Em 2003 o Festival do Rio proporcionou
uma grande experiência para nossos olhos e espíritos
ao trazer o filme Shara,
de Naomi Kawase. Ali, um novo encontro
foi travado e um cinema que emana vida se mostrou presente.
Melhor que presente, mostrou-se realmente cheio de vivacidade
e frescor: a câmera de Kawase está no mundo e carrega consigo novos ares. Não se
trata de grandes inovações cinematográficas, de inventividade,
exatamente; mas é que seu olhar é extremamente vivo,
doce, atento, sensível e intuitivo,
como poucos o são.
Apesar de não ser seu primeiro filme, Shara
parece ser uma espécie de consolidação de uma visão
de mundo e de uma crença cinematográfica da diretora.
Em seu filme anterior a Shara,
Letter from
a yellow cherry blossom (ambos
são de 2003), Kawase
filma seu amigo no leito de morte: seus últimos momentos
juntos, suas falas sobre um e o outro, sobre as coisas
do mundo. Em algum momento ele comenta a importância
da imagem fotográfica – cinema e fotografia – como documento.
Ela retruca, dizendo que não gosta das palavras documento
e documentário, porque para ela são
passado. A ela mais interessa falar sobre “memória”,
porque está no presente. Porque a memória é o passado
trazido conosco, é o mundo e a vida que carregamos e
não um passado registrado e, então, mumificado.
No início de 2007 foi a vez de Tarachime que, felizmente,
também pôde ser exibido no Rio, bem como nas outras
cidades em que o festival É Tudo Verdade acontece. Média-metragem
não-ficcional, trata do ato de filmar de perto o brotamento da vida, que
é o nascimento, e a morte. Neste caso, a importância
da palavra “perto” nem é passível de ser relativizada,
visto que a realizadora é câmera-corpo (no sentido em
que as imagens partem dela, imersa naquele espaço) e
também é câmera (no sentido da pessoa que, fisicamente,
filma) e corpo (porque se filma, porque seu corpo é
mostrado e o vemos se relacionar com aquele meio e com
os outros corpos). Em Tarachime
não se trata apenas de algo “documental”, mas também
de uma auto-biografia. E no caso de Kawase
a essência de uma auto-biografia
jamais seria factual, porque para ela se colocam primeiro
os sentimentos e as sensações diante da vida e do estar
no mundo. Sendo assim, a morte que ela filma é a da
avó, que a criou, portanto uma morte de mãe; e o nascimento
é o do seu próprio filho, é a vida que vem de seu próprio
corpo.
Agora a ansiedade toma conta de nossos corpos, bem como
a alegria de poder ver no cinema, num mesmo ano, dois
filmes desta talentosa jovem realizadora. Floresta dos Lamentos (Mogari no mori),
último longa de Naomi Kawase,
era extremamente aguardado por todos nós porque promete
dar seqüência ao belo trabalho que ela vem construindo: um cinema da possibilidade de renovação,
da força que há na vida, da superação dos traumas, do
enfrentamento das dores e, principalmente,
do estar presente.
Luisa Marques
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