; ou Pequena Miss
Sunshine
(2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris. Mas enquanto esses filmes mais se
aproveitam os personagens como bucha de canhão para a comédia e a tortura, criando neles uma espécie de versão intelectualóide de Os Simpsons, Anderson tem operado sempre
uma operação de fabulação da
elevação espiritual
na forma da (re)conquista da paz em família. Em seus filmes, uma dramaturgia peculiar
– um universo
mesmo –, é criada para dar conta de um drama das
validades possíveis
de relações entre personagens que reconhecem
cada um suas singularidades. Os personagens de Anderson são sistematicamente egoístas.
Em Viagem a
Darjeeling,
essa busca por harmonia/ascese
é dada, então, como traçado. Traçado que, no princípio, busca ignorar, como disse acima, a descida ao inferno. Parece ser justamente esse o
objetivo de Francis, apagar o conflito do passado por meio de uma espécie de adoçamento ritualístico new age. Sua esperança
é a de que se for encontrada a paz-fim, o conflito-meio
não será necessário. Mais que isso, para ele a única forma de se chegar à paz é pelo esquecimento do que impedia a paz.
Não à toa, vemos a mãe como alguém que abandonou
a família justamente
em busca da
elevação. Como freira.
Como missionária
católica. E vemos Francis a imitar os passos da mãe, como se descobrirá, por trejeitos
e hábitos, que ele já faz o tempo todo. Esse jogo de
contradição – o que lhe deu
possibilidade de amar a família foi estar a milhares de quilômetros dela, ligada a outra, a “de Cristo” – não apenas
espelha a busca dos irmãos como ajuda a explicar a opção aparentemente “antropológica” do filme.
Ora, a explicação mais fácil para a escolha da Índia como cenário é a da busca pelo exótico, pelo estranhamento
que poderia
igualar os irmãos. Mas o que se dá na prática no filme é que o lugar serve muito mais como metáfora
eclesiástica. A Índia do filme é mais uma atitude do que um lugar – por mais que se queria fazer uma crítica a sua etnografia
questionável e a momentos como o
do menino que rouba o calçado de Francis. E, ao mesmo tempo,
é mais um cenário onde se
possa ritualizar a vida sem constrangimento.
Assim como o
espaço-personagem que era o barco de Steve Zissou, o trem é
desnudado por um plano que o atravessa
o trem (de perfil, claro), de ponta a outra, apresentando uma quase absurda
galeria dos personagens do filme, cada um em uma cabine, a mulher grávida de Peter, a ex-mulher de Jack (que o encontraria em Roma), os indianos do trem, e até o homem de negócios vivido
por Bill Murray. Mundo à parte, essa cena se soma a outras,
dentre as várias caminhadas e visitas a templos e mercados, em que uma
espécie de deslugar, de outra dimensão
é construída. Sobretudo pelos diálogos um tanto non sense
entre os três. O jogo de infidelidades deles, um contando ao outro a história do terceiro sobre a
qual jurara segredo, apenas a fim de tirar vantagem, é uma reiteração da teatralidade com a qual Anderson mais uma vez compõe sua fabulação.
Francis tenta banir o conflito, mas Anderson não permitirá. E fará isso com sua operação
de construção de um ambiente
em si, trazendo
à tona o tempo todo metonímias que retomem
as chagas que impedem
o amor, a fraternidade entre os
irmãos (como o cinto de Francis que Peter “toma emprestado” e depois ganha de
presente e depois se vê forçado
a devolver). Em determinado
momento, isso, e a própria mecânica
de Anderson, ficam escancarados, numa fala de Jack: “Vocês acham que seríamos amigos na vida real, quero
dizer, não como família, mas como pessoas”. Ora, está tudo ali. Vida real e
vida em família são opostas.
A obrigatoriedade da relação determinada
se torna um obstáculo para eles. A resposta de Peter: “Pelo menos teríamos mais chances”.
Como se aquele reencontro
não fosse uma.
Por isso mesmo, a operação de Anderson cria um esquematismo
fabulesco que mais mitifica sua narração
do que a confere realismo (estético, não existencial, desse ele dá conta com propriedade).
O grande índice
disso, claro, é o espelhamento a que a trama se impõe: se se separaram depois de um funeral,
os irmãos apenas
poderão se juntar novamente
de fato após outro. E se o primeiro dos sepultamentos foi o do pai para os quais eles não foram bons filhos
e do qual receberam uma paternidade discutível,
o segundo terá que ser de um filho,
de uma criança. A dor da perda do futuro se dá a eles como algo infinitamente mais poderoso
do que a dor da perda do passado.
Filhos, vêem-se morrer na morte da criança que, afinal, eles, já adultos,
não conseguem salvar. No final das contas, era o fato de eles serem ainda crianças
o que os impedia de serem amigos, irmãos. Sem filia
não há ágape. E, disso, vem a conexão mais importante com Totem e
Tabu, por oposição:
em vez de
comerem de fato as partes do pai, eles as deitam fora. Em uma repetição do formato da primeira cena, a
da corrida em câmera lenta para alcançar o trem, Anderson faz as malas que marcam
a presença paterna
em torno dos
irmãos serem abandonadas. Vemos, então, os restos mortais
de cada um deles
no passado, os restos mortais
dos filhos que foram
atrás do carro do progenitor na cena em flashback, serem trocados pelo vazio do futuro, pelo puro percurso, pela viagem.
Alexandre Werneck
1. Até
o fechamento deste texto, não havia
nenhuma indicação de que Brody estará no elenco de The
Fantastic Mr. Ford, próximo filme de
Anderson (previsto para lançamento em 2009),
que deverá ser protagonizado
por George Clooney e Cate Blanchet. Bill Murray,
entretanto, está já confirmado no elenco, mas provavelmente
como narrador, tendo apenas suas voz aparecendo na película. Parece, então, – permitamo-nos a piada – que o riso de triunfo de Brody veio cedo demais. Ele se tornou
um outro objeto habitual
no cinema de Anderson, o “astro visitante”,
papel que já coube a nomes como Ben Stiller, Gwyneth Paltrow, Wille Dafoe e
Natalie Portman.
|