LA JETÉE & SEM SOL
Chris Marker, La Jetée, França, 1962
Chris Marker, Sans Soleil, França, 1983

Apesar do longo espaço de tempo que os separa, La Jetée e Sem Sol são dois filmes que se complementam. Não são filmes que precisam, necessariamente, ser vistos juntos; porém, quando postos lado a lado, o mínimo que se pode dizer é que se potencializam. Se Sem Sol se impõe como um ensaio livre, inclassificável até, La Jetée é um dos poucos filmes de ficção de Marker. Justamente o cineasta que nunca conta histórias constrói, neste curta-metragem (29 minutos), uma das mais bonitas histórias já contadas - a história de um homem assombrado por uma imagem de infância. Na verdade, La Jetée pode ser considerado um foto-romance, uma seqüência de fotos inanimadas e que, no entanto, se movimentam, criam escalas dentro do quadro, através do ritmo da edição - o excepcional trabalho de Marker com o som e com a montagem, próximos, como quase todos os trabalhos do cineasta, da linguagem multimídia. Mas a opção do artista em fazer um filme com uma simples máquina fotográfica não se pode justificar apenas por questões econômicas. La Jetée é um filme sobre recordações, registros da memória em um mundo destruído, o que faz suas imagens paradas ganharem, por conseqüência, uma força assustadora.

La Jetée funciona por zonas. Zonas de memória, zonas de tempo e de espaço, zonas de registro. A função de seu herói é justamente viajar por essas diferentes zonas, todas indefinidas, e trazer aos cientistas que lhe fazem de cobaia o seu registro. Sua obrigação é fazer de um registro pessoal, imagens particulares de uma afeição particular (e não há nada mais bonito do que essas imagens de natureza, de crepúsculo, visões ou instantes parados da vida do herói, que aparecem de repente, tão quentes, habitáveis, acolhedoras aos nossos olhos...) um guia para a humanidade. É juntar sua história íntima à História. Porém, à medida que a narração se desenvolve, e as imagens se sucedem, as zonas se confundem, e não sabemos mais se, na verdade, o herói não estaria viajando dentro de sua própria zona. Sua visão do passado, ou do que acreditamos ser passado, surge como um símbolo do cinema: essa capacidade de "objetivar" os elementos registrados – e, portanto, ser um instrumento de memória. Mas trata-se da memória sob um ponto de vista pessoal, relativo... A confusão parte do princípio de que não sabemos ao certo se os cientistas o projetam para um passado real, ou se ele próprio fabrica ou adapta suas próprias lembranças. Nesse caso, mais do que uma viagem no tempo, estaríamos diante de uma viagem na memória.

Viagem na memória que parece amplificada em Sem Sol, levada ao paroxismo (o filme possui, inclusive, algumas imagens tiradas do curta anterior), através de uma outra linguagem. Como já foi dito antes, Sem Sol é um filme-ensaio. Viajando entre os "dois pólos da sobrevivência", Japão e África, fica nítida a presença de Marker, sua visão da existência; embora mascarada, ela assombra cada plano, pronta para juntar mundo íntimo e coletivo. Aqui ela se esconde sob esse nome misterioso de Sandor Krasna, um cineasta que, como Marker, está "sempre muito longe", nos quatro cantos do planeta, e que manda fragmentos de seu trabalho a seus amigos, para que eles os juntem, como se junta um quebra-cabeças. E se a montagem desse quebra-cabeças se dá através dessas famosas "cartas de Sandor Krasna", lidas no filme pela narradora Florence Delay, não é apenas para criar um "clima misterioso", mas também para remeter à nostalgia e à ternura que existe no ato de enviar uma carta. Repetindo a metáfora de La Jetée, o cinema é mesmo uma arte da memória.

