Aproximar mundos animais do
nosso é um recurso mais do que recorrente em desenhos
animados e uma tendência marcante das animações em
CG pós-Toy Story. A estratégia funciona para
além da identificação do espectador pela antropomorfização
de bichos diversos; ela é freqüentemente fonte de efeitos
cômicos por analogia. Rimos ao ver nossa lógica e nossos
hábitos transpostos para outros universos. Por vezes,
a coisa funciona na chave do detalhe na imagem, a exemplo
da tampa de pasta de dente usada como copo em Ratatouille,
por vezes como estrutura geral, como a organização
urbana do universo paralelo de Monstros S.A. . Bee
Movie segue pelo mesmo caminho, repetindo um pouco
do que já havia sido feito em FormiguinhaZ:
apresentar a sociedade organizada dos insetos como
um espelho da nossa.
Outro recurso de roteiro repetido à exaustão que Bee Movie retoma é o
mote do herói que deseja transpor os limites do seu mundo, sair da rotina, fazer
algo de extraordinário – que seria um desdobramento da própria ideologia americana
de vencer na vida, se sobressaindo dos demais. Dito isto, podemos partir para
o que o filme apresenta como proposição mais específica: levantar a questão da
exploração de uma “sociedade organizada” por outra “sociedade organizada”. Sim,
porque trata-se menos da questão da exploração do animal pelo homem, do que da
usurpação do trabalho e da liberdade de um ser por outro. Neste sentido, pode-se
dizer que a motivação da trama é bastante debitária dos ideais da cultura judaica-americana – da
qual Jerry Seinfeld, produtor, roteirista e dublador do personagem principal, é uma
espécie de ícone nos EUA.
Barry, o herói abelhudo, defende sobretudo a soberania de seu povo frente aos
humanos e o direito inalienável à posse do produto do seu trabalho: o mel. Neste
sentido, talvez em nada surpreenda o fato de Barry assentir com a venda de mel
ao final do filme: trata-se de um mel “bee-approved”, ou seja, desde que ele
controle a comercialização, sem problemas. Considerando-se que esta lógica de
produção capitalista é absolutamente estrangeira aos animais, onde estaria a
suposta bandeira “ativista” do filme?
Certamente não no brusco plot-point que faz Barry ser obrigado a reconhecer
que o processo que moveu contra os humanos, que resultou na paralização da produção
de mel pelas abelhas por excesso de oferta, provocou um desequilíbrio ecológico
e o desaparecimento gradual das flores – objeto de adoração tanto dos humanos
quanto das abelhas. Este giro de conservadorismo – é preciso voltar atrás porque
há um equilíbrio “natural” a ser mantido – é apenas um dos muitos aspectos problemáticos
de Bee Movie, seja política ou narrativamente.
Pois a questão do equilíbrio/desequilíbrio traz outro problema central
do filme: a relação entre as abelhas e os humanos. A rapidamente estabelecida “igualdade” entre
as espécies representada pela relação equilibrada entre Barry e Vanessa, sua
amiga florista, tira qualquer peso de um real embate entre diferenças – e, portanto,
de uma real interação. Pela retirada da violência da equação, em favor do clima
de crônica e de comédia, todo o drama que o filme poderia emprestar à sua proposta
"ativista",
desaparece no ar.
Este “detalhe”, a violência, é precisamente o que faz de Ratatouille – com
que Bee Movie guarda considerável semelhança de trama no início – um
grande
filme.
Nele, a violência é previamente reconhecida como dado do mundo e
risco
inerente. A relação entre o rato Rémy e o aprendiz de cozinheiro Linguini depende
justamente
de um equilíbrio em constante negociação, pois tratam-se de duas espécies assumidamente
diferentes que buscam uma harmonia possível. E, ao contrário de Bee Movie,
em que abelhas e humanos se comunicam através do inglês sem ruído algum, a fala
não é uma forma de comunicação dada: Rémy e Linguini precisarão desenvolver maneiras
de entender o outro.
Ora, a violência existe sempre que há alteridade e qualquer relação genuína prescinde
de alteridade. Pode-se dizer, portanto, que Bee Movie fracassa primeiramente
por levar o paralelo entre abelhas e humanos longe demais. Por anular a distância
que faria deste espelhamento, além de motivo cômico, uma medida das aproximações
e distanciamentos necessários a qualquer relacionamento. E, por extensão,
por
colar à questão
da exploração animal pelo homem preocupações como a utilização
de
nomenclatura
relacionada
a abelhas como “trademark”, ou a ameaça representada pelos ursos (violência,
esta
sim, “natural”, parte do equilíbrio de uma lógica não-humana).
Não por acaso, a condução narrativa do filme e a graça de suas cenas desandam
depois que o conflito é apresentado, depois que Barry sai da colméia e conhece
Vanessa. A inaptidão para lidar com o confronto faz com que uma série de cenas
débeis se suceda, como aquela em que um arrumador do supermercado desconfia da
presença de Barry no depósito, ou a do ataque assassino do marido de Vanessa
a Barry no banheiro – ou mesmo todas as que envolvem o julgamento no tribunal.
Ao sair do terreno da comunidade das abelhas e entrar no terreno do enfrentamento, Bee
Movie afunda – em ritmo, em gags, em emotividade.
Tatiana Monassa
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