YI YI E DEPOIS


Yi Yi foi o último filme de Edward Yang. Analisar um filme de um diretor querido a partir dessa idéia de encerramento, principalmente em se tratando de um diretor com uma filmografia tão curta, é sempre triste, embora importante. Por isso somo a essa idéia que infelizmente veio a se ligar a um filme tão belo, outras que ajudem a percorrer com menos tristeza essa obra-prima.

Além de ser o último, As Coisas Simples da Vida (o título pavoroso que o filme recebeu no Brasil) talvez represente o ápice da maturidade cinematográfica do cineasta, e, nessa afirmação, não há nada nem perto de um julgamento de valores. Tampouco ela baseia-se no fato do filme ser mais calmo, sereno e contemplativo de que seus outros filmes, já que objetivamente nada tem a ver maturidade com esses adjetivos. Existe em Yi Yi um perfeito equilíbrio de forças e intenções, esses, sim, sem equivalente na obra de Yang, do qual ele se utiliza para atingir uma incrível harmonia entre os objetos filmados e o autor. Não há aqui um jogo de forças entre qualquer um dos vários personagens criados e o diretor que os criou, que por vezes poderia privá-los a uma forma fechada de existência para fazer valer o que o roteiro gostaria de dizer sobre eles. Percebe-se na obra do diretor taiwanês, especialmente a partir da década de 90, uma honestidade na sua relação com seus personagens, o que torna a sua aproximação deles sempre compreensiva e delicada, independentemente do tema que ele trabalha, que em Yi Yi se mostra perfeita. Todos dentro do filme realmente vivem, respiram, sofrem e ficam alegres, e para dar liberdade a eles Yang não se utiliza de uma decupagem rígida, muito distanciada, puramente observacional e unicamente composta de longos planos seqüências abertos, como talvez se esperasse, ao contrário, ele faz uso com precisão de todos os planos próximos que aquela história precisa para que possamos compartilhar dos sentimentos dos personagens. Todos os mecanismos que ele aprendeu com a história do cinema e com suas próprias experiências como diretor constituem aqui engrenagens que fazem o filme funcionar como um relógio.

Toda essa harmonia de forças não se faz somente pela relação da câmera com seus personagens, ou na encenação de uma convivência cotidiana compassada, mas também pela relação de interdependência estabelecida entre o espaço do filme e aqueles que os habitam. Nenhum precede o outro em existência nos dois tipos de espaço que Yang trabalha: os públicos, parte de uma Taipei cujas mudanças radicais de modernização ele acompanhou, e os privados, o apartamento onde mora a família do filme, especialmente, mas também o apartamento da vizinha ou o do tio.

Nas cenas em lugares públicos de Taipei, Yang opera em dois registros simultaneamente. Seus planos abertos e longos nos mostram o espaço físico da cidade como os olhos de um arquiteto cuja ênfase está na interação diária de uma construção com o cotidiano de seus transeuntes. Desse modo, ele filma a capital de seus país ao mesmo tempo em que filma a vida existente nele, sempre presente ao redor de seus personagens. No mesmo plano coexiste um outro tipo de apreensão desse mundo, mais atenta a um indivíduo, que conecta diretamente os sentimentos dos personagens ao espaço que vemos. Logo, o imenso viaduto perto da casa da família e a cidade em ação em volta dele funcionam, ao mesmo tempo, por exemplo, como uma observação reflexiva daquele espaço e como um lugar de conexões afetivas com a personagem da menina Ting-Ting, fazendo com que um plano do mesmo viaduto vazio adquira uma conotação subjetiva que remeta as emoções da menina no restante do filme.

O espaço do apartamento, para o qual a família acaba de se mudar no início do filme, por sua vez, é responsável por fazer a ligação entre ela. Mesmo sendo de fato uma família, próxima até, as histórias, angústias e questionamentos de cada um deles são muitas vezes diferentes um dos outros, sendo contadas em separado. Para mostrar um coexistência de essas histórias em um mesmo espaço familiar, Yang usa todos os artifícios que tem (a decupagem que sempre nos mostra parte de outro cômodo ou do corredor, o som que nos avisa o que os outros personagens da família estão fazendo e a cenografia que deixa rastros pela casa) para construir com exatidão o fora-de-tela e criar uma planta do apartamento na mente dos espectadores, fazendo com que sempre possamos saber ou imaginar onde estão os outros membros da família que não estamos vendo. Não é a toa que Yi Yi se inicia com uma foto sendo tirada em família, lembrar o laço de sangue que os aproxima é essencial para entender o filme.

