UM HOMEM MORRE, UMA MULHER VIVE,
E O MUNDO CONTINUA

Um olhar sobre os primeiros filmes de Edward Yang

Vistos em conjunto, os três primeiros longas-metragens de Edward Yang, That Day, on the Beach, Taipei Story e Terrorizer (em Our Time, anterior aos três, ele apenas dirigiu alguns episódios) são, mais do que pesquisas de um cineasta disposto a desenvolver uma linguagem própria – afinal, os três já carregam uma série de elementos temáticos e estéticos que permeariam toda a obra deYang –, filmes que têm em comum uma certa esquizofrenia ou, em outras palavras, uma estranheza que parece, ao mesmo tempo, distanciar e aproximar o espectador. A escolha dos três filmes, especificamente, não é aleatória, visto que depois o cineasta conseguiria alcançar em seus longas um poder de síntese e uma harmonia maiores, com várias obras, nesse sentido, mais “acertadas”, ainda que nem sempre melhores. Dentre eles, destacam-se A Brighter Summer Day e As Coisas Simples da Vida.

Mas o que realmente interessa nesses filmes iniciais – para além de serem, simplesmente, ótimos filmes – é como cada um se constrói, sempre de uma forma particular, através de uma dialética incompleta, na qual dois opostos não têm o poder de formar uma síntese, ainda que esta síntese pareça necessária. Talvez, por isso, o otimismo final e abrupto de That Day, on the Beach, depois de uma narrativa permeada de tristezas, o choque absurdo no fim de Taipei Story, vindo de um ponto absolutamente inesperado, e o final em aberto de Terrorizer, ainda mais solto do que sua narrativa, possam ser comparados. Todos eles parecem indicar uma certa idéia de um “qualquer fim”, ao mesmo tempo absurdo e absolutamente crível, nesta não-síntese possível da Taipei contemporânea. Não por acaso, o final dos três filmes é o mesmo: um homem morre, uma mulher vive, o mundo continua. Um homem morre, uma mulher vive e o mundo continua. É esta a forma como a dialética de Yang não se fecha.

Porque seu cinema é, ao mesmo tempo, uma crítica aos valores tradicionais de uma Taipei antiga e uma crítica às modificações da Taipei contemporânea, e este resultante é impossível de ser achado. Mas, em vez de se prender a um fatalismo simplório, no qual a felicidade é um componente impossível, seus filmes iniciais parecem conter não necessariamente uma receita para o bom viver (até porque, em dois deles, o final certamente não é positivo), mas uma idéia de seqüência, de continuação, de existência, e pronto. Um homem morre, uma mulher vive, e o mundo continua. Essa afirmação, que carrega em si uma boa dose de simplicidade, não vem, no entanto, com facilidade nesses filmes, e certamente também não os fecha dessa forma.

Tudo nos três filmes parece ser composto de um sim e um não, uma esquizofrenia que, ao chegar a lugar nenhum, surpreende do início ao fim. That Day, on the Beach, por exemplo, desloca o espectador desde o início por sua estrutura não-convencional. Os flashbacks que compõem a narrativa parecem não se justificar tanto na instância do cinema moderno, no qual deveriam, necessariamente, distanciar o espectador para um outro estado, nem do cinema clássico, no qual essa estrutura deveria seguir um sentido funcional, ou mesmo lógico. Apesar da aparente aleatoriedade dos momentos de memória que percorrem o filme, eles parecem naturais em sua estrutura, como se fossem o único caminho possível para contar aquela história. Não por acaso, nascem, muitas vezes, das próprias histórias contadas pelos personagens. E, quando depois de vinte minutos, a história da suposta protagonista acaba – pois seu amor resolveu se casar com outra –, sua amiga ouvinte começa a relatar a própria vida, e nela passaremos as restantes duas horas e meia. Inesperado, e muitas vezes até chocante – ou confuso – mas natural, ao mesmo tempo.

Talvez isso aconteça por que Yang é dos raros cineastas que consegue fazer de seus personagens ao mesmo tempo símbolos, metáforas de uma Taipei em ebulição urbana e vítima da dominação econômica capitalista, e pessoas comuns, com sentimentos ordinários e vidas, por assim dizer, ordinárias também. Essa combinação, no entanto, não prejudica qualquer uma das visões, pelo contrário: é a partir da negação da metáfora enquanto tal que a crítica social se intensifica; e é a partir da relação dos personagens com o ambiente e com a própria estrutura dos filmes que estes corpos se sobressaem.

