Após seu filme anterior, Les
Temps qui changent, ter sido totalmente ignorado
no Brasil, tanto pelos festivais internacionais,
quanto pelo circuito, André Téchiné retorna a nossas
telas nesta edição do Festival do Rio, com seu trabalho
mais recente, As Testemunhas. O filme gira
em torno de Manu, rapaz que chega a Paris em meados
da década de 80 para arranjar trabalho e conhece
todo um novo estilo de vida através do amigo Adrien,
cinqüentão gay e extrovertido. Numa viagem de barco,
Manu será apresentado ao casal Mehdi e Sarah. Como
pano de fundo, a drama da eclosão da AIDS, que sacudiu
a sociedade como “a epidemia dos homossexuais” – o
acontecimento do qual os personagens são propriamente “as
testemunhas”. A julgar pela sinopse e pelos trabalhos
recentes do diretor (especialmente seu último), As
Testemunhas nos traz a promessa de um belo filme.
Uma pequena “comunidade”, formada de pessoas próximas. Esta é uma forma recorrente
de Téchiné trabalhar seus personagens ao longo de sua obra. Sua sensibilidade
os coloca como pólos autônomos dispostos numa espécie de “palco do presente”,
que freqüentemente envolve, ainda que de forma indireta, cenários políticos. É o
caso de Rosas Selvagens (a Guerra da Argélia), de Loin (a imigração
marroquina clandestina) e de Anjo da Guerra (os efeitos da Segunda Guerra
no interior da França), por exemplo. Em Les Temps qui changent, o Marrocos
serviu novamente de ambiente, mas, desta vez, com pontuações políticas ainda
mais sutis que em Loin. Algumas discussões de pauta numa emissora de rádio,
escutadas en passant; a perseguição de um homem negro pela polícia pela
rua, testemunhada pela personagem de Catherine Deneuve; o aspecto ideológico
problemático do projeto de centro midiático no qual trabalha o personagem de
Gerard Depardieu.
A naturalidade com que o diretor apresenta suas “questões” não permite que elas
se tornem “assuntos de pauta” dentro da narrativa. Assim, temos, em Les Temps
qui changent, de uma só vez: Nadia como uma mãe solteira de origem marroquina
com um filho francês, a aceitação plácida de um relacionamento aberto entre ela
e Sami, a homossexualidade de Sami ou a infidelidade de seu pai reconhecida sem
traumas por sua mãe, Cécile. Pois a real questão do filme não está nestas configurações
que assumem as vidas dos personagens, mas na capacidade destes de reconfigurarem
a si mesmos no decorrer do tempo.
Há mais de trinta anos, Antoine (Gerard Depardieu) guarda em si a paixão por
Cécile (Catherine Deneuve). Incapaz de se livrar do sentimento, ele obsessivamente
planeja um reencontro. Mas Cécile, que seguiu com o curso da sua vida, vê nele
apenas uma assombração do passado. As “mudanças do tempo” a que alude o título
colocam os todos os personagens em constante reavaliação de si, em contraste
com Antoine, que se quer imutável em seu amor.
Podemos esperar, portanto, em As Testemunhas, algo como este delicada
configuração de impulsos e desejos que definem o campo de ação dos personagens,
uns em relação aos outros e de cada um deles em relação ao tempo-espaço do filme.
Pois a habilidade de Téchiné em conceder atenção a todos os “elementos” das comunidades
que ele coloca em cena, quebra com o sentido mais corrente de evolução dramática
da narrativa. Oscilando de um a outro personagem, os roteiros que ele filma são
extremamente cuidadosos em manter um preciso equilíbrio entre uma história a
ser contada, com ganchos e momentos de distensão, e um livre desenrolar de situações.
Paralelamente, não deixa de suscitar curiosidade as futuras “modulações” estéticas
do cinema do diretor. Em Les Temps qui changent, efeitos de vídeo que
criam uma picturização e falseamento do movimento compõem um dos momentos mais
fortes do filme: tratores trabalhando e removendo a terra (o rebuliço criado
na vivência do tempo pelas “obras” de Antoine). Em outros momentos, estéticas
audiovisuais aparentemente estrangeiras ao estilo do filme invadem sem fluxo
sem pedir licença: imagens “documentais” de trabalhadores, tremidas e de pobre
definição; um vídeo do projeto arquitetônico comandado por Antoine realizado
totalmente em computação gráfica; um documentário televisivo sobre magia negra.
Esta atenção a uma gama de recursos possíveis, capazes de intensificar a experiência
do filme, é, sem dúvida, uma agradável surpresa do último trabalho de Téchiné e
lança sobre seus próximos filmes ainda maior expectativa.
Tatiana Monassa
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