COMO GANHAR NA LOTERIA SEM
PERDER A ESPORTIVA

J.B. Tanko, Brasil, 1971

Podemos compreender melhor o universo ficcional proposto por J.B Tanko em Como Ganhar na Loteria sem Perder a Esportiva a partir da leitura de duas canções de sua trilha sonora: Cidade Maravilhosa e Pra Frente Brasil. Temos aqui dois hinos e toda a pompa e força de sugestão que essa classificação nos remete. O primeiro é o hino da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e o segundo, da seleção brasileira do mundial de 1970. Cidade Maravilhosa aparece pela primeira vez durante os créditos de abertura, onde juntamente com os nomes do elenco e da equipe técnica vemos diversos pontos da cidade e seus transeuntes. Esses respiram o cotidiano da cidade ao lado de uma mania ou de um vício que os perseguem noite e dia: o futebol. A grande obsessão do carioca, que é entendido aqui como síntese do ser brasileiro, é, sem sombra de dúvida, o futebol. O futebol faz parte de sua essência, ponto que é, muitas vezes, isento de discussão ou discórdia. Porém, nesse filme de Tanko (um croata radicado no Brasil) a paixão pelo futebol é indissociável de uma outra necessidade do brasileiro: ficar rico ou “se dar bem”.

O desejo de ficar rico da noite para o dia, sem fazer nenhum esforço, ou melhor, sem ter que trabalhar, é tão presente no brasileiro quanto a gana de ver o seu time vencer. É esse desejo que nos move e que une todas as classes sociais. Do empresário ao chofer de táxi, do padeiro à prostituta, do pai de família classe média ao mendigo: todos querem completar os 13 pontos da loteria esportiva. O sonho da “vida fácil” ou de uma vida sem preocupações materiais é maior do que tudo. É maior do que o discurso gasto e pouco sincero que o padre profere contra a ganância. O coroinha (Agildo Ribeiro) tenta persuadir seu superior alegando que o dinheiro será “para a igreja”, para “pintar”, mas com apenas “uma mão de tinta os santos e os anjinhos”. O padre então vai aderir ao objetivo de ganhar na loteria, mas nunca irá admiti-lo completamente. Ele oficialmente declarará um discurso contrário ao jogo. O mesmo ocorre com o hipócrita e falso moralista Coronel/Deputado Estadual (Procópio Ferreira). Perante a família ele brada um canto de louvor à moral e aos bons costumes, afirmando com fervor que o brasileiro deve largar o vício e trabalhar honestamente. De um lado um legado religioso, do outro, um legado moral. Ambos rechaçam a procura da riqueza material. Ambos caem por terra porque não são sinceros ou efetivamente verdadeiros.

O Coronel, além de às escondidas fazer a sua aposta na loteria, secretamente freqüenta um prostíbulo. Ou seja, nenhum discurso contra o jogo ou contra qualquer coisa prima pela autenticidade. A única verdade é que todos, sem exceção, querem nadar em dinheiro. O famoso “jeitinho” do brasileiro é citado na conversa de Seu Jorge (Fregolente) com o médico, mas de fato ele aparece praticamente durante todo o filme. A vontade de sempre fazer parte do lado mais conveniente ou de “levar vantagem em tudo” é um traço comum dos personagens. A esposa dondoca do executivo, ao se inteirar que o marido ganhou na loteria, larga imediatamente o amante. As prostitutas, depois de terem destruído o bordel e de terem esculachado a Cafetina, voltam ao antigo trabalho porque agora precisam do emprego. Marilu, ao saber que o taxista Betinho ganhou na loteria esportiva juntamente com mais de 100 apostadores e não sozinho como antes achava, o abandona e retorna para o seu velho amante. A lei da conveniência é a que domina. A flexibilidade do mítico “jeitinho” é o que vigora. Mas, ao mesmo tempo em que vemos nessa crônica carioca bem humorada sobre a sede do brasileiro em se dar bem, a preponderância do “jeitinho”, vemos também o nosso permanente endividamento. Todos parecem estar mergulhados em dívidas ou na completa falta de grana. Severina, a empregada, não é remunerada pela família de Seu Jorge há dois anos. A família, por sua vez, se mantém em pé porque vive de favor na casa do tio Ananias. O agente funerário precisa vender o caixão para poder garantir a sua janta. Em Como Ganhar na Loteria sem Perder a Esportiva a maré está realmente braba.