Como exemplo maior, temos o exercício estético de Taipei Story. Seus planos formalistas, sempre recortando os personagens em vidros, janelas e enquadrando as paisagens urbanas como fatores de opressão na vida do jovem casal de Taipei, levaram várias vezes Yang a ser comparado com Antonioni, ainda que nos termos bastante banais que boa parte da crítica resolveu relegar ao cineasta italiano. Mas, mesmo que influência assumida de Yang, e mesmo que essa comparação, sim, se justifique, ela não se basta. É só assistirmos a belíssima seqüência em que o cineasta Hou Hsiao-hsien (protagonista do filme, em grande atuação) resolve espancar o colega que sacaneia seu antigo talento de jogador de beisebol, que esta visão passa a se tornar um tanto simplista. O filme entra, subitamente, em outro registro, no qual toda a opressão da vida urbana da cidade, inclusive a opressão visual, parece pesar nos ombros do personagem, e a raiva expressa nele não existe mais como metáfora, mas é corpo, pele, vida.

Talvez por isso, no fim trágico do filme, com a morte do personagem de Hou Hsiao-Hsien, a história simplesmente não possa se concluir. É verdade que ele e sua namorada não conseguem alcançar o sonho de viajar para os Estados Unidos, mas ela arranja um novo emprego naquele momento, que irá sustentá-la. Neste final, a metáfora não consegue chegar a conclusão alguma (e mesmo a conclusão de que a vida moderna sempre acaba com as relações amorosas parece pouca). São pessoas, e isso talvez seja suficiente. Os filmes iniciais de Edward Yang parecem existir no limbo entre um cinema moderno que ainda acreditava no cinema como decifrador de algumas das grandes questões da humanidade e um cinema contemporâneo que tenta compreender, apenas, o fluxo dos corpos e das pessoas. E este limbo que dá a seus filmes especial interesse.

Como outro exemplo, temos as diversas pequenas epifanias que ocorrem ao longo de That Day, on the Beach, de mulher para marido, mãe para filha, amiga para amiga, etc. Nesse caso, lembram bastante os momentos centrais de várias obras de Ozu, não só pelo tema recorrente (tradição e modernidade, questão familiar) como também pela idéia de resolver em um diálogo esclarecedor e emocionante algumas questões do próprio filme. Mas, se nos filmes de Ozu esse diálogo sempre levava a algum lugar, ainda que não necessariamente definitivo, ou otimista, em Yang os mesmos diálogos cruciais – e filmados como se fossem cruciais – parecem sucumbir perante à sociedade, e as questões continuam as mesmas, as pessoas imutáveis. As grandes cenas de drama não alcançam resultado, e o filme acaba com um simples andar, quando a amiga da protagonista percebe, simplesmente, que, depois de anos sem encontrá-la, a outra enfim virou mulher. Ela enfim virou mulher, e isso basta. Ela enfim virou mulher, e não tem como bastar.

Afinal, o filme que acabamos de ver percorre dois amores fracassados, e no fundo isto deveria ser trágico. Para a protagonista inicial – aquela a qual nós dedicamos os primeiros vinte minutos –, seu namorado é forçado pelo pai a casar com uma desconhecida. Para a protagonista dos minutos restantes, a história é outra. Em vez de um casamento armado, foge com seu amado e tem uma vida livre. Mas as pressões da vida urbana, a necessidade de impressionar chefes, as jornadas intensas de trabalho e a falta de dinheiro acabam destruindo a relação e provocando o desaparecimento de seu marido. Essa é a trágica história de That Day, on the Beach, que não encontra solução tanto no relacionamento contemporâneo quanto no relacionamento tradicional. Ainda assim, a moça vira mulher, e isso basta.

