HARRY POTTER E A ORDEM DA FÊNIX
David Yates, Harry Potter and The Order of The Phoenix, EUA/Reino Unido, 2007

O palco da grande batalha final de Harry Potter e a Ordem da Fênix é um gigantesco armazém onde estão estocadas milhares de esferas de vidro, cada uma delas com o nome de alguém numa etiqueta, e ali dentro a profecia que elucida o passado e aponta o futuro destas pessoas. Jovem bruxo marcado pela diferença, o único capaz de fazer frente à maior ameaça do universo da magia, ainda assim Harry Potter é tão dominável quanto qualquer outro destes que têm seu destino escrito numa dessas bolinhas frágeis, sempre a um ponto de se espatifar no chão. Essa contradição fundamental da própria natureza do personagem tinha sido incorporada integralmente por todos os filmes da série até este de David Yates. Estávamos diante de uma figura potencialmente poderosa, e que a cada nova aparição literária e cinematográfica ia transformando esse potencial em realidade, aprendendo novas técnicas, adquirindo controle sobre seus truques, tornando-se de fato o líder que se anunciava desde o nascimento, desde a marca do raio em sua testa e, mesmo assim, qualquer atração paralela, mais chamativa em sua apresentação espetacular, já era o bastante para que se desviasse a atenção de Harry, investindo em ambientes e ações onde o menino não poderia ser mais que um simples passaporte, quando muito um coadjuvante de luxo. Foi assim com a pedra filosofal, com a câmara secreta, com o cálice de fogo, foi assim com a aparição do prisioneiro de Azkaban, momentos em que a encenação desse mundo fantástico, a materialização das escadas que se movem, das pinturas animadas, dos jogos de quadribol, das vassouras voadoras, era a mais fundamental peça de compreensão do que se passava ali no seu interior, dos dramas e aventuras dos personagens que erravam por este mundo. Harry Potter e a Ordem da Fênix, pela primeira vez, abandona o complemento do título por aquilo que aparece na frente dele, e aqui Harry é finalmente o protagonista da história que leva seu nome.

Talvez seja um desdobramento da própria evolução natural da série, ou mesmo uma maneira diferente de se relacionar com a fonte literária, mas o trabalho de David Yates não é tanto de imprimir no filme uma sensação percebida no ambiente (o espírito quase febril do episódio de Alfonso Cuarón) ou de devolver a ele o tom apoteótico que havia se perdido no meio do puro deslumbre (na maneira como Mike Newell não faz mais que restabelecer o caráter de universo fantástico naquilo que Chris Columbus via apenas um palco de brincadeiras de criança). O que A Ordem da Fênix faz é, antes de tudo, demarcar em que lugar todo esse mundo de Harry Potter se realiza, e este lugar é o próprio Harry, seu corpo, sua vida, sua história. Nada que o caminhar da trama épica já não tivesse sinalizado antes, mas aqui a indicação é forte demais para que Yates a ignore. Harry Potter encontra uma nova amiga em Hogwarts, Luna Lovegood, e com ela divide a habilidade que só possuem aqueles que viram a morte de perto, a de enxergar os Testrálios, criaturas aladas, meio cavalos, meio dragões, que guiam todos os veículos do mundo da magia mas que permanecem invisíveis ao olhar comum. Ora, foi o testemunho da morte de Cedric no fim da aventura anterior que permitiu que agora Harry Potter tivesse acesso a todo um universo visual antes desconhecido dele e também da própria materialidade da imagem (antes os veículos pareciam andar sozinhos). Agora Harry os vê, e só por isso o filme também os verá: será sempre através de Harry, e nunca à revelia dele, que A Ordem da Fênix se construirá.

Para isso também contribui um outro traço distintivo do protagonista em relação a todos aqueles que o cercam. Os grandes combates entre os bruxos da série são sempre tomados à distância, numa disputa entre raios de energia lançados de varinha a varinha, sem que nunca haja qualquer contato físico direto entre os oponentes (é assim na batalha final entre Dumbledore e Voldemort, é assim quando a Ordem da Fênix luta com os Comensais da Morte). Há sempre um descolamento fundamental entre o modo como as coisas se exibem aos olhos e a verdade de sua natureza, manifestado principalmente pela introdução da professora Dolores Umbridge na trama. Não se trata de um mero caso de lobo em pele de cordeiro: é como se todo um repertório visual (roupas, tiques, a decoração de seu escritório) fosse forjado para que exatamente a pele de Dolores pudesse se manter intacta, ali debaixo de toda aquela roupa rosa, salvaguardada pela mesma necessidade de distância que guia os duelos aqui travados.

Harry Potter, ao contrário, é aquele que dispõe o próprio corpo à experiência de sua jornada. São várias as manifestações desta entrega absoluta, a começar pelo castigo que Dolores impõe a Harry, fazendo com que uma lição repressiva que ele escreve num papel passe a ser marcada violentamente na pele de sua mão, como uma tatuagem involuntária, deixando nele mais uma cicatriz que relembra seu confronto com o mal. Um confronto que passa a ser interior, e não por uma psicologização simples: Voldemort toma partido desta disponibilidade, e invade os pensamentos de Harry, produzindo ali imagens ilusórias, memórias inexistentes, em algum momento até transformando a figura do jovem bruxo, olhos raivosos e expressão contraída de quem está possuído momentaneamente por uma energia que não é a sua. David Yates, não por acaso, vai até lá com a câmera, e durante os pesadelos de Harry, filma pedaços indistintos de seu corpo, veias saltando, a pele suada se contorcendo, closes extremos de um corpo flagrado no momento em que se torna veículo de outras coisas, de pensamentos sombrios, de perturbações do passado, da própria sobrevivência de uma série de blockbusters.

Sim, porque parece ter sido percebido pelos produtores que o caráter obrigatoriamente dispersivo das aventuras, sempre precisando dar conta de muitas ações e personagens secundários para construir essa idéia da magia como a dimensão paralela que é, com seus códigos éticos e leis físicas próprias, vinha dispersando também aquilo que de mais único existia nesse mundo (bem ou mal já experimentado em inúmeras outras narrativas fantásticas). O valor aqui é o próprio Harry Potter, esse menino que carrega, entre outros fardos, o de protagonizar a franquia de maior sucesso da cultura pop atual sem ter qualquer controle sobre ela. Assim, não é possível falar na politização deste novo filme sem falar da politização do próprio personagem, ou do crescente caráter sombrio das tramas sem mencionar que é esta exatamente a experiência do bruxinho, e desse modo todo o desfile de sub-tramas vai sendo cuidadosamente colocado de lado, de tal maneira que A Ordem da Fênix seja o filme em que vemos a mais aguardada luta épica entre os dois maiores magos da trama, o levante ditatorial de uma leninista-pink, a aparição de uma ordem que congrega todos os famosos bruxos do bem de que gostamos, mas seja, acima de tudo, o filme que reconquista Harry para si.

Rodrigo de Oliveira

 

 








Em A Ordem da Fênix, Harry Potter finalmente assume
o protagonismo de sua própria história