Um filme sobre Bob Dylan, artista
multifacetado, no qual o personagem é interpretado
por seis diferentes atores. A “descrição” de I’m
Not There, novo filme de Todd Haynes, é, ao mesmo
tempo, sua premissa e sua sinopse. A irresistível tentação
de afirmar de antemão, antes mesmo de podermos ver
o filme, que se trata de uma obra-prima, é proporcional à grandiosidade
de sua proposta. Cineasta conceitual por excelência,
Haynes trabalha sempre com estruturas narrativas significantes.
E sua operação de busca de sentidos e de interrogação
de fenômenos que envolvem cultura popular e sociedade
estabelecida, aponta para um clímax com este trabalho.
É preciso deixar claro, no entanto, que Todd Haynes está muito distante do “cinema
de tese” mais corrente, no qual é vital veicular um discurso acima de tudo. O
motivo maior de fascinação com a obra do cineasta reside na articulação de suas
investigações conceituais com suas pesquisas estéticas. Porque, para Haynes,
não
basta transmitir uma enunciação como conteúdo, é preciso enunciar através de
uma elaboração plástico-formal.
Assim sendo, em Veneno, por exemplo, para tratar da relação de uma sociedade
conservadora com o homossexualismo, o cineasta pega o trabalho de Jean Genet, ícone
de uma dita contra-cultura homossexual, para montar três contos que remetam aos
conflitos no seio deste choque inevitável entre o indivíduo “marcado” e seu entorno.
E é preciso que cada um dos contos molde-se a partir de estéticas distintas e
significativas: o primeiro, de um curta do próprio Jean Genet, o segundo, da
ficção científica da década de 50, e o terceiro, das encenações televisivas de
dramas familiares em programas sensacionalistas.
Esta abertura à manifestação de uma singularidade contra a organização do mundo
que a rodeia talvez seja o grande tema da obra de Todd Haynes, ao lado de sua
obsessão em emular estéticas, deslocando os sentidos adquiridos em seu uso originário.
Espécie de laboratório de “engenharia estética” a serviço de uma defesa da subjetividade
dentro da lógica do coletivo, trata-se de um projeto artístico de admirável envergadura,
que não encontra pares no cinema contemporâneo – talvez apenas nas artes plásticas.
A exuberância visual de Longe do Paraíso condensa esta proposição de forma
exemplar: por trás das cores e dos enquadramentos do cinema de melodrama familiar
de Douglas Sirk, um profundo desejo de eclosão da ordem. A estética tragando
o mundo pra dentro de si, aprisionando-o num produto dele mesmo e conformando
o universo no qual os personagens (e, por extensão, o espectador) estarão imersos.
De maneira análoga, em A Salvo, a placidez suprema da forma confunde-se
com os contornos da sociedade morta em que vive a personagem, tudo silenciosamente
conspirando para sua pane interna.
De acordo com os materiais de divulgação de I’m Not There, que mencionam
a influência das personas incorporadas por Bob Dylan na sociedade e a
sistemática evasão do artista pela re-invenção, podemos imaginar uma espécie
de entrecruzamento entre aspectos de Longe do Paraíso e A Salvo (a
sociedade como mônada engolidora de singularidades) com aspectos de Velvet
Goldmine (o embate do artista para se adaptar ao mundo por meio do deslizamento
e da
criação).
Homenagem de dimensões artísticas, culturais e históricas, pra dizer o mínimo, I’m
Not There promete ser o filme-monumento deste ano e um belo enigma cinematográfico.
Aguardamos, pois, com curiosidade e ansiedade, o momento de finalmente estarmos
face a face com o último giro de um cineasta brilhante.
Tatiana Monassa
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