Trabalhando com as cartas imaginárias de um cineasta imaginário, e com imagens reais que formam filmes imaginários – que Marker sonha em fazer, mas que sabe que nunca irá realizar – Sem Sol se aproxima do Ficções de Jorge Luis Borges, livro que, através do comentário de outros livros e escritores imaginários, tece uma reflexão sobre o tempo, o espaço, e as ligações entre arte, realidade e memória coletiva. O filme se abre com um prefácio: a imagem de três garotinhas numa estrada, na Islândia, em 1965. Como explica a narradora, esta é para o Cineasta (a partir de agora usaremos este nome para juntar, numa só figura, Marker, Krasna e o texto da narradora) a imagem da felicidade absoluta. A narradora também explica que o Cineasta já tentou diversas vezes associar esta imagem a outras imagens – mas aquilo nunca funcionou.

Essa idéia diz muito bem o que é Sem Sol: um filme aberto, uma grande corrente, sem fonte de origem, nem destino final. Aqui as imagens, as palavras e os sons se abrem para a reflexão como janelas de um hipertexto. As origens dessas imagens não têm muita importância: elas vêm de todos os lugares. Algumas foram filmadas por Marker, ao longo de sua vida, nos diferentes lugares por onde passou; outras "pertencem" a diferentes cineastas, são imagens emprestadas, que Marker vai embaralhar no seu enorme brouillon, para dar um novo sentido a todas elas (e aí tanto faz se são imagens de Marker ou de outros cineastas. Não há, afinal, diferença entre recriar uma imagem sua ou de outra pessoa). Na verdade, Sem Sol é a perfeita definição do que é a complexidade, ou seja, soma de idéias/imagens simples e conhecidas que formam um conjunto inesperado. O trabalho de Marker é juntar duas imagens com a narração, sem necessariamente tirar daí uma idéia "objetiva" – a não ser que se trate de uma objetividade da "desordem", uma desordem visual e sonora, como as que vemos nas ruas da metrópole. Em seu livro Le Depays, o próprio Marker explica: “O texto não comenta as imagens, assim como as imagens não ilustram o texto. São duas séries de seqüências que, evidentemente, chegam a se cruzar e criar signos; mas seria cansativo tentar confrontá-las. O melhor, portanto, é tomá-las na desordem, na simplicidade e no dédoublement, como convém tomar todas as coisas no Japão.".

A edição de Marker é um maravilhoso fluxo de planos, onde se juntam, num tempo indefinido, imagens presentes e imagens de arquivo, registro e ficção (e registros de ficções), e que absorve fragmentos do imaginário humano, "pedaços de memória";. Como a televisão, essa "caixa de lembranças". É, aliás, observando o louco mosaico dos canais de TV do Japão, passando do erotismo aos filmes de horror, das notícias de terremoto aos ídolos adolescentes, do terror ao afeto, da tragédia à vertigem, que Marker casa a instabilidade das imagens à instabilidade do mundo, numa definição do imaginário japonês: "A poesia nasce da insegurança: judeus errantes, japoneses com medo. Vivendo sobre um tapete prestes a ser puxado pela natureza zombeteira, habituaram-se a viver num mundo de aparência frágil, fugaz, revogável. Trens que voam de planeta em planeta, samurais que lutam num passado imutável, isso se chama à instabilidade das coisas".

