O ESTADO DO MUNDO
De Ayisha Abraham, Chantal Akerman, Wang Bing, Pedro Costa, Vicente Ferraz e Apichatpong Weerasethakul

É redundante dizer que filme em episódios sempre gera muito mais expectativas do que rende resultados. Na maioria das vezes, percebe-se que o cineasta adorado não lida tão bem com o formato curto e com as especificações do projeto, a continuidade entre os filmetes é pequena ou inexistente, a sensação de todo se esvai e as partes não se sustentam sozinhas. Além, claro, do terrível ar de oportunismo que esses projetos geralmente apresentam. Ano passado, foi Paris, te Amo, filme que se inscreve em todas as características negativas apresentadas acima. Dessa vez o Festival do Rio apresenta dois filmes de segmentos. Um é Chacun son cinéma, que, apesar do elenco de fazer salivar (Hou Hsiao-hsien, Gus Van Sant. Michael Cimino, Manoel de Oliveira, Cronenberg, etc.), não obteve reações muito animadoras em sua estréia no Festival de Cannes. O outro é esse O Estado do Mundo, que preferiu chamar diretores conhecidos apenas do restrito mundo dos cinéfilos hardcore, e ainda assim muito mais comentados que vistos. São diretores com propostas de cinema radicais que prospectam para o futuro e parecem levar o cinema para áreas em que ele ainda não esteve antes. Assim, é a princípio estranho que nasça um projeto como esse, tendo como berço a fundação portuguesa Calouste Gulbenkian, que delegue a diretores tão singulares a tarefa de responder em filme sobre algo tão amplo quanto "o estado do mundo". Também é estranho que apareçam dois diretores pouquíssimo conhecidos e reconhecidos internacionalmente (Ayisha Abraham, nosso representante Vicente Ferraz, de Soy Cuba, o Mamute Siberiano) ao lado de nomes celebrados dentro do, é verdade, restrito círculo de defensores do cinema contemporâneo mais inventivo sendo feito. Mas tamanha esquisitice só tende a criar mais entusiasmo quanto ao projeto.

De Wang Bing, sabe-se que ele estreou com um filme de nove horas e três partes intitulado Ao Oeste dos Trilhos (Tie Xi Qu, 2003), um documentário monumental no tamanho e minucioso na forma de filmar o lento e gradual desaparecimento de um dos maiores parques industriais da China. O filme já vem sendo cotado como um dos documentários mais significativos da década, mas o público brasileiro sequer tomou conhecimento dele. Seria algo totalmente normal, a não ser pelo fato de que o Brasil tem um festival internacional de documentários. A instalação na temporalidade específica daquele lugar, a atmosfera que o filme consegue captar, a impressão de quase esfacelamento e, naturalmente, a tour de force exigida para assistir ao filme compõem uma experiência única, e quem chega até o final sabe que não mpode perder a menor chance de ver outro filme de Wang Bing. Sobre A Oeste dos Trilhos, ninguém menos que Alain Bergala disse que reinventa o cinema com uma pequena câmera digital.

Chantal Akerman talvez seja conhecida apenas de nome. É uma cineasta de origem belga que realizou em 1976 o filme Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, um filme de 3h20 que levava a uma nova radicalidade a impressão de tempo real no cinema, mostrando a protagonista, interpretada por Delphine Seyrig, realizando tarefas prosaicas e cotidianas. Nos últimos anos, ela teve seu A Prisioneira (La Captive, 2000) exibido apenas no Festival do Rio (e comentado aqui), sem lançamento comercial. Infelizmente, De l'autre côté (2002), que foi bem faladíssimo por onde passou, foi ignorado pelos festivais brasileiros. Espera-se que o recente lançamento de boa parte de obra de Chantal Akerman em dvd lá fora opere uma reavaliação do estatuto da cineasta, porque até onde se pôde ver daqui trata-se de uma das trajetórias mais interessantes e ao mesmo tempo desconhecidas do cinema contemporâneo. Ao menos nessa edição de 2007, teremos a chance de ver seu episódio "Tombée de nuit sur Shanghai".

Pedro Costa foi outro que apareceu com mais destaque com um filme que trabalhava a idéia de tempo real no limite entre ficção e documentário. No Quarto da Vanda é uma dessas experiências únicas de relação com espaço, personagem, trabalho em cima de uma situação real... Acrescendo a tudo isso o fato de que naquele momento a tecnologia digital finalmente encontrava uma forma autêntica e apropriada de se estabelecer, sem tentar emular a película. Ano passado, o íncrivel Juventude em Marcha consolidou definitivamente o nome de Pedro Costa no rol dos realizadores mais decisivos do cinema contemporâneo. Mas sobre isso não mais falaremos, uma vez que já escrevemos um bocado sobre o filme, em crítica, diário, textos pós-festival...

Apichatpong Weerasethakul é outro favorito da revista, e o leitor de Contracampo bem sabe que esse jovem diretor tailandês é uma dessa figuras que, junto com Hou Hsiao-hsien, Naomi Kawase, Claire Denis e mais uns poucos representa a linha de frente de uma nova relação com a imagem cinematográfica e com a noção de história a ser narrada. Aliás, narração parece ser a grande incógnita da qual parte Joe Weerasethakul: com que propriedade surge uma história? qual é seu caráter? de onde ela nasce? com que propósitos? Discurso mitológico, jogo, narração encontra a antinarração. Nosso tailandês voador cria vasos comunicantes entre o diegético e o não-diegético, nos convidando a perceber a imagem e a narração de uma outra forma. Em Mal dos Trópicos, a história fendia-se em duas para aproximar dois registros inteiramente distintos. No obrigatório Síndromes e um Século, constrói-se um mecanismo narrativo talvez só igualado em complexidade por Mulholland Dr. de David Lynch, mas de uma hora para outra a própria noção de história se esfacela diante do poder afetivo das simples coisas acontecendo, prescindindo de qualquer narração possível – o que, de certa forma, remete à coda "At Noon" que fecha o primeiro longa de Apichatpong Weerasethakul, Mysterious Object at Noon. Resta saber o que ele apronta dessa vez. Conferir é uma necessidade.

Ruy Gardnier