NÃO TOQUE NO MACHADO
de Jacques Rivette

Se estivéssemos no início dos anos 1970, a ansiedade já seria grande para ver o novo filme do diretor de Paris nous appartient, La Religieuse e L'Amour fou. Hoje, não apenas a longeva carreira de Jacques Rivette nos faz querer acompanhar de perto o passo seguinte, como também seus dois últimos filmes que chegaram aqui, Quem Sabe? e História de Marie e Julien, obras supremas da elegância e da sabedoria cênica do cineasta, aumentam nossa expectativa. Quer dizer, expectativa não, Rivette é certeza de, no mínimo dos mínimos, nos depararmos com uma arte da mise en scène cada vez mais rara: um tratamento frontal da cena, um uso expressivo e inteligente da lateralidade e da profundidade, da axialidade da decupagem (cortar de A para B implica mais que uma simples variação do ponto de vista). E também uma sobreteatralidade visitada pela desenvoltura de movimento da camêra.

Nos anos 90, vimos Rivette povoar o cinema de fantasmas carnais, presenças voláteis filmadas com a imediatidade e a materialidade de corpos. A Bela Intrigante e Paris no Verão foram suas duas obras-primas da década passada, respectivamente um teatro sublime e selvagem e uma comédia musical rivettiana. Os filmes são encontros da mise en scène de Rivette com um imaginário preexistente, subterrâneo. Assim como História de Marie e Julien seria, em 2003, um encontro secreto com "O corvo" de Edgar Allan Poe, acrescido do aspecto impressionante de ser um filme sobre a duração, e não apenas um filme de planos que duram, planos longos. Mais do que documentários sobre o onirismo (isso já virou clichê, passemos adiante), Quem Sabe?, Marie e Julien e A Bela Intrigante possuem algo de uma arte da apreensão no sentido tornado quase místico por uma teoria crítica da mise en scène à qual Rivette, como redator dos Cahiers du Cinéma, contribuiu nos anos 50: conservar o essencial de uma representação, de um texto, de uma cena, de um encontro (amoroso ou não).

Não Toque no Machado, presente na seleção do Festival do Rio (mas não programado ainda – vamos torcer para que isso não signifique a possibilidade do filme não ser exibido), é uma adaptação do romance La Duchesse de Langeais, de Balzac. O roteiro adaptado novamente coube a Pascal Bonitzer e Christine Laurent, colaboradores recorrentes de Rivette. No romance de Balzac, o período histórico da Restauração na França do século XIX é tratado com fortes acentos políticos. Mas o título do filme remete ao primeiro título do livro, e aqui constatamos um preocupação fundamental de Rivette: filmar o que veio antes (da política, inclusive). O que veio antes da História? O que veio antes do título da obra? O que veio antes da mise en scène cinematográfica (teatro e literatura, por exemplo)? De Não Toque no Machado, em se tratando de uma parceria Rivette-Bonitzer-Laurent, deve sair nada menos que um tour de force em cima do esforço de adaptação da obra de Balzac. Na passagem de uma escritura à outra, Rivette deposita sua energia como somente um Oliveira ou um Straub fariam igual. Reencontrar um texto, seja ele implantado no imaginário ou dado como perdido (como a peça de Goldoni que Castellitto procura obsessivamente em Quem Sabe?), e redescobrir seus segredos e encantos. Algo assim.

Luiz Carlos Oliveira Jr.