São nessas contradições que o cinema de Yang se situa, e talvez por isso seja possível afirmar que as quase três horas de That Day, on the Beach possam ser consideradas um exercício de concisão. Não porque se limitem aos momentos mais importantes da vida de alguém, mas porque seus flashbacks e narrações parecem recortes possíveis de vidas inteiras filmadas. Uma dança de tango, um quase divórcio, um momento de solidão; as cenas seguem sem uma razão aparente, e ao mesmo tempo seguem, apenas, não poderiam ser de outra forma. Existe ali uma delicadeza e uma precisão que contrastam com uma certa mão pesada no desenrolar do relacionamento entre os dois protagonistas. A sociedade oprime e deixa as pessoas infelizes, mas isso não justifica que o filme seja, também, opressor e infeliz.

Em certo momento de Terrorizer, a protagonista do filme, uma escritora, diz, em tom triste, que agora só consegue escrever livros sobre um homem e uma mulher. Ora, não seria mentira dizer que esses três filmes são, no fundo, sobre um homem e uma mulher. Mas, se nos outros dois essa conjugação parece insuficiente dentro das questões sociais, estruturais e formais do filme, é em Terrorizer que esta insuficiência é levada ao limite. Existe sim, ali, uma história, não muito clara, sobre a relação de um casal dentro da Taipei atual. Mas a narrativa de Yang, e principalmente suas imagens, alcançam em Terrorizer um nível tal de abstração que o filme inteiro parece caminhar em um local indefinido. Novamente Antonioni surge, agora com Blow-Up, mas nas fotos de Terrorizer já não está expresso mais um desejo de verdade, e sim um desejo, pura e simplesmente. Quando o vento balança as diversas fotografias de uma trambiqueira que, juntas, compõem sua face, não vemos um quebra-cabeça a ser desvendado, mas fotos balançando, apenas.

Este é o mesmo Yang que se permite, nesse filme, fazer da tentativa de suicídio de uma garota que nem conhecemos direito uma cena de rara beleza, ao som do Smoke Gets In Your Eyes. E, aos poucos, decidir que sua história, sobre uma escritora em crise e um marido que deseja subir no trabalho, resolve-se não mais no cotidiano, nem na metáfora, mas na abstração, local intermediário entre esses dois caminhos. O profundo sentimento que nasce dessas vidas – e, vale acrescentar, a profunda poesia – encontra-se sempre na delicada conjugação de opostos, que, ao se intercalarem, acabam fazendo do filme um espaço para experimentação visual, sensorial e poética. Tudo isso sem, no entanto, mudar o registro de sua câmera: planos recortando janelas, crise de uma relação, ambiente urbano opressor. E é por causa da junção desses elementos que conseguimos acompanhar a vida de personagens muitas vezes mal explicados, as elipses constantes e confusas, e os jogos visuais e mudanças de registros o tempo todo. Existe um mesmo Edward Yang por trás – o cronista da Taipei contemporânea – mas essa mesma Taipei já não é suficiente, suas respostas não são mais possíveis. Nem o drama dos personagens, nem o ambiente urbano, nem a relação dos dois. Yang trabalha, definitivamente, com algo além, que de alguma forma conjuga tudo isso.

Ao espectador, o cineasta constrói nos filmes um delicado jogo, no qual o distanciamento não exclui o sentimentalismo, e dentro do qual as armadilhas narrativas não excluem a estranheza. É nesse sentido que planos longos, distanciados, podem existir juntamente com close-ups tocantes; que cenas profundamente encenadas podem transmitir sentimentos que escapem dela; que a mesma seqüência pode ser vista como um registro cotidiano, metafórico ou simplesmente sensorial; que seqüências construídas sob a marca do cinema clássico – montagem paralela, construção de drama de personagem – existam também como exercícios de cinema moderno, sempre apontando para um caminho além, indefinido. Por isso, nunca poderemos saber qual será o próximo plano, a próxima seqüência, nem de quais personagens o filme realmente irá se focar naquele momento. Os filmes de Edward Yang tratam, no fundo, de um eterno desvendar, uma permanente e incessável compreensão.

E de que se trata essa compreensão impossível? No fim, Yang apenas revela o mais simples, algo que escapa a qualquer idéia de síntese ou resultado. Um homem morre, uma mulher vive, e o mundo continua. No fundo, o cineasta, com seus opostos e contradições, nos mostra que talvez até seja possível, sim, mas que não vale a pena procurar algo mais.

Leonardo Levis

 

 







As pequenas epifanias em That Day, on the Beach...


os vidros e janelas em Taipei Story...


as fotos em Terrorizer...

não são suficientes para "decifrar" o cinema de Edward Yang