E essa maré que “não está pra peixe” não é suficiente para impedir que o brasileiro sonhe com o dia em que se tornará milionário. As dificuldades do cotidiano são combatidas a cada minuto com muito jogo de cintura e bom humor. A capacidade de rir de si mesmo é aqui uma de nossas características mais originais. Tanko lança o seu olhar sobre o Brasil e os brasileiros interagindo a sua posição de estrangeiro com a maneira como o próprio brasileiro comum se enxerga. O senso comum é retrabalhado na sua porção verossímil, na sua porção mais próxima da “realidade”. O próprio ar de crônica que permeia o filme permite essa operação. O lugar comum ou o clichê do “ser brasileiro” é disposto nos personagens de maneira estratégica e consciente. A utilização dos tipos, a bicha estereotipada (Costinha), os mendigos beberrões, o político rústico do interior, o clássico pai de classe média, a empregada negra e gorda, a esposa gastadeira, a amante interesseira, o taxista galã, é trabalhada de modo que eles extrapolem, em certa medida, o recorte específico e bem delimitado. O micro torna-se macro. Nós reconhecemos que eles são clichês ou semi-caricaturas, mas ao mesmo tempo nos vemos neles. Eles estão ali, dispostos em um enredo “ameno” de comédia popular, e simultaneamente nos representam. Tanko é bem sucedido na elaboração desse jogo de identificação entre o espectador e os seus personagens. O espectador popular de seu filme se vê na tela e compartilha com aqueles tipos o desejo de riqueza instantânea e as dificuldades financeiras do dia a dia.

Como Ganhar na Loteria sem Perder a Esportiva celebra as belezas do Rio e o seu cotidiano. Viver no Rio e respirar os seus ares é um ato de beleza em si. Cidade Maravilhosa é então adicionada por cima das paisagens/personagens/ações de maneira oportuna. A mesma fusão entre música e proposta conceitual ocorre com Pra Frente Brasil. Se a primeira canção foi escolhida por ilustrar e representar as qualidades da cidade, a segunda cabe aqui por conclamar um sentido de “união”. Pra Frente Brasil canta que todos estão “juntos em uma mesma emoção” e que “parece que todo o Brasil deu a mão”. “Todos juntos em uma mesma corrente” torcendo para que a seleção levasse o título de tricampeã. O filme reforça essa idéia da coletividade unida em prol de um mesmo objetivo. Só que aqui o objetivo comum não é mais a vitória do tricampeonato e sim a vitória individual. Todos estão juntos no mesmo projeto de acertar os 13 pontos da loteria esportiva. Todos querem o mesmo para si e não pretendem dividir o prêmio com ninguém. Se a taça do Tri é simbolicamente de todos, a grana da loteria precisa ser de um só.

O número de apostadores que acertaram todos os pontos aumenta ao longo do filme, ocasionando situações amplamente cômicas (como o fato de que a cada vez que mais um apostador acerta os 13 pontos, o caixão do tio Ananias diminui de classe). No final das contas, como sempre, os acertadores vencem a frustração de dividir o prêmio com 4.150 apostadores, o que o torna irrisório, e tentam jogar novamente. O agente funerário, para sair da crise, resolve mudar de ramo. Larga a funerária e abre uma lotérica. A mesma atitude é tomada pelo Coronel em parceria com a Cafetina. Os dois abandonam seus antigos negócios e se associam para lucrar em cima da “febre” do povo. A narrativa termina com todos os personagens apostando nessa nova casa lotérica, e inclusive o padre, está presente para abençoá-la. Sob a desculpa de que a casa estaria promovendo um processo de “reeducação profissional” para as prostitutas, que agora são atendentes, até o religioso de certa forma admite veladamente que a maior fé do brasileiro está em “se dar bem”.


Estevão Garcia

(DVD Europa Filmes)