BEE MOVIE - A HISTÓRIA DE UMA ABELHA
Steve Hickner e Simon J. Smith, Bee Movie, EUA, 2007

Aproximar mundos animais do nosso é um recurso mais do que recorrente em desenhos animados e uma tendência marcante das animações em CG pós-Toy Story. A estratégia funciona para além da identificação do espectador pela antropomorfização de bichos diversos; ela é freqüentemente fonte de efeitos cômicos por analogia. Rimos ao ver nossa lógica e nossos hábitos transpostos para outros universos. Por vezes, a coisa funciona na chave do detalhe na imagem, a exemplo da tampa de pasta de dente usada como copo em Ratatouille, por vezes como estrutura geral, como a organização urbana do universo paralelo de Monstros S.A. . Bee Movie segue pelo mesmo caminho, repetindo um pouco do que já havia sido feito em FormiguinhaZ: apresentar a sociedade organizada dos insetos como um espelho da nossa.

Outro recurso de roteiro repetido à exaustão que Bee Movie retoma é o mote do herói que deseja transpor os limites do seu mundo, sair da rotina, fazer algo de extraordinário – que seria um desdobramento da própria ideologia americana de vencer na vida, se sobressaindo dos demais. Dito isto, podemos partir para o que o filme apresenta como proposição mais específica: levantar a questão da exploração de uma “sociedade organizada” por outra “sociedade organizada”. Sim, porque trata-se menos da questão da exploração do animal pelo homem, do que da usurpação do trabalho e da liberdade de um ser por outro. Neste sentido, pode-se dizer que a motivação da trama é bastante debitária dos ideais da cultura judaica-americana – da qual Jerry Seinfeld, produtor, roteirista e dublador do personagem principal, é uma espécie de ícone nos EUA.

Barry, o herói abelhudo, defende sobretudo a soberania de seu povo frente aos humanos e o direito inalienável à posse do produto do seu trabalho: o mel. Neste sentido, talvez em nada surpreenda o fato de Barry assentir com a venda de mel ao final do filme: trata-se de um mel “bee-approved”, ou seja, desde que ele controle a comercialização, sem problemas. Considerando-se que esta lógica de produção capitalista é absolutamente estrangeira aos animais, onde estaria a suposta bandeira “ativista” do filme?

Certamente não no brusco plot-point que faz Barry ser obrigado a reconhecer que o processo que moveu contra os humanos, que resultou na paralização da produção de mel pelas abelhas por excesso de oferta, provocou um desequilíbrio ecológico e o desaparecimento gradual das flores – objeto de adoração tanto dos humanos quanto das abelhas. Este giro de conservadorismo – é preciso voltar atrás porque há um equilíbrio “natural” a ser mantido – é apenas um dos muitos aspectos problemáticos de Bee Movie, seja política ou narrativamente.

Pois a questão do equilíbrio/desequilíbrio traz outro problema central do filme: a relação entre as abelhas e os humanos. A rapidamente estabelecida “igualdade” entre as espécies representada pela relação equilibrada entre Barry e Vanessa, sua amiga florista, tira qualquer peso de um real embate entre diferenças – e, portanto, de uma real interação. Pela retirada da violência da equação, em favor do clima de crônica e de comédia, todo o drama que o filme poderia emprestar à sua proposta "ativista", desaparece no ar.

Este “detalhe”, a violência, é precisamente o que faz de Ratatouille – com que Bee Movie guarda considerável semelhança de trama no início – um grande filme. Nele, a violência é previamente reconhecida como dado do mundo e risco inerente. A relação entre o rato Rémy e o aprendiz de cozinheiro Linguini depende justamente de um equilíbrio em constante negociação, pois tratam-se de duas espécies assumidamente diferentes que buscam uma harmonia possível. E, ao contrário de Bee Movie, em que abelhas e humanos se comunicam através do inglês sem ruído algum, a fala não é uma forma de comunicação dada: Rémy e Linguini precisarão desenvolver maneiras de entender o outro.

Ora, a violência existe sempre que há alteridade e qualquer relação genuína prescinde de alteridade. Pode-se dizer, portanto, que Bee Movie fracassa primeiramente por levar o paralelo entre abelhas e humanos longe demais. Por anular a distância que faria deste espelhamento, além de motivo cômico, uma medida das aproximações e distanciamentos necessários a qualquer relacionamento. E, por extensão, por colar à questão da exploração animal pelo homem preocupações como a utilização de nomenclatura relacionada a abelhas como “trademark”, ou a ameaça representada pelos ursos (violência, esta sim, “natural”, parte do equilíbrio de uma lógica não-humana).

Não por acaso, a condução narrativa do filme e a graça de suas cenas desandam depois que o conflito é apresentado, depois que Barry sai da colméia e conhece Vanessa. A inaptidão para lidar com o confronto faz com que uma série de cenas débeis se suceda, como aquela em que um arrumador do supermercado desconfia da presença de Barry no depósito, ou a do ataque assassino do marido de Vanessa a Barry no banheiro – ou mesmo todas as que envolvem o julgamento no tribunal. Ao sair do terreno da comunidade das abelhas e entrar no terreno do enfrentamento, Bee Movie afunda – em ritmo, em gags, em emotividade.

Tatiana Monassa

 

 





Não há nada de "B" no percurso de Barry: o abelha como empresário do mel mostra-se igual a seus pares humanos.