ALAIN RESNAIS E A MEMÓRIA DO MUNDO

Como nota Jean-Sébastien Chauvin no texto publicado em nossa presente edição, há nos filmes atuais de Alain Resnais a insistência de uma antiga e “profunda inquietude sobre a desaparição do sentido dos signos”. Amores Parisienses e as roupas empilhadas que remetem a Noite e Neblina. Medos Privados em Lugares Públicos e a neve incessante que remete às cinzas caindo sobre os corpos no início de Hiroshima Meu Amor. Mas o que fazem as cinzas da tragédia nuclear no último filme de Resnais? É como se elas preservassem, no fundo do plano, o fantasma do século XX. O diretor filma o mundo dos mortos – ou faz os mortos retornarem ao mundo dos vivos –, portanto é “normal” que haja flocos do passado caindo constantemente sobre o filme. Assombrando-o.


Primeiro plano de Hiroshima Mon Amour, as cinzas sobre os corpos

Ainda é possível ouvir os gritos (Noite e Neblina, 1955)

Voltemos à época de Noite e Neblina: o cinema, ao não filmar os campos de concentração e extermínio no momento mesmo em que eram construídos, teria cometido um erro imperdoável? Essa omissão teria criado uma lacuna impossível de se compensar, um fosso aberto sobre o real? Godard, por exemplo, acha que sim, sempre tratou esse atraso como uma falta grave, inexpiável, pois era missão do cinema (quase científica, já que ligada ao seu estatuto de ferramenta de conhecimento e registro concreto do mundo) estar lá, filmar. Arte do presente, do corpo-a-corpo com a experiência de estar-no-mundo, o cinema se viu então diante de um vazio. Serge Daney nunca hesitou em identificar às imagens dos campos – ou melhor, ao ponto cego que essas imagens ocuparam – o marco zero da construção de um olhar “justo”, de um olhar que instaurava, no seu ato de representação e, sobretudo, de percepção, uma nova modalidade de distância. O intervalo constitutivo da representação era agora uma instância moral. Em Noite e Neblina, Resnais inaugura essa justeza do olhar, esse reconhecimento de que o cinema chegou depois, e com isso planta uma das pedras fundadoras do cinema moderno francês.

Se ele chegou atrasado aos campos, passeou por entre os mortos. A relação com a realidade se torna mórbida e violenta, mas este é o preço do não esquecimento, da luta contra a desaparição do significado de uma paisagem histórica. Resnais não se permite metáforas, só pode abordar o assunto literalmente. Face à iminência da desaparição, face ao mato que cresce e quer encobrir (por “força da natureza”, alguns diriam tendenciosamente) o palco da ignomínia, ele interroga que poder terá a imagem cinematográfica de não aquiescer ao esquecimento, de ler a narrativa histórica no silêncio dos campos abandonados, de ouvir ainda os gritos. As imagens de Noite e Neblina estabelecem relações complexas com a narração de Jean Cayrol (escritor, sobrevivente do Holocausto, duplamente implicado no filme), dita em off num misto de sobriedade científica e pujança estética. O visível escondido sob o invisível é revelado pela mise en scène que advém das palavras, “o momento de diálogo entre a voz que as faz ressoar e o silêncio das imagens que mostram a ausência daquilo que as palavras dizem” (ver Jacques Rancière, “L’inoubliable”, em Arrêt sur histoire). Na visita ao local onde ficava um campo de extermínio, há a densidade dos eventos ali ocorridos. E ao mesmo tempo não há nada. Os travellings de Resnais fazem uma varredura de superfície do campo desativado, insistem para que não lhe desapareçam os traços. Pois como nos diria a personagem de Emmanuelle Riva em Hiroshima Meu Amor, o tempo ameaça não preservar nada mais além do nome. Ou talvez nem o nome.


Imagem de arquivo de uma tomada aérea sobre um campo de concentração (Noite e Neblina). Ninguém viu os campos...


... mas o filme nos vê.

A principal característica da exterminação nazista dos judeus na Segunda Guerra foi sua invisibilidade, sua obscura e historicamente mal explicada invisibilidade. As investidas aéreas dos aliados não "repararam" nos campos, que teriam de ser descobertos a pé. A tarefa de Resnais em Noite e Neblina é inverter o processo da desaparição dos signos, nem que para isso seja preciso lutar contra o inelutável (o tempo, a amnésia). Impedindo que o extermínio se resuma ao irrepresentável – e hoje isso serve para combater aquela idéia falsa de que o cinema moderno nasceria de uma crise de representabilidade –, o filme salva as imagens de arquivo da sua eventual banalidade, recontextualizando-as, montando-as ao lado de imagens “atuais”, coloridas, em movimento. É um cinema que sabe articular, um cinema do tempo da montagem, que trabalha a duração do plano. Resnais se mostra capaz de um rigor onde até mesmo a historiografia, naquele momento, cambaleava. Cada imagem de Noite e Neblina dá forma a uma crise do olhar e da consciência.

Era fácil encontrar motivos para uma fuga do regime figurativo diante do horror do Holocausto. As próprias fotografias feitas nos campos ajudavam: pilhas de roupas e pilhas de corpos se acham no limiar do indiscernível. Como não encontrar ali um terreno sinistramente fértil para uma arte abstracionista? “Isso tudo é cabelo de mulher”, a voz de Jean Cayrol, no entanto, afirma sobre uma imagem que começa indefinida, chapada, abstrata, e pouco a pouco se abre até ganhar contornos mais claros. Não podemos nos enganar, aquilo tudo é cabelo de mulher, é isso que aquela imagem imprimiu. É preciso guardar essa evidência, mesmo se o que essa imagem figurar for sua própria limitação para representar o que está nela (em última análise, a morte das pessoas às quais pertencia toda aquela montanha de cabelo). Trata-se de mostrar o que justamente não tem imagem: o horror absoluto (o inumano?). E é aí que a palavra entra. A potência da palavra, a preeminência da palavra, que se torna audível na cena histórica restituída pela imagem.