Dentro do ritmo frenético do cotidiano, lugar de acumulação e eco, o Cineasta abre uma hipótese: a de ele próprio ser imagem. Movimentando-se dentro da cidade, o olhar perdido entre a velocidade das luzes, as galerias subterrâneas, os rostos fantasmagóricos que vêm e que passam, surgem e desaparecem, o Cineasta acaba duvidando de sua própria função dentro dos campos de percepção: "Me pergunto se estes sonhos são realmente meus, ou se fazem parte de um conjunto, de um gigantesco sonho coletivo, do qual a cidade seria uma projeção". As imagens mostram filas humanas, e o Cineasta se interroga se cada mente contida naquela multidão não estaria ali, construindo aquele espaço: "O trem, cheio de pessoas que dormem, junta todos os fragmentos dos sonhos, e faz deles um só filme, o filme absoluto". E, mostrando imagens da enorme massa passando nas catracas do metrô, com seus bilhetes, comenta: "Os bilhetes do distribuidor automático tornam-se tíquetes de entrada". Tudo não passa de um grande sonho, um grande filme, sonhado e dirigido por você, por mim, por todos nós. Já que "os que olham imagens são vistos, por sua vez, como imagens ainda maiores que eles mesmos", o espaço se torna impessoal, como o simulacro de Jean Baudrillard: "ser apenas a imagem de uma imagem". Daí a necessidade de Marker em ligar a imagem a uma memória. É o que Jean Giraudoux chamava de enumeração: colocar entre as coisas o afeto de como as percebemos, para não nos perdermos entre elas – e nem as esquecermos. No entanto, se existe uma memória involuntária (e Marker se interessa especialmente pelas novas tecnologias audiovisuais, os videogames e as imagens eletrônicas, que moldam parte de nossa realidade), nos resta compreender, como bem observou Jean-Xavier Ridon, como Marker tenta reconstruir a dinâmica dessa "memória involuntária". E nos resta, também, buscar nossa própria relação com a imagem como indivíduo, as diferenças de recepção... O que sou Eu? O que é o Outro? O que é o Eu dentro do Outro? O que é o Outro dentro de mim? A exemplo do herói de La Jetée, trata-se de dar sentido a uma imagem pessoal, encaixá-la dentro de um imaginário coletivo. Mais uma vez, ligar nossa percepção da História a História. Exatamente como a imagem das três garotinhas islandesas, esse plano solitário, perdido, esperando ser ligado a outro plano.

Em determinado momento do ensaio, o Cineasta tenta fugir do espaço impessoal e sonha "um mundo em que cada memória pode criar sua lenda" – e aí saímos do Japão para irmos até San Francisco, a San Francisco de Um Corpo Que Cai, que se encontra, forçosamente, com a Paris de La Jetée, no símbolo das linhas concêntricas no tronco da árvore, presente nos dois filmes, e nas duas cidades. Nesse ponto de Sem Sol, Marker cita explicitamente sua própria memória, seu próprio imaginário, criando associações de seus próprios filmes com o de um outro cineasta, Alfred Hitchcock. Um Corpo Que Cai, filme da "memória impossível, louca", visto 19 vezes pelo Cineasta, obriga-o a fazer essa peregrinação por San Francisco, em busca das memórias das imagens, do que sobrou do que foi registrado (o museu, o cemitério, a sequóia...). Assim como Marker em La Jetée, Hitchcock trata de um homem que acaba na "impossibilidade de viver com a memória a não ser que se a falseie, criando um dublê de Madeleine, em outra dimensão do tempo, uma zona só dele, de onde poderia decifrar a história indecifrável". Mais tarde, Terry Gilliam cruzaria mais uma vez os dois filmes, na cena do cinema de Os Doze Macacos, em que Bruce Willis e Madeleine Stowe, como dois fugitivos do Tempo, emperucados, criando dublês de si próprio, assistem a uma sessão noturna de Um Corpo Que Cai.

Um dos filmes imaginários propostos por Marker é uma ficção científica sobre um homem do futuro vindo de uma civilização dotada de uma memória total, que nada esquece, e que retorna ao passado para compreender o esquecimento (como se vê, algo próximo de La Jetée). Não é mais uma história sobre um homem que perdeu a memória, e sim a história de um homem que perdeu o esquecimento ("uma memória total é uma memória anestesiada"). E que, ao voltar a uma humanidade primitiva, se afeiçoa com seus antepassados, esses seres capazes de se emocionar com um retrato, uma lembrança, uma música... O viajante do futuro compreende que todos esses sentimentos causados pela lembrança, vestígios dolorosos de uma pré-história, é que fazem a beleza trágica da humanidade. Sem a possibilidade do esquecimento, não há memória, nem tentativa de registro. A memória humana é "como garrafas jogadas ao mar". É essa parte de nós que "se obstina a desenhar nas paredes das prisões", traçando os contornos do "que não existe, não existe mais, ou ainda não existe". Sua construção é a verdadeira aventura humana, nossa viagem através do tempo, nossa permanência, nossa passagem de bastão. Haverá algum dia uma última carta?

Bolívar Torres

(DVD Aurora)