SANEAMENTO BÁSICO, O filme
Jorge Furtado, Saneamento Básico, o filme, Brasil, 2007

Saneamento Básico, o filme. O título do último filme de Jorge Furtado sugere, de alguma forma, a “metalinguagem” que existiria no seu decorrer. O filme-dentro-do-filme; o financiamento público do audiovisual brasileiro (no qual Furtado se insere); a responsabilidade do emprego deste dinheiro. Mas vemos que, de metalinguagem propriamente dita, pouco há. O que há é o tema da realização cinematográfica como feito e processo. Assim sendo, o “fazer um filme” torna-se um dado narrativo e as questões decorrentes dele, como produção e financiamento, um diálogo com uma realidade. Neste sentido, não se pode deixar de observar que Saneamento Básico, o filme, mantém um diálogo direto com o curta Fraternidade, realizado por Jorge Furtado para a campanha “Valores do Brasil” do Banco do Brasil. Nele, o cineasta utilizou a quantia monumental oferecida (700 mil) a favor do tema que lhe foi dado (fraternidade) e construiu uma quadra de esportes na Ilha das Flores como acontecimento a ser registrado pela câmera. O filme dobra-se sobre si, curto-circuitando sua própria realidade exterior e sua narrativa (ou “conteúdo”), e questiona os meios de produção.

Mas, em Saneamento Básico, a questão “fazer um filme” não se coloca no lado do diretor, do proponente (da intervenção do realizador), mas no dos personagens. Ao retirá-lo da esfera da metalinguagem e ao transportá-lo do meio cinematográfico “profissional”, para o meio rural-familiar, Furtado deixa clara sua intenção de falar sobre o fazer cinema propriamente dito. Ainda que esteja em jogo o contexto político brasileiro (o descuido com o bem-estar dos cidadãos, a estrutura de patrocínio cultural), o centro das atenções é o processo de realizar um filme, tanto em seu aspecto mais factual e material, quanto em seu aspecto essencialmente lógico-emotivo. Importa mais a relação dos personagens com o fabricar imagens como sendo uma narrativa em si mesma, do que um possível jogo retórico entre narração e narrativa.

Desta forma, Jorge Furtado trabalha primordialmente com o que deve encenar: o percurso que atravessam os personagens, desde que se deparam com a possibilidade de fazer um vídeo como meio de financiar a obra em sua cidade, até concluírem o filme como um projeto de engajamento pessoal e afetivo. A piada sobre o “filme de ficção” (ou a própria deixa da verba disponível para um filme e não para a obra) torna-se menor diante do que vivem os personagens. E talvez o principal elemento para a construção disto seja a forma como o diretor trabalha a dramaturgia: com ênfase na cena, no sentido mais clássico. Furtado coloca seus atores como objeto de destaque diante da câmera, privilegiando enquadramentos em plano americano, plano médio e plano médio fechado. Entre situações-piada e situações-drama, vemos os personagens evoluírem em ação e presença. Quase como em uma estrutura de palcos, as cenas sucedem-se sem ênfase maior na evolução dramática do roteiro (embora o roteiro esteja lá o tempo todo como elemento fundamental).

Neste caminho dos personagens, podemos perceber a cada instante os detalhes nos quais se ancora a narrativa. De forma simples, contemplamos os inúmeros elementos que compõem o processo de um filme, do ponto de vista do trabalho físico e material e do sensível e inteligível (cotidianos para quem trabalha com cinema, mas muitas vezes secretos para quem lida apenas com o objeto filme). Vemos Marina e Joaquim discutindo as possibilidades existentes para o roteiro (não há limites para o que pode ser criado, à parte da exigência “ficção” do edital), contabilizando gastos e calculando orçamento, testando figurinos, objetos, falas e cenas, e avaliando (em qualidade e viabilidade) todas as idéias que pipocam. Porque a grande aventura é descobrir como produzir acontecimentos e sentimentos com imagens – e com quais imagens.

Jorge Furtado, no entanto, sabe fugir dos riscos se lhe impõem: o peso de um didatismo (o processo de produção cinematográfica passo-a-passo) e o ridículo do amadorismo do filme dos personagens (o resultado tosco de quem realiza sem dominar a técnica e sem possuir os meios). Saneamento Básico é instrutivo e é cômico. Mas, antes disso, é afetivo. Seja para quem conhece os meandros da experiência de realizar um filme, seja para quem a desconhece por completo, o filme comunica uma paixão em curso.

Marina e Joaquim se apaixonam por uma atividade antes desconhecida, ou, melhor dizendo, atividades. Tratam-se, para eles, das descobertas mais sutis e discretas de quem se engaja no fazer cinematográfico – mesmo que isto, por ventura, não esteja explicitado –, assim como: o destilar de uma sensação em uma sucessão de imagens; a descrição objetiva de uma visualização mental vaga e abstrata; o surpreender-se com a manifestação de um ator diante da câmera; os imprevistos que se oferecem como meio de criação. Talvez por isso possamos rir com leveza do fato deles ignorarem a gravação descontínua (e a montagem posterior), não ensaiarem as falas e a impostação de voz, ou “plantarem” informações para a compreensão do roteiro nos diálogos. No fim das contas, tudo isto são detalhes. As dificuldades enfrentadas (por desconhecimento ou outros tipos de limitações) não impedem que o processo seja recompensatório e enriquecedor para os envolvidos e que o produto final se revele satisfatório.

Se, por um lado, Furtado parece em alguns momentos estar fazendo o elogio de um cinema naif e inocente (como num estágio pré-técnica), ou de um vale-tudo criativo para além de qualquer crítica (que todos façam filmes, não importam quais), por outro, há o estímulo da paixão pela criação artística antes de qualquer coisa. E, quem sabe até mais importante, o incentivo que esta tenha meios de se manifestar em qualquer lugar: num grande centro ou numa comunidade afastada. Porque disto depende a saúde artística (para além da rubrica de “cultura”) de um povo: da multiplicidade e diversidade de tudo aquilo que não é ordinário, mas pessoal, inventivo e apaixonado.

Tatiana Monassa