Jacques Rancière (no texto já citado) retorna à célebre fórmula de Adorno para invertê-la: “depois de Auschwitz, para mostrar Auschwitz, somente a arte é possível, porque ela é sempre o presente de uma ausência, porque é seu trabalho mesmo dar a ver um invisível, pela potência regida das palavras e das imagens, juntas ou disjuntas, porque somente ela está assim apta a tornar sensível o inumano”. A questão, portanto, não consiste em banir a representação, mas em saber de que maneira é possível responder ao mutismo dos lugares, à indiferença da terra, dos muros, do arame farpado, do capim. A imoralidade de algumas representações que viriam depois (o famoso travelling de Kapò é só um exemplo dentre muitos) constitui uma prova da mesma natureza, porém de sinal invertido: essas representações “abjetas” alertariam para a necessidade de se questionar os modos de percepção no cinema, de reconstruir o lugar do espectador a partir de um ponto de vista (justo) sobre as primeiras imagens da experiência nos campos.


Pilhas de roupas que terminam por se parecer com pilhas de corpos (Noite e Neblina)


O ferro tornado vulnerável como a carne, exposto no museu de Hiroshima

Em Hiroshima Meu Amor (1959), o museu é o lugar para expor as cinzas da destruição causada pela bomba atômica: os cabelos das mulheres (novamente), os objetos de metal retorcidos, deformados pelo calor, “frágeis como carne”, os pedaços de pele conservados "ainda no frescor de seus sofrimentos", as fotografias, as reconstituições. As reconstituições, "na falta de outra coisa". Fora dali, todos esses objetos se deteriorariam, perderiam a definição e o significado; no museu eles ganham forma, força, se preservam, se reverberam, constroem a memória de Hiroshima. Após Hiroshima, assim como após Auschwitz, portanto, somente a arte é possível. Ao lado de Noite e Neblina, Hiroshima Meu Amor consolida o momento em que as tragédias do século e o espectador de cinema se encontram.

Hiroshima é um filme sobre o desespero tanto da lembrança quanto do esquecimento. As duas coisas podem enlouquecer, assustam: não conseguir esquecer e não conseguir lembrar. Essas são as fases sucessivas do drama da personagem de Riva, que tenta desesperadamente se definir em relação ao que ela é em Hiroshima e ao que era em Nevers. Ficar no meio do caminho é que o perigo: é necessário abandonar essa meia-luz existencial, escolher entre permanecer na noite ou sair para o dia (a maior parte do tempo diegético do filme é esse parêntese entre a noite e o dia). Ela precisa se recompor como sujeito, da mesma forma que Hiroshima precisa se reconstruir após a bomba.

Muriel, ou o tempo de um retorno (1963), como diz o título, fará um mesmo movimento de preencher a lacuna aberta pelo passado no presente. O intervalo ocorreu, mais uma vez. Os amantes se reencontram, mas seus corpos já falam línguas diferentes. A palavra, por sua vez, já não tem o poder de articulação de Noite e Neblina. Preserva "apenas" a força política e a estranheza poética (o roteiro é também de Jean Cayrol), quando o jovem que não se livra da memória da guerra – a batalha indigna dos colonizadores contra a emancipação de suas colônias – narra os absurdos crimes de guerra cometidos a Muriel, a argelina que nunca aparece, pois enquanto ele fala vemos imagens em super-8 de soldados confraternizando, vemos lugares visitados pelas tropas francesas, vemos a paisagem da Argélia. Uma espécie de reconstituição da realidade a partir de um despedaçamento prévio, de uma cisão entre o audível e o visível (estes parecem faixas autônomas em busca de uma fusão impossível devido ao próprio intervalo entre um e outro, entre o acontecimento e a imagem do acontecimento enfim projetada). A opacidade de Muriel atinge níveis muito mais altos que o comum mesmo em se tratando de Resnais. O filme cria a sensação de um tempo que não passa, tempo de um retorno, tempo de uma reflexão: um valor infinitesimal da narrativa, um hiato na duração do universo.  





Olhares cruzados, olhares perdidos (Hiroshima Meu Amor)

Há em Resnais um forte desejo de cosmologia, de fazer uma ciência da natureza que seja também a história do universo contada do ponto de vista do homem nele inserido – e que enxerga, assim sendo, apenas uma parte, um fragmento, e por isso não pode totalizar ou concluir absolutamente nada. É uma dupla manifestação: de compreender a existência em termos de desejo, sensação, imprecisão e abertura e de, ao mesmo tempo, definir o campo problemático no interior do qual a experiência humana poderia ser observada sistematicamente, abstraída do fluxo da vida material para ser entregue a uma hipótese científica (lembrar de Meu Tio da América). Nos filmes de Resnais do período moderno, vemos um mundo que se forma por acúmulo de contradições, por explosões (as cenas de horror em Noite e Neblina e Hiroshima, a montagem cubista na primeira seqüência de Muriel), por movimentos bruscos da História. As abstrações se somam a fim de atingir uma realidade concreta. Surge uma diegese marcada pela dialética entre o passado e o presente, o concreto e o abstrato, o casal e a sociedade (Muriel, Hiroshima e também Marienbad). Para não deixar que o passado se esvaia do presente, o impulso fundamental de Resnais está expresso no título de um de seus curtas-metragens de início de carreira: Toda a memória do mundo. O tempo da memória é o tempo menos da fixação do que da circulação. No que depender de Resnais, as cinzas de Hiroshima vão sempre circular entre nós.

Luiz Carlos Oliveira Jr.