Não se pode esquecer que, de todas as aflições que cada um dos personagens do filme sente (reagindo a elas de formas diferentes), a única que é comum a todos é exatamente a relação com o coma da avó. A ausência dela por tempo desconhecido, talvez eternamente, e a sua proximidade deles (ela está dormindo em um dos quartos durante todo o filme) causa a obrigatoriedade de cada um deles ter seu próprio momento de enfrentar a situação. Mas o coma da avó não é tratado como um fantasma assustador que percorre o apartamento e perturba as pessoas e, sim, representa para cada um deles a síntese de seus questionamentos diante do mundo que devem ser enfrentados. O belo ritual de conversar com a avó em sono profundo é repetido por todos eles em algum momento do filme e se assemelha a um tipo de confissão sem culpa, já que o seu interlocutor carrega a serenidade da avó somada a impossibilidade de julgamento pelo que eles vão dizer. Propositalmente, Yang usa esses momentos em que a comunicação se estabelece plenamente pela fala (em todo resto do filme os diálogos são travados, engasgados, como se não se concretizassem) para fazer o seu ator olhar quase que diretamente para câmera, posicionada onde estaria a avó e inserindo o espectador, mais do que dentro daquele filme, dentro daquela família.

O garoto Yang Yang, no entanto, representa o outro "olhar" próximo de nós dentro do filme, como se uma semente de compreensão tivesse brotado nele, aliviando o senso de perda e finitude que o estado da avó causa. Se existe um motivo para nos sentirmos tão próximos do menino é pelo fato de ele ser o personagem na obra de Edward Yang que melhor encarna as características do próprio diretor - e é obviamente proposital que ambos compartilhem o mesmo nome. Com sua câmera fotográfica, Yang-yang percorre o filme pronto para inaugurar seu olhar puro e sereno nas situações da vida, do mesmo jeito que o adulto Edward constrói toda a sua diegese perguntando as suas criações como elas devem ser filmadas. Até a face brincalhona que o diretor mostrou ter em seus filmes de comédia encontra um paralelo no sorriso de lado e nas molecagens do garoto.

Sete anos antes de ser conhecido como seu último filme, Yi Yi deu a Edward Yang o prêmio de melhor direção em Cannes. Se existe uma idéia de evolução ou de busca de um certo cinema na obra do diretor que fez com que exatamente um filme tão tardio dele tenha lhe rendido esse prêmio, pode-se dizer que ela não aconteceu diante dos olhos do espectador. Brighter Summer Days (1991), por exemplo, se assemelha bem ao seu último filme do que os outros dois que o separaram. Edward Yang percorreu temas e gêneros diversos como seu amigo Hou Hsiao-hsien (com quem não compartilha só uma amizade, mas também o ano de nascimento), tornando muito difícil traçar uma linha mestra que guie sua obra. A sua vontade de explorar as suas impressões sobre uma Taiwan em processo de modernização a partir de variados ângulos é uma característica de todo o grupo da new wave taiwanesa, logo não é uma característica sua em particular.

Talvez pela sua premiação em Cannes ou simplesmente por uma sorte causada pela aleatoriedade do circuito exibidor brasileiro, Yi Yi foi o primeiro filme do diretor a passar por aqui. Pode-se lamentar por termos perdido tantos filmes de um cineasta tão importante, mas também pode se comemorar por essa grandiosa migalha de cinema relevante que recebemos e que provavelmente foi decisiva para existência dessa pauta, de qualquer forma, podemos imaginar que depois de uma primeira exibição com sucesso crítico, um próximo filme de Yang talvez também fosse exibido por aqui. Difícil é imagina que filme seria esse. Para onde partiria um diretor tão multifacetado no que diz respeito a temas e gêneros trabalhados? O pouco de informação disponível sobre o assunto diz que seu próximo projeto, marcado para 2007, seria uma animação produzida no EUA em parceria com o ator Jackie Chan, cujo título seria The Wind. Não chega a ser surpreendente que o próximo filme dele pareça tão diferente do resto de sua obra, mas definitivamente é um fato que torna ainda mais triste sua morte precoce.

É inevitável, nesse ponto, retomar o signo de "último" citado no início. Foi, então, o último filme de Edward Yang que deu a ele o prêmio de melhor direção em Cannes, é no seu último filme que um personagem criança funciona como alter-ego do diretor, é no seu último filme que sua decisiva relação com o espaço da cidade de Taipei chega ao ápice da plasticidade, do entendimento e da simbiose com seus personagens e, por fim, é no seu último filme que todos os personagens são obrigados a encarar a ausência de uma avó querida. Se a morte de Edward Yang em 29 de junho de 2007, aos 59 anos, foi precoce e repentina para a sua carreira, é de se alegrar que ele tenha se despedido dela de uma forma tão consciente e bela como com uma obra-prima como Yi Yi..


Bernardo Barcellos

 

 





A família reunida para a fotografia no começo de Yi Yi


O viaduto, na vista do apartamento