É
redundante dizer que filme em episódios sempre
gera muito mais expectativas do que rende resultados.
Na maioria das vezes, percebe-se que o cineasta adorado
não lida tão bem com o formato curto e
com as especificações do projeto,
a continuidade entre os filmetes é pequena ou
inexistente, a sensação de todo se esvai
e as partes não se sustentam sozinhas. Além,
claro, do terrível ar de oportunismo que esses
projetos geralmente apresentam. Ano passado, foi Paris,
te Amo, filme que se inscreve em todas as características
negativas apresentadas acima. Dessa vez o Festival do
Rio apresenta dois filmes de segmentos. Um é
Chacun son cinéma, que, apesar do elenco
de fazer salivar (Hou Hsiao-hsien, Gus Van Sant. Michael
Cimino, Manoel de Oliveira, Cronenberg, etc.), não
obteve reações muito animadoras em sua
estréia no Festival de Cannes. O outro é
esse O Estado do Mundo, que preferiu chamar diretores
conhecidos apenas do restrito mundo dos cinéfilos
hardcore, e ainda assim muito mais comentados que vistos.
São diretores com propostas de cinema radicais
que prospectam para o futuro e parecem levar o cinema
para áreas em que ele ainda não esteve
antes. Assim, é a princípio estranho que
nasça um projeto como esse, tendo como berço
a fundação portuguesa Calouste Gulbenkian,
que delegue a diretores tão singulares a tarefa
de responder em filme sobre algo tão amplo quanto
"o estado do mundo". Também é
estranho que apareçam dois diretores pouquíssimo
conhecidos e reconhecidos internacionalmente (Ayisha
Abraham, nosso representante Vicente Ferraz, de Soy
Cuba, o Mamute Siberiano) ao lado de nomes celebrados
dentro do, é verdade, restrito círculo
de defensores do cinema contemporâneo mais inventivo
sendo feito. Mas tamanha esquisitice só tende
a criar mais entusiasmo quanto ao projeto.
De Wang Bing, sabe-se que ele estreou com um filme de
nove horas e três partes intitulado Ao Oeste
dos Trilhos (Tie Xi Qu, 2003), um documentário
monumental no tamanho e minucioso na forma de filmar
o lento e gradual desaparecimento de um dos maiores
parques industriais da China. O filme já vem
sendo cotado como um dos documentários mais significativos
da década, mas o público brasileiro sequer
tomou conhecimento dele. Seria algo totalmente normal,
a não ser pelo fato de que o Brasil tem um festival
internacional de documentários. A instalação
na temporalidade específica daquele lugar, a
atmosfera que o filme consegue captar, a impressão
de quase esfacelamento e, naturalmente, a tour de
force exigida para assistir ao filme compõem
uma experiência única, e quem chega até
o final sabe que não mpode perder a menor chance
de ver outro filme de Wang Bing. Sobre A Oeste dos
Trilhos, ninguém menos que Alain Bergala
disse que reinventa o cinema com uma pequena câmera
digital.
Chantal Akerman talvez seja conhecida apenas de nome.
É uma cineasta de origem belga que realizou em
1976 o filme Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce,
1080 Bruxelles, um filme de 3h20 que levava a uma
nova radicalidade a impressão de tempo real no
cinema, mostrando a protagonista, interpretada por Delphine
Seyrig, realizando tarefas prosaicas e cotidianas. Nos
últimos anos, ela teve seu A Prisioneira
(La Captive, 2000) exibido apenas no Festival
do Rio (e comentado aqui),
sem lançamento comercial. Infelizmente, De
l'autre côté (2002), que foi bem faladíssimo
por onde passou, foi ignorado pelos festivais brasileiros.
Espera-se que o recente lançamento de boa parte
de obra de Chantal Akerman em dvd lá fora opere
uma reavaliação do estatuto da cineasta,
porque até onde se pôde ver daqui trata-se
de uma das trajetórias mais interessantes e ao
mesmo tempo desconhecidas do cinema contemporâneo.
Ao menos nessa edição de 2007, teremos
a chance de ver seu episódio "Tombée
de nuit sur Shanghai".
Pedro Costa foi outro que apareceu com mais destaque
com um filme que trabalhava a idéia de tempo
real no limite entre ficção e documentário.
No Quarto da Vanda é uma dessas experiências
únicas de relação com espaço,
personagem, trabalho em cima de uma situação
real... Acrescendo a tudo isso o fato de que naquele
momento a tecnologia digital finalmente encontrava uma
forma autêntica e apropriada de se estabelecer,
sem tentar emular a película. Ano passado, o
íncrivel Juventude em Marcha consolidou
definitivamente o nome de Pedro Costa no rol dos realizadores
mais decisivos do cinema contemporâneo. Mas sobre
isso não mais falaremos, uma vez que já
escrevemos um bocado sobre o filme, em crítica,
diário, textos pós-festival...
Apichatpong Weerasethakul é outro favorito da
revista, e o leitor de Contracampo bem sabe que esse
jovem diretor tailandês é uma dessa figuras
que, junto com Hou Hsiao-hsien, Naomi Kawase, Claire
Denis e mais uns poucos representa a linha de frente
de uma nova relação com a imagem cinematográfica
e com a noção de história a ser
narrada. Aliás, narração parece
ser a grande incógnita da qual parte Joe Weerasethakul:
com que propriedade surge uma história? qual
é seu caráter? de onde ela nasce? com
que propósitos? Discurso mitológico, jogo,
narração encontra a antinarração.
Nosso tailandês voador cria vasos comunicantes
entre o diegético e o não-diegético,
nos convidando a perceber a imagem e a narração
de uma outra forma. Em Mal dos Trópicos,
a história fendia-se em duas para aproximar dois
registros inteiramente distintos. No obrigatório
Síndromes e um Século, constrói-se
um mecanismo narrativo talvez só igualado em
complexidade por Mulholland Dr. de David Lynch,
mas de uma hora para outra a própria noção
de história se esfacela diante do poder afetivo
das simples coisas acontecendo, prescindindo de qualquer
narração possível o que,
de certa forma, remete à coda "At Noon"
que fecha o primeiro longa de Apichatpong Weerasethakul,
Mysterious Object at Noon. Resta saber o que
ele apronta dessa vez. Conferir é uma necessidade.
Ruy Gardnier
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